Sinto que carrego correntes… pesos que se arrastam no chão. Oiço um rugir perseguidor. Um perseguidor tão pontual e assíduo quanto a minha própria sombra. Ainda não sei bem o que se passa à minha volta, ainda está tudo tão turvo… e eu sinto-me carregada de culpa, de arrependimento, de tristeza, de exaustão e de ódio por sentir tudo isto…
As coisas à minha volta estão a começar a compor-se, talvez deva continuar a desabafar…
Estou cansada, de tanto cair, estou cansada de olhar em redor e nada ver… estou farta de ouvir as minhas próprias lamurias, estou farta… neste momento só me apetece ter um tempo para mim. Preciso de travar mais uma guerra dentro de mim, aquela voz destabilizante não pára de querer medir forças comigo. Não me vou deixar vencer e é por isso que preciso deste tempo para mim, para que esta voz não venha como uma onda gigante e me leve este meu castelo que com tanto carinho construi.
De repente, uma súbita mudança surgiu, deixei de ver… mas, transpareci calma… não sei porquê mas, tinha confiança no destino e por isso passei neste primeiro teste, penso.
Sinto os meus cabelos a bailar com o vento. O meu corpo elegeu-se mais ou menos um palmo da superfície e flutua… não sei ao certo se deveria ansiar ou até implorar pelo chão, só sei que não o farei pois sinto-me leve como uma pena que voa aos sopros de brisas suaves. Recorda-me aqueles sonhos em que parece que a minha cama é um teletransporte.
Não vejo… mas, mesmo que visse iria fechar os meus olhos. Começo aos poucos a perceber esta viagem.
Cheira-me a sal, oiço o mar e nem preciso na areia tocar para saber que estou algures numa praia. O som das ondas diz-me que está maré baixa pois rebentam umas atrás das outras arrastando sal e humedecendo os pigmentos de areia que alcança. É como se as ondas beijassem constantemente a areia e a puxassem cada vez mais para si.
- ‘Serão amantes?’, pergunto e ao escutar a minha voz surpreendo-me com a minha pergunta, pois nunca tinha pensado assim.
Os meus pensamentos voltaram e pesam por isso, a gravidade actua novamente e pousa-me naquela areia. Acontece num processo tão lento que sinto que comecei por tocar a areia e agora entranho-me na mesma como se neste momento fizesse parte desta.
A minha visão, continua ausente mas, vejo um clarão de tons que vai desde a gama dos amarelos até aos laranjas mais avermelhados que me faz perceber que um calor se afoga naquele mar, dando lugar a uma outra gama de cores, cores que vão desde os violetas mais azulados aos verdes mais acastanhados. Julgo que seja o pôr-do-sol e que daqui por uns minutos se dê o erguer da lua.
E mais uma vez me surpreendo com o meu raciocínio, nunca tinha visto as coisas desta maneira tão sensível. Talvez por ter tido sempre a visão da ‘realidade’ facilitada e por isso nunca tivesse dado valor, penso.
Nisto, o mar agora beija os meus pés, como se me convidasse para entrar… mas, vou aguardar sentada de joelhos encostados ao peito e com os meus braços sobre os mesmos, pois uma brisa fria em breve virá arrepiar-me.
A lua já se ergueu, as cores que ‘vejo’ mudaram como, tão bem pensei que fosse acontecer. Um arrepio percorre a minha espinha, aquele arrepio por que já esperava mas, que não deixou de distorcer o meu corpo e fazer levantar todos os meus pêlos.
Os meus cabelos, agora mais que nunca parecem sem direcção, uns atravessam-se à frente minha face.
-‘Tenho que me mover, senão irei congelar’, disse para mim. E sentei-me de uma forma mais descontraída enquanto mexia na areia.
Imaginava a minha mão como uma ampulheta que com imensos grãos na minha mão suspensa no ar, decidia faze-los juntar-se aos outros seguindo uma constante, o tempo… e foi então que outro raciocínio inesperado da minha boca se soltou:
-‘Se encher a minha mão de areia e por uma abertura constante, a deixar cair e enquanto isso for contando os segundos até sentir a minha mão sem nada consigo perceber quanto tempo tem uma mão de areia, com aquela abertura de raio fixo e àquela distância do solo’.
Assim, percebo rapidamente que o tempo varia com dois factores, com o diâmetro do buraco que deixo, por onde a areia irá soltar-se e com a altura a que tenho a minha mão do solo arenoso, percebo que se me puser de pé a areia demora mais tempo a juntar-se àquele solo arenoso do que se eu estiver sentada. Após a experiencia dou por mim boquiaberta envolvida numa brincadeira de pensares, como se unisse uns pontos aos outros e no fim os justificasse com a experiencia.
