Pânico

Foto de Fernanda Queiroz

O Show

Em meio aquela multidão eu me sentia perdida. Por mais que imaginasse nunca cheguei a pensar que pessoas poderiam ser tão apressadas e barulhentas.

Na hora de reservar meu ingresso optei pela geral, pensei que assim passaria despercebida, a idéia de camarote não me inspirava privacidade e sim destaque e como jamais tinha assistido a show de uma Banda famosa ou qualquer outra tudo era novidade. Minha experiência se resumia nas quermesses organizadas pela Associação Comunitária da Vila onde o som da banda dominical entoava valsas enquanto desfilávamos entre barraquinha de jogos e doces e aguardávamos os fogos, estes sim eram a estrelas das festas. Ficar olhando para cima vendo um pequeno zumbido se transformar em imensas partículas colorida era um espetáculo, mesmo que ás vezes acarretasse lembranças nostálgicas, eu amava aquele céu pontilhado de luminosidade.

Enquanto tentava entrar em um enorme recinto, daqueles que se vê somente pela TV, empurrada para lá e para cá por uma multidão que parecia não conhecer as normas da boa educação, estava pensando o que tinha me levado a tomar esta decisão.

Já havia se passado quase dois anos desde que falei com ele pela última vez, neste tempo tão forte quanto às lembranças que sobreviveram estava meu medo de saber o rumo que ele tinha dado a tua vida.
Afastei-me completamente do mundo das manchetes, onde certamente ele sempre seria destaque. Não lia revistas, jornais somente seção de investimentos e cultura, TV canal fechado sobre economia e agricultura, assuntos fundamentais em meu trabalho.
É claro que sem que eu pudesse evitar ás vezes os ouvia cantando, no radinho de pilha de algum operário, nas grandes magazines de eletrodomésticos na cidade, na faculdade onde os rapazes bonitos e famosos fazem à cabeça das garotas que até tatuavam em teus corpos nomes juntamente a desenhos exóticos.
No principio sofria muito por isto, depois sabendo que nada podia fazer, passei a ignorar, afinal quem tinha mandado me apaixonar pelo ídolo do Rock?

Finalmente tinha conseguido entrar no estádio onde a multidão se aglomerava onde estar á frente era certamente um privilégio para expressar o fanatismo que alterava o comportamento das mais diversas maneiras.
E agora estava ali, há poucos minutos e metros de onde ele entraria, duvidando de minha sanidade em ter tomado a decisão de ir vê-lo. Talvez se não fosse próximo à cidade que estava a trabalho há dois dias, jamais teria ido. Fui exatamente para ficar dois dias resolvendo questões de Marketing, mas era impossível não ver todos os outdoors espalhados pela cidade. Minha primeira reação foi de pânico, queria voltar sair correndo ao fitar ele entre o grupo sorrindo, como sorriu muitas vezes para mim... Deus...as lembranças voltavam em avalanche fazendo meu corpo estremecer, meu coração disparava, como aquele ressoar de buzinas que soavam atrás de mim, foi quando me dei conta que estava atrapalhando o transito e com mãos tremulas segui em direção ao hotel onde me hospedara, parando somente em uma loja especializada onde adquiri um potente binóculo, se fosse levar esta loucura a frente ele seria necessário, pois pretendia me manter mais distante possível e algo dentro de mim gritava para ir...Eu iria.

Já se passava 1 hora do horário grifado nos cartazes, a multidão que formara era tudo que jamais tinha visto, parecia uma disputa de quem conseguiria gritar mais alto, ou agitar mãos blusas lenços ou faixas mais altos. De onde estava bem retirada da multidão a tudo assistia ocultando minha ansiedade.

De repente os gritos se tornaram mais forte e contínuo em resposta a presença deles no palco.
Minhas mãos suavam tremulas, meu peito parecia que iria explodir lançando meu coração ao palco, por um momento pensei em desistir e sair correndo para meu abrigo, meu canto onde meus segredos me protegiam... respirei fundo, ergui a cabeça, encostei em uma pilastra, como se ela pudesse segurar meu fardo de dor, estava cantando acompanhado eloqüentes pela platéia minhas mãos levantaram o binóculo sem a pressa de quem esperou tanto por este momento, lentamente o ajustei aos meus olhos onde avistei gigantes holofotes, estava tentando me orientar, olhei em volta tentando ajustá-lo. Vi o baterista movimentado ao frenético ritmo que me fez piscar várias vezes, parecia a minha frente, lentamente movi para a esquerda encontrei o saxofonista, voltei-me para a esquerda devagar, quase sem respirar para não perder o foco, quando o vermelho da guitarra coloriu as lentes senti um impacto tão grande que parecia atingida por um soco no estomago.Engoli saliva inexistente, tentei suavizar os ressequidos lábios passando a língua por eles, meu peito arfava e meus olhos buscava naquela potente tecnologia, tua face amada.

Recosta bem no fundo, longe da entusiástica platéia sabia que precisava vê-lo. Determinada, ajustei as lentes tentando reencontrar o foco reluzente de tua guitarra e lá estavam tuas mãos a segurarem firmemente, dedos firmes dedilhando-a, mãos de artista. Fui subindo, encontrei tua camisa alaranjada, Deus eu amava esta cor em você, lembra-se daquele casaco? Quando o vi sabia que tinha sido feito para você. Caiu como uma luva ficou lindo como sempre foi, será ainda que o guarda? Ou estará jogado e esquecido em algum armário?

Pela camisa entreaberta pude ver tua inseparável medalha segura pelo fino cordão de ouro que cismava em colocar entre os lábios quando estava nervoso, como naquela vez que esqueci o celular desligado por toda tarde exatamente no dia que te aconteceu um imprevisto, tinha que viajar, e não conseguia contato. Quando conseguiu falar, a primeira coisa que disse... já mastiguei todo meu cordão... risos, era sinal de perigo... mas também das pazes de teus beijos ardentes de tuas palavras que compunha as mais belas declarações de amor.

Teu rosto... Deus... a barba feita, cabelos desalinhados como sempre te dando um ar de garoto, tua boca em movimento, cantando ... para a platéia...para o mundo, como gostava quando cantava só para mim que entre risos sempre podia ouvir dizer que me amava... muito, fitando-me longamente com este olhos da cor do oceano e infinitamente maior, pois era a janela que me transportava para as portas do paraíso que meus sonhos tanto almejaram.

Deus... é ele, meu eterno amor, há poucos metros de distancia, no palco, no teu show, no teu mundo.
A lente ficou turva, lágrimas desciam copiosamente por minha face, uma dor física me invadiu fortemente fazendo-me escorregar pela pilastra até encontrar o abrigo do chão, pensamentos desatinado trazia o passado de lembranças onde o presente se fundia em uma imagem com o olhar perdido na platéia.

Teus olhos sorriam as manifestações enlouquecidas, gritavam teu nome em todos os tons, gestos, mãos erguidas, cartazes, onde os pedidos nítidos requeriam tua atenção... teus olhos vagavam acompanhando em um misto de alegria e encantamento.
Olhos para o flash, foi como me disse um dia. Que era um olhar reservado á todas outras garotas do mundo... que para mim sempre seria um único e eterno olhar.
E agora? Que olhar era este? De flash? E se pudesse me ver, me olharia de novo como se tivesse me inventado? Como se tivesse me feito nascer a partir de teu olhar?

Levantei-me cambaleante, tonta, ouvindo o frenesi se tornar mais acentuado, você jogava rosas...a toalha que usou para secar teu rosto...como se doasse um pouco de você...e tudo de mim.

Às vezes vivemos em minutos, muito mais que em dias ou meses, minha mente parecia entorpecida diante da lente que deixava você tão perto quanto eu queria estar, teu rosto, teu sorriso, teu corpo... você do jeito que eu sempre amei... no mundo que não conhecia...no palco...na fama...tua vida, tua carreira, teu destino.

Sai caminhando devagar, virar as costas me custou muito... muito mesmo... nunca saberá o quanto...
A menos que um dia queira assistir um show... em um palco diferente... cheio de galhos e flores... talvez se quiser se juntar á platéia dos passarinhos... ouvindo somente o som de minha flauta, que mesmo tocando baixinho pode-se ouvir além do horizonte...

Fernanda Queiroz
Direitos Autorais Reservados

Foto de Rosamares da Maia

Voo Duplo

Voo Duplo

Tenho medo, muito medo de altura,
Tenho tonturas, sempre me falta o ar.
Mas se voar é fobia, insano é constatar,
Que só a vertigem me faz te alcançar.

Então experimento a sensação de ousar
Arrisco por necessidade de viver a emoção.
De saber que só teu amor me faz decolar.

