Setembro – Capítulo 4

Foto de João Victor Tavares Sampaio

Engolidores, mais escravos que os escravos. Esse nome foi dado para seres de sangue quente, na sua maioria, que não se opuseram a dominação total de sua espécie e aceitaram seu destino de submissão. Os seviciados levam esse infeliz adjetivo, como uma marca indelével de sua covardia e pavor. Se forem coitados, pouco importa. Os engolidores são ao mesmo tempo vitais e descartáveis.
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- Sou sua amiga. Confie. Vamos sair daqui. Venha comigo.

A voz me era familiar, como se já a conhecesse. Os gestos eram familiares, os jeitos e trejeitos, a aura que emanava do corpo, seus olhos alaranjados e incomuns tão convencionais ao meu admirar. Ela era fria, brisa gélida que suspirava os meus lábios ao seu beijo. Sabia quem era, por milésimos, sem certeza. Mas sabia ainda que sem saber.

- Sim. Obedeço.

Eu estava sendo heróico e lamentável naquele ato.
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A senhora que me resgatara do cativeiro tinha as chaves para a saída da prisão com a qual eu me acostumara a suportar. Ela carregava apenas a si mesma, enquanto eu transportava anos de humilhação e resignação. Num silêncio que não escondia o sorriso do despertar para um sonho, eu subia para nuvens depois de um infernal período de insatisfação. Eu exultava, exorcizava o demônio do temor, até sermos cercados.

- Então vai fugir...?

O Luís Maurício nos olhava com um misto de nojo e tara.

- Não vou fugir. Você nos expulsou.

- Como assim, os expulsei? Eu te expulsei, mas não ao escravo.

- Pode ficar com esse lixo, só o trouxe para sacrificar em meu lugar.

Eu estremecia de rancor.

- Cínica. Você é tão covarde como esse traste.

- Não, eu aprendi a ser sórdida contigo.

- Não estou nem aí. Pode ir embora, agora você vale a mesma ninharia que os engolidores. Lá fora, sua corja é repudiada. Você vai ser relegada ao gueto, e isso se preferir não morrer. Seu destino está maculado. Sua sina é passar fome, é ter a necessidade e não saciá-la, é ser linchada e escarrada por não ser mais do nosso convívio. Será lembrada como louca e perdida, e isso se mencionarem seu nome. Diga adeus a sua vida, chegou sua hora.

Dona Clarisse calou-se. Pela primeira vez algo que ela não queria lhe descia pela garganta.

- Dimas, não deixe que ele me toque.

Ela saiu correndo à minha frente e largou-me aos chutes do meu cruel superior.
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A porta não fora fechada. Em fúria, meu chefe me espancava e extravasava os nervos que lhe explodiam. Mas desta vez eu não me encolhi. Tentei um primeiro revide, do chão com um pontapé. Ele nada sentiu e de cima pisou meu rosto. Tentei mordê-lo. Ele golpeou meus dentes com os cadarços que o sobravam. Uma alavanca rasteira o derrubou. Acertei seu olho esquerdo. Descobri que meu patrão também sentia dor. Arrastei-me até uma foice, estávamos no jardim da residência, agora florida de uma irônica primavera. Ele pisou minhas mãos. Com um puxão escorregou, estatelado junto à lâmina. Ele dedilhou o cabo da agora arma. Sorriu e hesitou na sua vitória iminente. Subi sob suas costas, o acotovelei e esfreguei sua face no solo. Enfim a foice era minha. Enfim eu tinha a possibilidade de matá-lo. Mas era mais prático arrancar seu braço. Foi o que fiz.
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O Luís Maurício uivava e alguns perceberam indo ao seu socorro. Dona Clarisse era linchada. Eu corria para não ser encontrado em direção ao meu desconhecido gueto. Eu me esgueirei enquanto os brados procuravam seu culpado. O pânico tomava as então plácidas alamedas dos dominantes. Vinha a tona todo o furor selvagem sufocado pela supremacia instalada na nossa realidade. Um embevecido decidiu tacar fogo na cidade incontrolada, para solucionar pela facilidade. Acabou piorando o caos. Os seres, tomados e extasiados, puseram-se a brigar entre si. Tudo estava por ser quebrado. Um instinto me indicava o caminho do tal gueto, o intocado e tranquilizado gueto. Não havia paralisia que diminuísse meu ímpeto. Tudo estava por ser destruído. Uma toca me escorregou sem que eu quisesse. Mas eu sabia que estava seguro. As mãos que me sugaram da superfície eram trêmulas e vibrantes. Eram mãos quentes, que até ardiam as minhas canelas. Nessa escuridão me vi logo inconsciente.
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Uma humilde vela acendia. Vi cenhos me pedirem senhas. Nenhum código me ocorreu. O que parecia o chefe deles pediu a palavra por possuí-la de verdade. De fato era o líder em seu nome celebrado.

- Não nos conhece, irmão, mas o acolheremos. Prove que merece nossa confiança e não será incomodado. Agora você está conosco. Discipline-se, e encontrará sua glória

Eu um milésimo me converti ao seu comando.

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