-‘Deveria perguntar-me o que se passa? De onde surgem estes raciocínios? Porquê? Se ainda agora começo a descobrir os tais pontos, se ainda terei de uni-los e acabar com a sua comprovação que provém da experiencia?’
Sinto algo musculoso e texturado agarrado ao meu pé direito. Volto a sentar-me e pego naquele músculo e começo por tentar perceber a sua forma, percorrendo as minhas mãos pelo mesmo.
- ‘É uma estrela-do-mar!’, exclamei. E dou por mim a falar com esta estrelinha pela qual baptizei de cinco pontas dos pés.
- ‘Tens tantas pontas quanto os dedos que eu tenho nos pés e nas mãos. Não preciso saber a tua cor, pois para mim já és a Cinco Pontas Dos Pés mais bela que conheci.’ Confessava-lhe.
-‘O que te trás por cá minha Estrela? Bom, não interessa se aqui estás, é porque certamente fazes parte desta minha viagem e simbolizas algo na mesma, quem sabe sejas um daqueles pontos que terei de unir.’ Contava-lhe mas, discutindo comigo mesma.
-‘Sabes querida Estrela, esta viagem começou por ser um refúgio… passou a ser uma viagem de sensações, depois uma viagem rica em sensibilidades das coisas mais simples que agora vejo que são as mais belas e agora, encontro-te a ti, uma amiga como se adivinhasses que aguardava inquieta por contar tudo isto a alguém. Espera… é isso!’
Pousei a Cinco Pontas Dos Pés naquele meu pé que um tempo atrás se havia agarrado e comecei a unir os pontos.
-‘Vim num transtorno de estado de espírito, numa revolta por nada ver a minha volta e fiquei sem visão. Recordo-me que vinha carregada e que me sentia perseguida enquanto arrastava umas correntes e tudo desapareceu, eu elegi-me cerca de um palmo do chão e senti-me livre, leve como uma pena. Lembro-me também que procurava um tempo só para mim e vim parar a uma praia deserta. Depois aqueles meus raciocínios e olhares às coisas mais simples mas, que jamais em tempo algum lhes tinha dado tal valor. Desde aquele pensamento de o mar e a areia serem amantes, o pôr-do-sol e o eleger da lua, o arrepio e à pouco sobre os grãos de areia. E por fim, apareceste tu, claro! Vieste para eu me ouvir, a mim mesma e assim unir estes pontos.'
E continuei o meu discurso:
-'E com esta viagem, aprendi uma grande lição, que ao invés de me deixar domar pelas minhas lamúrias deveria confronta-las como sendo o que não são, belas e assim elas ficarão belas, porque assim as olho e quero que sejam. Isto de uma forma inteligente.
Aprendi que a beleza no Mundo está em todo o lugar, nas mais pequenas coisas encontramos o nosso mais sensível, o nosso mais profundo sentimento e assim afirmamos a nossa humanidade.
Aprendi que um amigo nos aconselha, nos apoia mas, que sobre tudo nos ouve, como tu minha amiga, Cinco Pontas Dos Pés que pouco precisaste dizer pois fizeste com que me ouvisse a mim mesma e chegasse onde cheguei.
Aprendi (…) a minha visão voltou!’
Está tudo turvo, sinto-me a regressar ao sítio de partida… e imploro:
-‘Estrela, estrela! Não largues o meu pé! Vens comigo!’
Estou de regresso e como me sinto bem, estou radiante de felicidade e tudo o que carrego agora comigo é paixão, paixão por toda a beleza que me rodeia e admiração, por esta experiencia que jamais esquecerei. Os meus olhos brilham, como duas pérolas, o meu rosto está iluminado como se uma auréola pairasse sob a minha cabeça. Estou vestida de branco e de sapatos e só penso ‘a minha Estrela!’. Descalço-me e não a encontro, dispo a camisa, as calças e o casaco e nada, não a vejo em lado nenhum… sento-me agrupada e lágrimas escorrem pelo meu rosto e quando já quase me sentia preparada para repetir a viagem vejo algo a mexer-se no meu casaco e qual é o meu espanto quando vejo a Cinco Pontas Dos Pés?! Que encantamento!
-‘Eu sabia que eras bela, minha Estrela, bela como aquele pôr-do-sol e ainda bem que vieste comigo pois serás sempre a minha melhor amiga e serás tu quem irá manter aquela experiencia sempre viva!’
Comentários
Simplesmente fantástico?!