De olhos fechados, a beira do pânico,
Aperto com força as tuas mãos.
Meu corpo não tem peso nem a cabeça razão,
O mundo roda, ainda assim, abro as asas e vou.

Voo e exponho toda a minha fragilidade,
Desço num looping vertiginoso, desatinado,
Mas medo não é o bastante para me impedir
Você é minha razão para tentar e voar... e tentar

O vento fustiga, faz biruta de nossos corpos,
Impõe-se a ousadia, corta, mas sei que posso,
Porque teu amor é o que me faz decolar.

Bem no alto, por sobre as montanhas,
O ar é rarefeito, pesa e o coração explode,
Não consigo pensar, sequer respirar.
Mas você me ensinou a planar e aterrissar.

Do platô novamente saltamos em voo duplo,
Assustados, cruzamos a linha do horizonte.
Ousamos, mergulhamos e tornamos a flutuar.
Por amor,... um amor que nos faz decolar.

Rosamares da Maia – 06.09.2012

Foto de von buchman

A onde eu errei...

Hoje me pergunto que é que fiz da minha vida...
Amei e talvez fui amado ...
Me dediquei e fui traído....
Fui abandonado sem uma palavra....
Largado ao relento como um papel sujo...
Joguei 32 anos de minha vida no lixo...
Abandonei minha formatura, meu pós graduação na Alemanha e meu doutorado no Japão...
Tudo isto para cuidar, amar, zelar e ficar apaixonado por uma mulher com duas crianças...
A mulher que mais eu amei desprezo-me e no final foi embora sem um adeus,
sem uma palavra de explicação, vendeu todos os nossos bens,
mudou-se escondeu-se e depois sumiu para outro estado,
fez como ela sempre me ameaçava e eu que nunca levei a serio...
- Vou viver minha vida, vou pra meu cantinho, viajar, curtir e ser feliz,
e sempre o dizia o meu cantinho ...
O filho que gerei com ela, amei como nunca, fiz do meu coração pedaços para ele ter o melhor,
ele sempre dizia, nunca te pedi nada você deu por que quis, o problema é seu...
Armou contra mim , tentou me estrangular, preparou e ajudou a me separa de minha esposa
que é a razão da minha paixão, e ainda acha que fez certo! Me reduzindo ao nada
,me maltratando, me deixando lesões e sequelas, irreversíveis no meu corpo,
no meus sentimentos e na minha mente...
Hoje vivo a base de corticoide pra retarda perda da voz,
e antidepressivo em doses cavalar por causa da depressão
e da síndrome de pânico...
Quem era eu e a que ponto chegeui...
Milhas filhas nem um oi me dão, como uma dela me disse você é
uma pagina virada na nossa família...
Eu acho que eu sou um doente metal,
um bandido
um terrorista,
um estrupador,
ou um leproso terminal...
Que fazer...
Muitos na minha condição de excreto de uma vida, daria um final a ela...
Alguns sairiam da central do raciocínio sã e iria matando a muitos...
Outros pelo choque e a depressão ficaria no fundo do posso eternamente e vegetaria na demência...
E eu faço o que...
Lastimo, choro, deprimo-me, isolo-me na solidão...
hoje fico jogado em um canto de um quarto esperando uma esmola de alguém,
em um gesto de carinho ou a um afeto, muitas vezes penso em dar um ponto final a tudo...
Assim resolveria o problemas de toda minha ex família...
Que bom que tenho membros de igrejas que me ajudam em palavras e em medicamentos...
e uma linda irmã que me ama!
Amei tanto meu lar...
Catei 2 meninas órfãos e uma viúva a beira do buraco da depressão...
Dependente de tranquilizantes, bebidas e cigarros...
Dei meu amor, meu carinho, minha paixão e meu zelo...
Abandonou os vícios e medicamentos e ganhou amor e paixão...
Cuidei das meninas, formei, instrui pelo caminho do amor e do evangelho de Jesus...
Eduquei as crianças como fossem ou melhor sendo minhas com todo amor de pai,
sempre atento a princípio da palavra de Deus, da familia e do lar cristão...
Nunca deixei faltar nada, de uma boa comida a uma família integra e pura,
por aperto todos passamos, faz parte da vida...
Nasceram dois filhos deste casamento evangélico,
fiz por merecer a eles tudo que um bom pai devia dar
,mas nunca mais que as outras que acolhe, com muito amor
e carinho, estas sim dei o que eu tinha e não tinha...
Para superar a ausência do pai biológico, eu nunca as bate e
sempre eduquei no conselho e na explanação do bem e do mal,
sempre no bom costume, sem vicio , nem roubos, no bom exemplo,
não fazendo nada que desonra-se o nosso nome ou do Sr. Jesus.......
Para minha esposa e mulher, procurei ser um bom namorado, acho que bom marido,
e tentei ser um ótimo amante,
de flores no café na cama ao poemas no vidro do banheiro...
Fiz dela minha rainha, minha deusa do amar e do meu altar...
Sempre confiei cegamente nela e nunca esperei um sequer pensamento errôneo dela ou contra sua fidelidade...
Ela sempre esteve acima de qualquer deusa ou mulher, muitas vezes acima de minha própria mãe...
Minha unica magoa é nunca escultar dela eu te amo, pois ela dizia que
não conhecia esta palavra e não a usava...
Hoje eu estou só abandonado, sem ninguém na rua da amargura. na dura solidão,
entrando no final da vida, sem ninguém, ecoando na minha mente, as palavras de meu filho.
.( Quero lhe ver na miséria, mendigando na rua seu safado...)
Que é devassadora a tal praga e maldição de um filho a um pai...
Vivo no zumbido de um quarto isolado e só, que me foi cedido, por não ter como pagar moradia,
pois todos meus pertences foram-me subtraído, nada disse,
não reclamei ou se quer me opus só orei e lastimei em lágrimas, agradeço a minha irmã,
por sua bondade e amor, pois eu estaria no abandono,
na rua ou em um chão numa esquina qualquer como um mendigo...
Hoje vivo a mercê da sorte do amanhã...
Vivendo de ajudas de minha irmã e da igreja, para não morre da fome e
não me faltar os medicamentos,sei que sou peso para ela, e não me sinto bem e
muito me constrange por ser um peso na sua vida...
Hoje estou sofrendo uma devassadora e desencorajador profunda depressão,
junto com um mal que chama-se síndrome do pânico....
Olha que ganhei de minha família...
Que devo fazer..
As lágrimas, esta já nem lembro-me o dia que não as a ative no meu rosto...
Muitas vezes pela perda de minha lucidez, por orientação medica não devo andar só, nem dirigir...
Me da uns brancos e fico sem sabre quem sou e o que estou fazendo naquele lugar...
Sofro mui e muito me dói chega a arder meu peito pela perda de meu lar
e de minha amada família a saudades que sinto me é sufocante, não acredito que vivo isto e não quero aceitar...
O lastimar e a dor latente da perda familiar é o que esta cheio o meu coração...
Já os perdoei a todos, não me importa a razão do que ou para que fizeram ...
Mas para eles a vida continua, sem nenhum remoço ou arrependimento!
Fui alvo fácil, fui pego na armadilhas que eles mesmo fizeram,
na falta de atenção, falta de prudencia, total confiança
nas pessoas que estavam ao meu lado, e de minhas inexperiências,
de empresário, pai sem maldade e esposo sem nenhum receio ou qualquer cuidado,
total confiança na minha amada.....
Confiei de mais e fui traído por quem nunca esperei...
E a minha vida serve para que hoje...
Ajudo e sempre ajudei e vou continuar a ajudar
os mendigos, doentes, pessoas terminas e drogados...
Amo ser assim, fico sempre junto a quem precisa, fico até um dia no celular ajudando alguém
ou tentando resolver o problema de uma pessoa ou de uma família..
É a minha realidade...
amo ser um homem bom e de coração limpo
sem maldades, o odio e a rejeição...
Hoje nada me tem renovado a não ser a dor e o sofrimento...
Talvez eu já esteja a um passo da loucura...
Ou de um suicídio
Pois tenho escutado vozes que pedem ou me velam a crer que
e melhor dar um ponto final em tudo...
Não me resta mas nada do que sofrer e sonhar que um dia tudo se terminara quando,
os meus olhos se fecharam por total...
Ai talvez eles possam olhar e ver que fizeram com um pai, esposo e servo de Deus...
Que nunca fui perfeito, mas sempre soube reconhecer meus erros e minha imperfeição,
pedia perdão e arrependia-me tentando nunca mas errar ou pecar...
Perfeito só Jesus ...

Foto de Marilene Anacleto

Fim de Tarde (Avenida Sodegaura)

Antes do dia findar, uma parada, um descanso,
Entre poluição de veículos, caminho.
Largo a bolsa, respiro, ajeito-me em um banco.

A garça faz plantão no barco de pesca.
O rato foge da minha presença, em pânico.
O pato d’água desliza lentamente em festa.

Gaivota voa sobre minha cabeça,
Enquanto o vento traz o cheiro da maresia,
Lança-se ao espelho d’água e consegue uma presa.

A maré hoje, agora, está muito baixa.
Pequenas ondas transluzentes ensinam-me
A serenidade do caminhar constante.

O barco parado convence-me
De que não há tempo para se ter habilidade,
De que não há idade para estacionar no tempo.

Gaivotas dão-me lições soberanas
Voam muito alto, saem dos confortos,
Atingem o objetivo de conquistar a cada dia o pão.

O sol, ao deitar-se, traz ao céu suas rendas rosadas.
A lua surge, em risco amarelo atrás do molhe.
No morrer e no nascer, abraçam-nos na eternidade

Que se repete dia a dia, estação a estação,
Ao fazer penetrar nessa argila raios de emoção
E, ao atingir o espírito e a alma, tornar o corpo são.

Assim, corpo, sentimento e emoção refeitos,
Muitas lições do dia que a luz suspende,
Estou pronta para mimá-lo com doces beijos.

Foto de João Victor Tavares Sampaio

Setembro – Capítulo 4

Engolidores, mais escravos que os escravos. Esse nome foi dado para seres de sangue quente, na sua maioria, que não se opuseram a dominação total de sua espécie e aceitaram seu destino de submissão. Os seviciados levam esse infeliz adjetivo, como uma marca indelével de sua covardia e pavor. Se forem coitados, pouco importa. Os engolidores são ao mesmo tempo vitais e descartáveis.
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- Sou sua amiga. Confie. Vamos sair daqui. Venha comigo.

A voz me era familiar, como se já a conhecesse. Os gestos eram familiares, os jeitos e trejeitos, a aura que emanava do corpo, seus olhos alaranjados e incomuns tão convencionais ao meu admirar. Ela era fria, brisa gélida que suspirava os meus lábios ao seu beijo. Sabia quem era, por milésimos, sem certeza. Mas sabia ainda que sem saber.

- Sim. Obedeço.

Eu estava sendo heróico e lamentável naquele ato.
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A senhora que me resgatara do cativeiro tinha as chaves para a saída da prisão com a qual eu me acostumara a suportar. Ela carregava apenas a si mesma, enquanto eu transportava anos de humilhação e resignação. Num silêncio que não escondia o sorriso do despertar para um sonho, eu subia para nuvens depois de um infernal período de insatisfação. Eu exultava, exorcizava o demônio do temor, até sermos cercados.

- Então vai fugir...?

O Luís Maurício nos olhava com um misto de nojo e tara.

- Não vou fugir. Você nos expulsou.

- Como assim, os expulsei? Eu te expulsei, mas não ao escravo.

- Pode ficar com esse lixo, só o trouxe para sacrificar em meu lugar.

Eu estremecia de rancor.

- Cínica. Você é tão covarde como esse traste.

- Não, eu aprendi a ser sórdida contigo.

- Não estou nem aí. Pode ir embora, agora você vale a mesma ninharia que os engolidores. Lá fora, sua corja é repudiada. Você vai ser relegada ao gueto, e isso se preferir não morrer. Seu destino está maculado. Sua sina é passar fome, é ter a necessidade e não saciá-la, é ser linchada e escarrada por não ser mais do nosso convívio. Será lembrada como louca e perdida, e isso se mencionarem seu nome. Diga adeus a sua vida, chegou sua hora.

Dona Clarisse calou-se. Pela primeira vez algo que ela não queria lhe descia pela garganta.

- Dimas, não deixe que ele me toque.

Ela saiu correndo à minha frente e largou-me aos chutes do meu cruel superior.
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A porta não fora fechada. Em fúria, meu chefe me espancava e extravasava os nervos que lhe explodiam. Mas desta vez eu não me encolhi. Tentei um primeiro revide, do chão com um pontapé. Ele nada sentiu e de cima pisou meu rosto. Tentei mordê-lo. Ele golpeou meus dentes com os cadarços que o sobravam. Uma alavanca rasteira o derrubou. Acertei seu olho esquerdo. Descobri que meu patrão também sentia dor. Arrastei-me até uma foice, estávamos no jardim da residência, agora florida de uma irônica primavera. Ele pisou minhas mãos. Com um puxão escorregou, estatelado junto à lâmina. Ele dedilhou o cabo da agora arma. Sorriu e hesitou na sua vitória iminente. Subi sob suas costas, o acotovelei e esfreguei sua face no solo. Enfim a foice era minha. Enfim eu tinha a possibilidade de matá-lo. Mas era mais prático arrancar seu braço. Foi o que fiz.
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O Luís Maurício uivava e alguns perceberam indo ao seu socorro. Dona Clarisse era linchada. Eu corria para não ser encontrado em direção ao meu desconhecido gueto. Eu me esgueirei enquanto os brados procuravam seu culpado. O pânico tomava as então plácidas alamedas dos dominantes. Vinha a tona todo o furor selvagem sufocado pela supremacia instalada na nossa realidade. Um embevecido decidiu tacar fogo na cidade incontrolada, para solucionar pela facilidade. Acabou piorando o caos. Os seres, tomados e extasiados, puseram-se a brigar entre si. Tudo estava por ser quebrado. Um instinto me indicava o caminho do tal gueto, o intocado e tranquilizado gueto. Não havia paralisia que diminuísse meu ímpeto. Tudo estava por ser destruído. Uma toca me escorregou sem que eu quisesse. Mas eu sabia que estava seguro. As mãos que me sugaram da superfície eram trêmulas e vibrantes. Eram mãos quentes, que até ardiam as minhas canelas. Nessa escuridão me vi logo inconsciente.
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Uma humilde vela acendia. Vi cenhos me pedirem senhas. Nenhum código me ocorreu. O que parecia o chefe deles pediu a palavra por possuí-la de verdade. De fato era o líder em seu nome celebrado.

- Não nos conhece, irmão, mas o acolheremos. Prove que merece nossa confiança e não será incomodado. Agora você está conosco. Discipline-se, e encontrará sua glória

Eu um milésimo me converti ao seu comando.

Foto de João Victor Tavares Sampaio

Setembro - Capítulo 3

Ficção é ficção. Arte é arte. Coincidências são coincidências. Na nossa realidade, chegava enfim o mês de setembro, a primavera dos campos e das pessoas, o dia mais claro, a aura que sopra possibilidades inéditas. Os parvos, de sangue quente e mente fraca, suspiravam por uma chance de perverterem a ordem quase natural onde estavam brutamente inseridos e sufocados. Seu fracasso era óbvio e evidente.
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A troca de peles é um ritual intrínseco aos seres de sangue frio. A cada três meses, ou seja, a cada ano em nossa realidade, isso ocorria uma vez. Trocar de pele, como quem troca de nome ou identidade, é tão repulsivo, tão nojento que nem mesmo os que o fazem suportam a manutenção dessa necessidade. Cabem em tarefas, aos engolidores, os maiores submetidos da sociedade vigente instaurada, dar cabo de sumir com os restos dessa sujeira, cabe aos engolidores auxiliarem e obliterarem quaisquer problemas que aflijam seus patrões e superiores, e cabe aos engolidores viver na miséria para não morrer a míngua, cabe aos engolidores sustentar o lucro e o luxo ao custo da própria dignidade ofuscada pela rapidez das coisas, a cópia de novidades, os valores em bolsas. Cabe aos pobres sustentar aos ricos, por motivos desconhecidos talvez justificados apenas pela ganância e pela sede de poder daqueles que mais podem, numa hipocrisia em tom que de tão cômico chega a ser trágico, um retrato de tantas realidades, inclusive as mais familiares. Política? Filosofia? A resposta é negativa. Trato de humanidade mesmo, de sentimentos, de coisas concretas na sua energia que teimam que colocar como abstratas. Trato de paixão, de suor, de um grito que irrompe da alma e que se afirma acima das expectativas conformistas dos ditos vitoriosos. Trato de algo que não se explica com palavras, do viver com simplicidade, de modo leve e até ingênuo. Trato do amor pelo amor, pelo sentir bem, pelo querer, pelo conciliar. É uma pena não haver o triunfo da paz sobre a guerra, da tranqüilidade sobre o conflito. É uma pena que a evolução carregue essa destruição, dita como inevitável.