Já li o teu texto duas vezes e das duas vezes achei-o simplesmente fantástico, mas não é um fantástico normal... é um muitas mais forte que o normal... Porque cada vez que eu o li, apesar de extenso, encontrava sempre algo tão belo e muito descritivo... adorei quando dizes... -"‘Tenho que me mover, senão irei congelar’, disse para mim. E sentei-me de uma forma mais descontraída enquanto mexia na areia."
É algo que consigo imaginar na minha cabeça, consigo construir com o meu cérebro essa imagem que descrevestes...
Depois hoje e ja tinha notado que no teu texto também existe um pouco de "ego", "alma" e "Maquina"... E refiro-me a parte inicial do texto...quando fazes uma breve discrição, e escrevendo em primeira pessoa...
Divinal
Amei o texto irei lê-lo incessantemente até os meus olhas cansarem-se...porque realmente posso voar para um outro mundo e descobrir essa tua forma de escrever e descrever algo...
Abraço andrelipx
Que surpresa, Andrelipx!!
Que surpresa, Andrelipx!! Fiquei de facto de queixo caído com o teu comentário, tu o senhor das prosas(:
Fico muito feliz por teres gostado tanto, deixa-me mesmo preenchida, confortante e realizada(:
Gostaste dessa frase? (: Enquanto escrevia, visionava tudo e tinha mesmo como objectivo fazer quem me lesse viajar comigo mas, como principal fim, tinha passar uma mensagem: que por vezes o Universo parece revoltar-se contra nós, sim tudo parece cair nas nossas costas, tudo perde cor, e parece melancólico mas, se tudo assim é, é porque o permitimos, é porque nos damos como derrotados é porque não olhamos às mais pequenas coisas, onde encontramos a nossa mais pura sensibilidade e quem sabe a chave para tudo. Quer num ‘simples’ olhar, quer numa carinhosa palavra, quer em algo/alguém que nos oiça, como a Cinco Pontas Dos Pés, temos que dar valor, nada é insignificante e o que ‘hoje’ demos como insignificante, mais tarde poderá vir a tomar muitas formas na nossa vida e mudá-la.
Pois é, Andrelipx, um pouco extenso e confesso que receava que ficasse confuso/baralhado…
Ainda bem que viajas nas minhas palavras(: fico muito contente que o consiga fazer.
Muito obrigado e lembra-te que se o texto é belo é porque assim também fazes que o seja(:
Abraço,
P03tiza.
Rute Mesquita
Para P03tiza
De facto cada vez que eu lei-o o teu texto, viajo sempre e em primeira classe, porque ele é tão maravilhoso que simplesmente me sento a ler e viajo... Cada palavra é como um desenho que se desenha na minha mente é extremamente divinal, porque sempre que posso volto-o a ler e forma-se de novo esse filme na minha cabeça...
Podia estar aqui a descrever cada passo, e a falar desse lindo filme, mas não teria espaço suficiente para o fazer...
Em relação a teu comentário, gostei quando dizes " lembra-te que se o texto é belo é porque assim também fazes que o seja", e verdade para o texto se mostrar belo nós próprios temos que o "transformar" na nossa cabeça, com estas formas vivas que tu falas ou melhor descreves no texto...
Continua assim
Andrlipx
Andrelipx
Maravilha! Ainda bem, Andrelipx nem sabes o quanto me deixa feliz por sabe-lo(:
Oh, muito obrigado, muito mesmo!
Como entendes(: exacto, uma coisa só é bela se lhe atribuir-mos esse valor, por mais bela que seja, pode não ir ao encontro do nosso subjectivismo e é por isso que disse tal coisa(:
Espero que continue e que continue a fazer viajar(: e desejo tudo de bom para ti e que não pares, isto ainda agora é um começo(:
Continua assim, sempre a olhar para cima, ambiciona,
Abraços,
P0etiza.
Rute Mesquita
p/PO3tisa/carmem cecilia
CarmenCecilia
Viajei com tua maravilhosa prosa!
Lindooooooooooo!
Parabéns!
Carmem Cecilia
CarmenCecilia
Cara, Carmen Cecilia
Fico muito feliz que tenha vivido esta longa viagem.
Muito obrigada pela atenção e pelos parabéns.
E como me sinto maravilhada pelo seu comentário, de uma verdadeira poetisa.
Muito grata,
P03tiza.
Rute Mesquita
PO3tiza/Carmen
Belíssimo texto! Parabéns, PO3tiza!
Abrs.
Carmen
Cara, Carmen Vervloet
Que surpresa é vê-la por aqui. Que encantamento é tê-la feito viajar.
Que honra é recebe-la, Carmen.
Gosto muito dos seus feitos, da maneira como brinca com as palavras, é de mestre.
Os meus mais sinceros agradecimentos,
P0etiza.
Rute Mesquita