É uma pena não encontrarmos o que tanto procuramos, tanto os frágeis como privilegiados.
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- Somos seguros. Temos tudo o que queremos. Pois então qual a causa de achar-nos tristes?

- Olha dona Clarisse...

- Dona? Dona, não. Somos amigos.

- Pois bem, Clarisse... Isso não sou eu quem tem que saber. Não tenho que saber e pronto! Mas que vocês me parecem tristes, me parecem.

- Você está certo... Mas precisamos dessa infelicidade... A vida é assim, o Luís me falou... Ele tem razão...

- Isso é você quem está dizendo.

- Ah, mas é verdade...

Meu coração batia como nunca antes apesar de eu não estar apaixonado.
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Desabafar por vezes faz bem.

- Clarisse, eu te trato tão bem, te dou tudo... Eu te compreendo... Mas você tem que entender que os meus atos são apenas vendo o seu melhor... Não fique assim tão pra baixo, eu te amo...
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Desabafar por vezes faz bem.

- Escuta aqui seu miserável, se eu ficar sabendo que você falou uma só palavra com a minha mulher eu vou te quebrar no meio, mato você, e ela nem vai ficar sabendo, e se você ou ela der qualquer sinal de que estão me passando pra trás eu arranco suas tripas e piso em cima delas, eu taco fogo em você, está me escutando?

Achei justa e aceitável a forma como o patrão me advertiu.
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- Dimas, você é muito resignado. Dimas, não é assim que se vive! Tenha vontade! Eu me preocupo contigo. É verdade. Você é uma das poucas pessoas em que eu confio de verdade. Eu sei que você não tem o melhor, mas o que você tem é muito bom. Você é uma boa pessoa, Dimas! Eu acredito que você pode ser feliz!

Continue calado, e agora com raiva.

- Dimas... Que mal eu te fiz...?

Senti ódio. Continue firme.

- Dimas... Fala alguma coisa...!

Jurei por dentro que nunca iria abrir a boca.

- Dimas... Por favor...!

- Meu problema é que eu te amo e nunca vou ter você.

Agora não tem mais volta. Vou morrer.
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No escuro do silêncio, chorando em um canto, esperei até que meu patrão surgisse e enfim me matasse da forma que eu merecia ou ele pensava, eu tremia o medo dos impotentes, o medo mais humano possível que se sente em vida, que é o medo da morte, o medo de ter existido em vão, ou melhor, ou pior, o medo de não ter existido de fato, o pânico dos julgamentos divinos contrários e da falta de um paraíso, o medo da verdade, mostrada por seres falsos e oportunistas.

Mas quando se abriu a porta não era o Luís Maurício.

Uma mulher linda e negra se confundia com a quase escuridão do quarto.

Foto de Marilene Anacleto

Trovoada de Vento

Trovões chegam a galope
Chicoteiam o horizonte
Com raios flamejantes
Assustam o povo em pânico
Com a grande velocidade
Com que arrastam tudo.
A água e o vento.

Água e vento.
Trovoada de vento.

Por onde passa a galopar
Varre, lava, revolve,
Tira tudo do lugar,
Enquanto nos varremos,
Revolvemos e choramos.
O amado abraçamos,
Os queridos beijamos.

Neste momento
Sou somente Amor,
Amor a todos,
Amor e medo,
Medo por todos.
E por longo tempo
Não quero dormir,
Não posso dormir.

Mas o abraço dos queridos
E o beijo do amado
Afastam-me do medo
De não amanhecer.

Foto de Ozeias

Indesejada

Vou começar por onde a minha história deveria ter terminado. Se a nossa vida realmente é escrita por algum deus, este não quis me dar o ponto final naquele momento. Ainda faltavam papéis, linhas tortas e muita tinta no tinteiro.
Sempre achei que a história de ver a vida diante de seus olhos, antes de sua tragédia, fosse coisa de filme. Mas naquele momento, enquanto aquela carreta se aproximava desgovernada e impiedosamente do meu veículo, pude me ver ainda menino de cócoras olhando para o meu cachorrinho de estimação, as pipas perdidas que caiam mansas e tortuosas pelo céu enquanto eu e meus amigos corríamos e pulávamos os muros dos quintais para pegá-las; depois vi o sorriso de Isabel, que me olhava timidamente no pátio da escola, depois o beijo, o arroz caindo sobre nós sob aplausos e gargalhadas, o seu corpo despido...
– Seu marido teve muita sorte. É a primeira vez que direi isso, mas foi justamente a imprudência que salvou a vida dele. Pouco depois da batida, o carro pegou fogo. Se ele tivesse usado o cinto de segurança, não teria sido arremessado para fora do veículo e... Bem, ele teve muita sorte. Comparado ao que poderia ter acontecido, seu marido está bem. Um braço quebrado, três dentes perdidos, alguns hematomas e arranhões.
– Quanto tempo ele ficará internado?- Ouvi Isabel perguntar. Sua voz soava preocupada, trêmula.
– Três ou quatro dias. Precisamos realizar alguns exames para nos certificarmos de que seu marido realmente não sofreu nada grave. Os pré-exames apontaram nada, mas preciso ter a mais absoluta certeza, pois algumas lesões apenas aparecem horas ou até mesmo dias depois do acidente. Esqueci de mencionar a forte pancada que seu marido sofreu na região da cabeça. Oito pontos.
Senti a mão de Isabel apertando a minha.
– E como está o outro motorista?
– Infelizmente, morto. Mas a causa da morte não foi este acidente, foi outro. A família já foi notificada do ocorrido.
– A morte veio buscar um e aproveitou a viagem para carregar o meu marido com ela.
O médico riu, embora a voz de Isabel tivesse soado solene. Aquele devia ser daqueles que encaravam o fim da vida como um simples fim de ciclo vital, deixando de lado o ar poético da criatura encapuzada e sua enorme e inseparável foice. Ainda assim, tomei simpatia por ele. Diferente dos outros, tinha uma voz amigável, como se minha esposa fosse uma conhecida, deixando de lado aquele ar áspero e autoritário.
– Então neste momento ela está irada. Bom, a senhora...
– Você, por favor.
– Você- Disse enfático, como se a ênfase estivesse se desculpando por ele- me dê licença, pois agora preciso olhar outros pacientes. Depois volto, e se precisar de alguma coisa é só usar o telefone.
- Antes, posso te fazer uma pergunta? É que o senhor...
– Você.
Isabel riu, desculpando-se.
– Você acredita em Deus?
Houve uma pausa. Senti-me tentado a abrir os olhos, mas decidi permanecer na falsa inconsciência. Pude ouvir as folhas das árvores lá fora se agitarem seguido de uma tímida trovoada.
– Já vi coisas que as pessoas consideram como um milagre creditado a Deus ou a algum santo- Disse o médico, agora sério- mas também vi coisas horríveis, difíceis até para mim que tenho experiência. Isso me faz perguntar onde está Deus, seu amor, sua clemência. Se ele ama todos da mesma maneira, por que uns recebem o milagre e outros não? Uma vez, uma criança com câncer morreu segurando a minha mão enquanto um estuprador sobreviveu a dezoito tiros. Há tantos motivos para sua crença quanto para a descrença.
Isabel permaneceu calada. Se bem a conhecia, ela estava olhando para o chão, movendo os lábios como se estivesse reproduzindo as palavras do médico, reflexiva. Ouvi a porta se fechar, depois eu pude ouvir o que pareceu ser a chuva, que foi ficando cada vez mais distante. Então adormeci.
Abri meus olhos. O quarto estava vazio, frio e escuro. Chovia com tanta braveza que pareciam cair pedras ao invés de gotas. Tentei me sentar, mas não tinha força, como se meu corpo pesasse uma tonelada.
– Cadê a enfermeira?
Como se ela estivesse esperando eu chamá-la, a porta se abriu. Mas não era nenhuma daquelas moças vestidas de branco com seus decotes propositais. Aquela era maior, e vestia um enorme capuz negro. Ao invés de uma bandeja, trazia consigo uma foice, que quase tocava o teto. Ao passar sob o ventilador, sua foice tocou a hélice que soltou algumas fagulhas parando de girar sob um incômodo barulho de metal em atrito.
– Merda! – Assustou-se a figura, pulando para trás. Não pude conter o meu riso. – Do que você está rindo?
A ponta da foice agora roçava o meu nariz. A lâmina era fétida e fria. Trêmulo de medo, olhei para ela. A princípio o seu rosto era um borrão negro, mas logo foi tomando forma. Os olhos eram grandes, vermelhos, e me olhavam com fúria; sua boca era miúda e arroxeada; o nariz era tão minúsculo que eu mal podia vê-lo. A morte era extremamente magra e feia. Não fosse aquele volumoso capuz que dava volume à sua pessoa e aquela foice ameaçadora, eu teria sentido pena. Sentia-me nauseado por aquele cheiro podre que invadia o quarto.
– Me desculpe. ENFERMEIRA! – Gritei. A morte gargalhou, mas de sua boca pareciam sair mais de um som, como se uma multidão gargalhasse.
– Pensou mesmo que ia escapar de mim? Tudo bem, você não é o único. Sempre repito essas sete palavras para outros tolos, seja em francês, grego, inglês, russo, indígena. Pode me dizer a vantagem de sobreviver quando você sabe que é só uma questão de tempo? Você vê o corpo em um caixão e pensa “coitado”, como se somente ele fosse o único ser mortal, deixando de lado a ideia de que um dia você também estará na mesma situação.
– Prefiro morrer a ficar velho e feio como você!
– Sou feia, mas sou eterna e invencível!- Bradou ofendida- A vida é linda, mas de nada serve toda a sua beleza. Ela não é eterna, muito menos invencível. E é a mim que vocês recorrem na dor quando a vida prova por si só que a beleza não é o suficiente, quando a dor, a solidão, a loucura os assolam. Veja.
A morte apontou para a ponta do cabo de sua foice. De lá saia um fino fio de fumaça que em direção à porta. Com seu enorme e esquelético indicador, ela puxou para si a fumaça. Apoiou o cabo no chão e então começou a puxar o fio. Então comecei a ouvir gritos, lamentos e choros. De repente surgiu um senhor, cabisbaixo, preso ao fio por uma algema. Depois um menino, que lançava seu olhar curioso para a morte.
– O que é isso?
– As duas últimas almas que recolhi. Um velho conformado e uma criança. Aposto que você está sentindo pena do garoto, mas não se esqueça que ele um dia seria um velho e que esse velho já foi uma criança. Não vê? A vida é ilusão, apenas uma aparência.
Olhei novamente para o menino que mantinha agora um olhar de fascínio para a morte.
– O que ele está vendo?
– Um palhaço. Nossa conversa chega aos ouvidos dele como uma história, a sua preferida em vida.
– Mas então você só é feia para mim porque apenas eu a vejo assim?
– Sou feia e velha para você fisicamente, e feia e velha para o mundo filosoficamente.
– E este velho?
– Não consegue me olhar por vergonha. Precisamos ir.
Ela caminhou em minha direção. Em pânico, tentei me debater, mas estava eu ainda permanecia pesado. Tentei gritar, mas as gargalhadas da morte abafaram o meu grito.
Acordei com a trovoada e o coração ribombando. Isabel, que lia uma revista ao meu lado, guardou-a e sorriu para mim.
– Que susto! – Disse-me beijando a bochecha.
Ainda assustado, sentia o alívio que me invadia ao perceber que o encontro com a morte fora apenas um pesadelo. Toda aquela conversa com a morte, aquela sua imagem feia, aqueles sons perturbadores, aquelas duas almas presas ao fio pertenciam à minha mente.
Sentir os lábios de Isabel me trouxe novamente à vida. Ainda com o corpo dolorido e com o braço esquerdo quebrado, consegui puxá-la para junto de mim. Queria prová-la, senti-la novamente, pois queria provar mais uma vez o gosto da vida. E era bom.
Terminado os exames, voltei para casa. Como se o céu estivesse sendo gentil comigo, Guandu estava nublado e frio. Em frente ao portão de casa, uma faixa dizia: BEM VINDO DE VOLTA. Assim que pus meus pés na varanda, uma onda de aplausos e assovios quebrou o silêncio. Rostos familiares foram emergindo da casa e do quintal, sorridentes.
- Não foi dessa vez, hã? – Disse-me Eustáquio com leves tapinhas nas costas- Você, hein?
Depois vieram outros. Eu estava feliz por rever aqueles meus amigos, mas uma pequena ponta de tristeza havia crescido em mim. Enquanto os observava comendo o bolo, conversando, rindo, lembrava da morte e suas palavras em meu sonho. Por mais que a situação tivesse sido apenas uma imaginação minha, aquelas palavras não deixavam de ser uma verdade. Naquele momento estávamos comemorando o fato de eu ter sobrevivido ao acidente, mas no fim eu morreria, bem como todos os que estavam ali. Ninguém parecia ter noção daquilo, ou então não se importavam.
– Está bem, amor?
– Sim.
Isabel estava mais linda do que de costume naquele dia. Olhava-me com ternura a mais. Seus lábios ágeis e sorridentes pareciam esconder alguma coisa dos outros, que era só pra mim. Eram quase sete da noite quando os últimos amigos presentes se despediram de nós. Éramos apenas nós dois novamente. Então seus olhos e lábios se confessaram. Seu vestido azul caiu, deixando-a apenas de lingerie vermelha.
– Agora sou eu quem vai cuidar de você.
Fizemos amor na varanda, no quarto e na sala.
Quanto ao meu carro, era óbvio que eu estava um pouco ressentido. Não pelo prejuízo, pois havia o seguro, mas é que aquele meu veículo tinha um valor que se compreendia além do material. Por exemplo, foi nele que eu conheci a maravilha do sexo oral ao som de Jimi Hendrix. Ali conheci também pela primeira vez a textura da boceta umedecida pelo tesão que eu proporcionava a ela.
Discretamente, limpei o canto do olho onde uma lágrima teimava em escapulir. Estava diante do meu carro. Não era mais azul. A parte dianteira estava irreconhecível. Vendo-o ali é que tive noção da minha “sorte”. É entre aspas mesmo. Para mim, a sorte não é você não escapar de um acidente ileso, ou com vida, sorte é você não se envolver em nenhum acidente.
– É difícil. A gente trabalha pra ter as coisas da gente. Às vezes o carro é o meio de a gente conseguir o sustento da família.
– É.
– Mas graças a Deus que você tá vivo, não é?
Seu hálito fedia a cachaça. Seus cabelos grandes, brancos e encardidos esvoaçavam com o vento quente. Com uma mão engraxada protegendo o olho do sol, olhou para o céu.
– Acho que amanhã chove. Pode olhar aí despreocupado, tá? Precisando é só chamar. Juca!
Pensei que algum rapaz fosse aparecer, mas logo vi um cachorro da raça vira lata, acinzentado, surgir na porta de sua oficina. Com o rabo eufórico, seguiu o seu dono.
Aproximei-me do meu carro, toquei o metal distorcido.
– É isso aí, companheiro.
Dei meia volta e saí dali.
– Ó o picoléééé! – Gritou um moleque descendo o morro com seu carrinho. Para proteger a cabeça, usava um boné que estampava um vereador acenando com o dedo polegar e um sorriso amarelado; sua camisa excessivamente grande da seleção brasileira terminava pouco acima do joelho. Os picolés não eram muito bons, mas as pessoas compravam para ajudá-lo. Seu pai era aleijado, mas conseguia alguns trocados anunciando ofertas em portas de lojas e farmácias. Sua mãe falecera de dengue quando ele tinha ainda cinco anos de idade.
– Me vê um de milho verde. – Pedi enquanto caminhava em sua direção. Ele parou, abriu a tampa do carrinho e começou a remexer sua mão à procura do picolé.
– O último – Estendeu-me o picolé com um sorriso no rosto. Depois ficou sério novamente– Você não é o moço que bateu de carro vindo de Colatina?
– Foi.
Mostrei-lhe meu braço engessado. O menino assentiu, fechou tampou novamente o carrinho e estendeu sua mãe.
– Cinqüenta centavos.
Retirei do bolso uma nota amassada de dois reais e disse-lhe para ficar com o troco. Olhou para a nota, depois para mim.
– Obrigado, moço – Pegou o seu carrinho e continuou a andar, olhando-me novamente com um sorriso no rosto que parecia agradecer mais uma vez. – Ó o picolééé!
Cheguei em casa e encontrei Isabel adormecida no sofá. Sua cabeça repousava sobre as mãos em concha e suas pernas estavam encolhidas. Lembrava uma menina que, depois de fazer muita arte, decide descansar um pouco no sofá da avó. O aparelho de som estava ligado em volume ambiente e tocava La mer. Estava ouvindo o cd de clássicos franceses que eu havia comprado para ela numa loja de CDs certa vez em São Paulo.
Criada com a avó, que havia passado grande parte da vida na França, Isabel tomou gosto pela música francesa. Morria de tesão quando ela cantarolava pela casa suas músicas preferidas, fazendo aqueles biquinhos franceses.
Despertou sorrindo para mim. Fui até ela, beijei-lhe e perguntei se queria tomar um banho comigo. Ela aceitou de prontidão, pois estava sentindo muito calor. Aumentou o volume do som e fomos para o banheiro.
Nem aquela água fresca conseguia apagar aquele fogo que nos envolvia naquele momento. Como se já não bastasse o sol, nos incendiamos. Minha boca indecisa não sabia se beijava o seu corpo ou se o mordia. Sua mão percorria pelo meu corpo me ensaboando com delicadeza enquanto nos beijávamos. O sabonete escapuliu de sua mão.
- Pega. -Ordenei.
Ela abaixou-se lentamente enquanto eu observava o seu gesto gracioso esperando o momento certo. Então me apoderei de seu corpo.
Quase tudo foi ficando normal como antes. Meu dentista me devolveu os dentes que faltavam, as pequenas dores que ainda assombravam o meu corpo haviam desaparecido quase que por completo, e retirei os pontos de minha cabeça. Faltava apenas o gesso, mas ainda não era tempo. Tinha que ficar mais uma ou duas semanas com o braço engessado.
Como ainda estava impossibilitado de voltar ao meu trabalho, passava a maior parte do tempo em casa. Já estava sentindo falta das máquinas de escrever do cartório. Algumas vezes, sentado no sofá imaginando formas nas manchas do azulejo, tinha a impressão de ouvir as teclas das máquinas. Já estava começando a ficar chateado com toda aquela ociosidade. Não, não estava enjoado de ficar o dia todo com Isabel, jamais. É que também queria sentir novamente aquela vontade de voltar para casa e tê-la de volta para mim. Fazia falta a falta dela.
- Que você acha de um bolo de banana?- Indagou-me Isabel, fechando o livro e olhando para mim com um sorriso de quem acaba de ter uma grande ideia. E de fato era. A tarde estava nublada e fria. Dias assim sempre me deixavam com mais fome do que de costume.
Outro detalhe em Isabel que me deixava excitado era o seu quadril em movimento enquanto ela batia os ovos para o bolo. Por muitas vezes no banheiro fantasiei aquela imagem. Observando-a do sofá, tive uma ideia: iria realizar minha fantasia.
Levantei-me e caminhei em sua direção lentamente. Agarrei-a por trás.
- Ai, que susto.
Beijei-lhe o pescoço, apertei sua cintura e deslizei com minha mão por sua coxa. Rindo, pediu que a deixasse fazer o bolo, mas havia dito por dizer. Estava tão derretida quanto a manteiga caseira sobre a pia. Minha mão encontrou a sua boceta, que já estava molhada. O ritmo da colher diminuiu, mas logo aumentou novamente. O som da colher de pau batendo na bacia de plástico misturado ao gemido de Isabel estava me deixando tão excitado que eu corria o risco de a qualquer momento explodir em gozo. De repente a velocidade da batida aumentou tanto que parecia ser uma batedeira a executar o serviço ao invés de Isabel. Seus gemidos estavam aumentando. Podia senti-la tremendo de prazer, até que por fim ela não agüentou. Empurrou a bacia, largou a colher, soltou um grito orgástico e ergueu-se na ponta dos pés, caindo de costas para mim, que sorria satisfeito com a cueca molhada.
Embora estivesse fazendo frio, ambos estávamos suados. Era como se a casa tivesse aumentado quarenta graus. Isabel ainda não havia conseguido se recompor, tendo ainda leves espasmos.
- Vá tomar um banho e me deixe terminar esse bolo, homem de Deus!- Expulsou-me Isabel em meio ao riso.
- Não quer vir comigo?
- Não- Voltou-se para a bacia, dando um longo suspiro.
Apesar dos quatro anos de casados e do sexo abundante, não tínhamos nenhum fruto gerado. Também nunca chegamos a ter uma discussão sobre filhos. Para nós, estava bom do jeito que estava. Algumas pessoas, quase todas, têm a mania de achar que filho é a obrigação de um casal. Mas, tanto para mim quanto para Isabel, a obrigação de um casal é nada mais do que o amor e o prazer. Não usávamos camisinha, portanto, se por acaso uma criança fosse gerada ela seria aceita.
Finalmente o bolo havia assado. O cheiro fez com que eu despertasse do meu cochilo quase que instantaneamente. Da cozinha, ela olhava para mim sorridente. Retribuí o sorriso, mas dessa vez com um misto de decepção. É que durante esse breve sono eu vislumbrei um bebê em nossa sala. Enquanto espalhava os brinquedos no tapete, olhava para Isabel, que tirava do forno o bolo. Era tomado por uma sensação boa, calorosa, de gozo. Quando despertei e não notei aquela pequena figura ali, foi estranhamente triste.
- Tive um sonho diferente, hoje.
- Como foi?
- Nós tínhamos um bebê. Ele estava ali no tapete brincando enquanto você assava o bolo. Estranho, é que mesmo não sabendo como é ser pai, senti falta.
Minha confissão pegou Isabel de surpresa. Pude ver nos olhos dela uma faísca de tristeza. Sorri para ela, que olhou para o tapete.
- Às vezes também vejo bebês pela casa, durante o sono. Quando vejo alguma grávida exibindo sua barriga, fico imaginando quando for a minha vez, se ela chegar.
Ficamos em silêncio por um tempo. Ambos mantínhamos os olhos no tapete, absortos em nossos anseios ocultos. Percebi nos olhos de Isabel as lágrimas se formando. Seus lábios que há pouco jaziam imóveis agora tremiam vacilantes. Em quatro anos aquela foi a primeira vez que vi a vi chorar de aparente tristeza. Talvez fosse hora de compreender que um filho era algo além de uma obrigação, como uma unificação de dois amantes; um ser sagrado. Não ter filho é uma ferida que, quando não tocada, é indolor. Naquele momento estávamos sentindo, e era ruim. Eu queria dizer alguma coisa para confortá-la, mas havia um nó em minha garganta. Sentia que, se começasse a falar, também choraria. Decidi permanecer em silêncio, até que por fim ela voltou a falar.
- Não somos culpados de nada. – Forçou-me um sorriso, servindo-nos de mais bolo.
Voltamos ao nosso silêncio reflexivo. Mastigávamos mecanicamente. Nosso café já estava morno. Havíamos nos esquecido que dias nublados e frios tinham melancolia também.
- Podemos ir ao médico e ver se há um problema em nós- Sugeri.
- Vamos deixar assim. Se tiver que vir, virá. A ciência pode dar esperança, mas também pode arrancá-la.
- Do que está falando?
- Sabe a Madalena? O médico disse que ela não podia ter filhos, nem com os mais modernos tratamentos. Sabe o que é uma mulher que sonha ter um filho ouvir isso do médico?
Assenti com a cabeça, mas no fundo eu não sabia como era. Há sensações e sentimentos intrínsecos aos gêneros. Por exemplo, um chute no saco. Uma mulher nunca vai saber como é a dor. Talvez aquela notícia que Madalena recebera fosse um chute no saco da esperança. Isabel queria conviver com a incerteza da esperança de ter um filho. A angústia de uma espera esperançada era muito menor do que a certeza de que o que se anseia nunca virá.
O resto do dia foi silencioso. A noite chegou depressa, mas o sono não. Os grilos no quintal, os latidos dos cães vadios, os passos lerdos dos velhos crentes, o motor da geladeira ecoava pelo nosso quarto. Levantei-me, fui para o quintal, acendi meu cigarro. Olhei para o céu que já não estava mais nublado bem no instante em que uma estrela cadente riscou o negro. Sorri, pois havia me lembrado da infância quando estrelas cadentes, quando vistas e não alarmadas, davam sorte. Ou que contar estrelas dava verruga. Mas o que custava um pedido? Então pedi à estrela um filho. Quem sabe Deus, se ele existisse mesmo, não ficaria sensibilizado e nos desse um filho?
- Pensei que tivesse largado o cigarro- Surpreendeu-me Isabel, sentando-se ao meu lado, tomando o cigarro da minha boca e dando um trago. Abracei-a.
- As pessoas falam que o cigarro mata. Sabe de uma coisa? Um dos poucos luxos dado ao homem é poder escolher a forma como vai morrer. Se eu quero morrer porque fumei muito, ótimo.
Isabel gargalhou, aquecendo-me. Um vento gélido fez com que o cabelo dela roçasse em minha nuca. O cheiro de cigarro misturado ao de xampu era uma combinação interessante. E lá estávamos nós dois no quintal, conversando banalidades, rindo um do outro, contando estrelas, fumando o terceiro cigarro como se aquele dia houvesse começado naquela noite.
Finalmente chegara o dia de arrancar o gesso. Pedi ao médico que me desse de recordação, pois nele havia marcas de batom de cores variadas que Isabel deixara. Por mais que Isabel teimasse em me levar a Colatina em sua Brasília azul que herdara de sua avó, preferi ir de ônibus. Há tempos sentia vontade de me sentar em meio a estranhos com seus rostos e cheiros distintos. Gostava de ver os velhos cochilando, ouvir as conversas na tentativa de captar sentido nas histórias que se entrelaçavam. Mas naquele dia apenas uma pessoa falava. De pé, olhando para todos com severidade, sacudindo a bíblia enfaticamente acompanhando as palavras, uma mulher pregava para todos nós.
- O senhor, nosso salvador, está chegando. E vocês pensam que ele veio buscar pessoas pecadoras como vocês? Não! Ele quer pessoas de bem, que dedicaram suas vidas a ele. Vagabundos, prostitutas, viciados, adúlteros e assassinos não terão lugar no reino de Deus.
Enquanto ela falava, algumas crianças olhavam para elas com ar de medo. Outros olhavam pela janela as vacas subindo os morros, pastando. Uma senhora gorda na poltrona ao lado olhava para ela com cumplicidade, concordando com a cabeça em cada palavra da mulher. Seus olhos intimidadores iam de um passageiro ao outro, até que, percebendo que eu a encarava, eles pararam em mim.
- A morte é o preço que paga o pecador! Deus vê tudo o que você faz aqui e anota tudo em seu caderno para que no dia do juízo ele possa te julgar.
Desviei meus olhos para a janela. Tornei a olhar para ela, que ainda me encarava. Pigarreei, levantei-me e fui ao banheiro. Seus olhos me seguiram, seu tom de voz aumentou.
- Os pecadores pensam que podem se esconder de Deus, mas aos olhos dele nada escapa! Eu estou aqui a pedido dele, pois ele me deu a missão de avisar a sua chegada. Sou fiel a ele, pois sei que sua promessa se cumprirá. DEUS É FIEL!
- E feliz é a esposa dele!- Gritou um garoto.
- Menino! – Advertiu sua mãe, ou tia. Pude ouvir as gargalhadas e não me contive. Dei a descarga e saí, vendo que a mulher havia se sentado, cálida.
- Você teve uma boa enfermeira- Brincou o médico, enquanto tirava de meu braço o gesso. Disse-me depois que eu poderia sentir uma dificuldade em esticar o braço, mas que logo, logo ele voltaria a ter a sua flexibilidade natural.
Já na rodoviária de Guandu, uma cigana me abortou.
- Homem bonito, de bom coração, é amado e invejado. Por um real te falo o nome das amadas e outras coisas que a sua mão mostrar.
Como havia justamente uma moeda de um real em meu bolso, tirei-a e entreguei à cigana, dizendo-lhe que não era preciso ler a minha mão, pois sabia bem o nome da minha amada.
- Não estou mendigando, não, moço. Não posso aceitar a moeda se o moço não me deixar ler a mão. Moço acredita que a mão da gente traz a nossa história?
- Não.
- Então moço não perde nada se me deixar ler. Vejo que tempo pro senhor não é preocupação no momento.
Olhei em volta, mas a rodoviária já estava deserta, salvo um vira lata magricela que se abrigava sob um banco de cimento. Coloquei minha sacola no chão e estendi-lhe a mão.
- Moço tem tanta linha na mão! Essa linha aqui, ó, diz que sua felicidade ainda não é completa. Hum, essa linha está em branco, então quer dizer que moço não tem filho, ainda. Ainda, porque vejo a aproximação dessa outra. Moço tem vontade de filho?
- Até que tenho.
- Pois moço terá. - Olhou-me com um sorriso, depois voltou para a minha mão, voltando ao seu ar de concentração, como se realmente houvesse alguma coisa em minha mão- É tanta coisa escrita e falha nessa sua mão! Tem uma linha falhando... Moço passou por uma situação difícil? Perda na família, acidente ou alguma coisa assim? Seja o que for, foi algo que te afetou diretamente.
Olhei para ela com certo ar de incredulidade. Mas ainda não me convencia. Qualquer um que morasse em Baixo Guandu ou estivesse por lá nos últimos tempos saberia do meu acidente. As notícias por lá corriam rápido.
- Qual o seu nome?- Perguntei-lhe, interrompendo-a. Ela me olhou, sorriu mais uma vez e fez um gesto para que eu me sentasse ao banco.
- Moço precisa saber que não sou de dizer meu nome assim para os estranhos.
- Perguntar seu nome é tão indecente quanto pedir para ler a minha mão.
A cigana gargalhou batendo as mãos, fazendo com que o cachorro sob nós se assustasse, saindo ao galope para a rua.
- Moço de língua afiada. Já, já, vou dizer, assim que eu terminar sua mão. Moço me interrompeu numa linha muito importante. Deixe-me ver. Moço ama a esposa?
- Sim.
- Moço também é muito amado pela mulher. Mas isso o moço já sabe, não é?
Assenti com a cabeça, rindo para ela.
- Mas o moço vai ter que se preparar. Está vendo aqui, ó?- Indicou-me a cigana uma linha quase imperceptível. – É a linha da paixão.
Paixão? Ri mais uma vez diante do absurdo. A cigana estava indo muito bem em seu número de adivinho, mas envolver paixão foi um erro que a maioria dos ciganos comete. Sempre paixão, dinheiro e rosas vermelhas. Reparei que ela havia se calado. Olhei para ela, que olhava fixamente para a minha mão. Sua boca avermelhada jazia entreaberta, sua respiração quase que havia cessado. Tentei fazer um movimento para retirar minha mão, mas ela a segurava com força.
- O que há de errado?
A cigana parecia não me ouvir. Fiz um pouco mais de força, fazendo com que ela despertasse. Lentamente suas mãos se afrouxaram, deixando a minha livre. Seus olhos fixos encontraram os meus, que a olhavam curiosos. Senti um leve arrepio na nuca.
- Chavela.
- O quê?
- É o meu nome- Disse a cigana, levantando-se. Seu rosto assumia um ar preocupado.
- A leitura acaba em paixão?
- Algumas coisas estão confusas. Melhor moço ter cuidado.
- Acidente?- Sorri-lhe, como se tivesse contado uma piada.
- Tem muita coisa que moço desconhece nessa vida. Hoje é moço quem ri, amanhã é o destino. Mas não sei se moço acredita nessas coisas.
A cigana virou as costas. Antes do terceiro passo, virou-se para mim.
- Coloque um copo com água debaixo da lua no seu terreiro e beba da água ao meio dia. É bom pro moço.
Seja lá o que for que a cigana tenha visto, não parecia ser bom. Repreendi-me por estar preocupado com aquilo. Não acreditava naquelas coisas, havia feito por distração. No fim era tudo a mesma coisa. Até que para um real, a cigana havia feito muita coisa: entretenimento e receita para simpatia.
Cheguei em casa ávido por um banho. O dia estava muito quente. Chamei por Isabel, que não respondeu. Então reparei na geladeira um bilhete.
Fui á casa da Ana. Fiz suco de acerola.
Beijo, Isa.
Ana era uma grande amiga nossa. Foi ela quem nos apresentou, ainda no colegial. Morava no centro da cidade, e era casada com o dono do supermercado. As pessoas na cidade diziam que o casamento era por interesse, pois o homem era desprovido de beleza. Baixo, calvo e barrigudo. Já Ana era linda. Tinha longos cabelos ruivos, era alta e de corpo invejável. Eu me masturbei pensando nela por muito tempo até a chegada de Isabel. Com a morte do marido, Ana se casou com um entregador do mercado. Com esse casamento, as pessoas diziam que o casamento fora arquitetado por Ana e pelo pobre rapaz, que nada tinha a ver com o destino infeliz do falecido.
Sabia que as visitas de Isabel à casa de Ana eram longas. As duas sempre saiam para assistir a algum filme no cinema, ou preparavam algum bolo ou coisa parecida. Tomei o meu banho, servi-me de um pouco de suco, peguei um pedaço que ainda restava do bolo, liguei o som, deitei no sofá e adormeci.
Estava no ônibus. Não havia ninguém ali exceto a cigana, que me olhava com um olhar intimidador, que me pareceu familiar. Trajando seu longo vestido vermelho, segurava uma grande bíblia. Esbravejava coisas que eu não podia compreender. Tentei me levantar, mas não conseguia. Embora o ônibus estivesse parado na estrada, podia senti-lo sacolejar. Uma vaca que pastava defecou. Mas ao invés de sua bola de fezes esverdeada cair, caiu um bebê. Olhei novamente para a cigana, cujo vestido agora começava a se incendiar. Tentei alertá-la, mas não conseguia movimentar minha boca. O fogo de seu vestido correu pelo chão do ônibus, subindo pelas poltronas em direção ao teto. Meus pés começaram a queimar, mas não podia fugir. A cigana estava derretendo como se fosse feita de parafina. Reparei que meus pés também derretiam. O líquido denso que outrora fora a mulher começou a rastejar pelo chão incendiado em minha direção, envolvendo-se em meu braço, transformando-se em gesso. De repente, o ônibus começou a derreter. Todo o veículo havia derretido, exceto a parte onde eu estava. Agora podia ver a estrada, onde uma enorme carreta surgiu em minha direção, desgovernado. No carona, um homem que parecia ser o motorista agonizava. Ao volante, sorridente, a criatura encapuzada me encarava. A ponta da foice saltava da janela. Desesperado, levantei-me. Mas meus pés estavam tão moles que afundaram no chão carbonizado do ônibus.
Acordei no chão da sala, com a mão na testa.
- Mal tirou o gesso do braço e já quer colocar de novo?
Levantei-me enquanto Isabel retirava do congelador a forma de gelo. Embolou alguns cubos no pano de prato e os trouxe, agachando-se diante de mim, que havia me sentando no sofá, com a mão na testa.
- Caramba.
- Deixa eu ver.
Afastou minha mão, colocando o pano com o gelo no local. Massageou-o por uns minutos, dando leves sopros no galo que havia crescido em minha testa. Reparei que sua boca formava um bico trêmulo, como se já não mais agüentasse segurar o riso que teimava em sair. Então ela vacilou, soltando a gargalhada. Também ri dando um leve tapa em sua testa.
- Acho melhor a gente fazer um plano de saúde. – Brinquei. Isabel concordou ainda aos gargalhos.
Vi que ainda não havia anoitecido, e que nem passavam das cinco e meia. Estava molhado de suor, então decidi tomar um banho. Do banheiro podia ouvir os meninos lá fora brincarem de pique bandeira. Quando era menino, também brinquei naquela rua. Morrer era uma coisa que só acontecia à gente grande. E não éramos gente grande, por isso corríamos, ríamos como se a vida fosse uma eterna brincadeira. Lá estava eu, ouvindo o passado, absorto no presente perturbador. Aquele segundo pesadelo, bem como o acidente, me lembrava mais uma vez que eu não era imortal.
Para quebrar o silêncio que se instalava durante o jantar, perguntei a Isabel como estava Ana. Respondeu-me que Ana estava bem, e que ela viajaria com o marido para o Rio de Janeiro na semana que vem. Ficariam por lá durante um mês inteiro hospedados na casa de praia de um primo.
- Ela chamou a gente pra ir junto.
Parei de mastigar por um momento. A ideia era interessante, e eu tinha férias a serem tiradas. Por um raio de segundo, minha boca se abriu para dizer que havia adorado a ideia, e que ela fizesse as malas. Mas estava precisando trabalhar, ocupar minha cabeça. Disse-lhe que, se quisesse, ela poderia ir. Isabel discordou, disse que também não estava muito a fim de ir, e que até havia recusado o convite na mesma hora. Insisti que ela fosse viajar com a amiga um pouco.
- Você não duraria duas semanas.
Rimos. Ela consultou o relógio, levantou-se da mesa e foi para o quintal, deixando o prato ainda na metade. Voltou com um copo de água na mão, colocando-o sobre a mesa.
- O que é isso?
- Simpatia. - Respondeu-me, virando copo o copo de uma vez. – Receita que uma cigana me deu hoje. Pediu para ler minha mão por um real.
- Você aceitou?
Isabel deu de ombros, voltando ao seu prato.
- Apesar de eu não acreditar muito nessas coisas, aceitei a ideia.
- E o que ela disse?
- Que “moça” vai ter um filho, que marido de “ moça” ama ela, que minha mão tinha muitas linhas, essas coisas. No fim, disse para eu ter mais cuidado com meu marido, e que eu colocasse um copo de água sob o sol ao meio dia, e que depois o retirasse à meia noite e bebesse a água. Mais cedo, quando você caiu do sofá, lembrei da cigana.
Pensei em dizer a Isabel que uma cigana, provavelmente a mesma, havia me abordado hoje, e que havia me dito quase que as mesmas coisas. Mas preferi assentir sorridente, como se estivesse achando graça de tudo aquilo.
Terminamos o jantar em silêncio. Como havia tirado um longo cochilo naquela tarde, não estava com sono. Já Isabel, com a cabeça recostada em minha coxa, bocejava incessantemente diante da televisão. Logo adormeceu, enquanto eu, olhando para a TV, ruminava a história que ela havia me contado. Por coincidência ou não, uma cigana havia abordado nós dois no mesmo dia, dizendo quase que as mesmas coisas. Depois a mulher disse para Isabel tomar cuidado com “o seu marido”. O que ela quis dizer com isso? Eu estaria prestes a me apaixonar por outra mulher, o que era impossível, ou eu novamente corria um risco de morte? “Deixe de bobeira”, pensei, “ você nunca acreditou nessas coisas, não vai ser agora que você vai acreditar”. Desliguei a TV, acordei Isabel e fomos nos deitar.
- Desse jeito que vamos ter filho?- Sussurrei beijando-lhe o pescoço. Ela retribuiu, puxando minha bermuda.
Acordei com uma batida na janela. Abri-a e dei com os meninos lá fora, olhando para mim, de ombros erguidos, como se estivessem com medo. Vi então a bola sobre a grama, encostada no nosso muro gradeado.
- Podem pegar a bola- Disse a eles, que logo relaxaram, agradecendo e se desculpando. Fechei a janela e fui para a cozinha. Eram dez e meia da manhã.
- Bom dia, dorminhoco. Você ouviu a pancada na janela?
Disse-lhe que eram os meninos brincando lá fora, e que, sem querer, haviam acertado a janela com uma bola. Era sábado, dia em que a rua se infestava de crianças. Nada mais natural do que algazarra e coisas voando pela sua janela.
Propus a Isabel que saíssemos à noite. Poderíamos comer uma pizza, assistir a um filme ou alguma coisa assim. Isabel aprovou a ideia com um largo sorriso no rosto. Passamos o resto do dia na sala. Eu, lendo um romance; Isabel, pensativa com a tampa da caneta na boca a espera de uma luz para completar a cruzadinha. Para quebrar o silêncio incômodo, Isabel havia ligado o toca discos que pertencera à sua avó. Como era de esperar, o disco era de uma cantora francesa que, segundo Isabel, era um dos maiores ícones do cenário musical da França, e até do mundo. Dentre todas as cantoras que Isabel me apresentara, aquela era a minha preferida.
Padam... Padam... Padam...
Fomos ao cinema, mas largamos o filme na metade. A história não era muito boa, mas desistimos ao ver que o que jorrava do pescoço do personagem mais parecia suco de morango do que sangue. Enquanto saíamos da nossa fileira para ir embora, passei por uma mulher que me olhava com um meio sorriso. Seu olhar soava maldoso. Antes de sair, olhei novamente para ela, que ainda me encarava. Moveu os lábios num gesto que interpretei como um beijo.
Do cinema fomos a uma pizzaria, onde encontramos com outro casal amigo nosso. Juntamos nossas mesas e comemoramos a descoberta de que eles seriam pais. No caminho de volta, Isabel não falou nada. Respeitei o seu silêncio abraçando-a. Compreendia o seu ressentimento. Assim que chegamos em casa, Isabel foi para o quarto. Pensei tivesse ido se deitar e chorar até adormecer. Demorei um pouco para entrar, mas assim que entrei, ela avançou em minha direção. Puxou minha camisa com força, fazendo com que alguns botões caíssem no chão. Não sabia se aquele ato era o desespero de ter um filho ou se ela realmente estava com vontade de transar comigo.
Domingo, como quase sempre são os domingos, foi um dia enfadonho. Para piorar, havia a ânsia pelo próximo dia onde eu finalmente voltaria a trabalhar. Isabel me pediu que comprasse o frango assado. Na volta, dobrando a esquina da Dez de Abril, dei de cara com o carro da funerária, seguido de outros carros lentos, e pessoas com seus pesares. Uma senhora passou de mãos dadas com um garoto, que me olhava com seus olhos que pareciam me perguntar por que eu também não os seguia. Tropeçou mas mal teve tempo de cair, pois a senhora, provavelmente sua avó, já o havia erguido pelo braço. Sempre achei que domingo fosse um dia para morrer. Durante a volta, fiquei imaginando o cortejo seguindo o meu caixão.
Acordei com o despertador e Isabel puxando o cobertor. Levantei da cama quase que no mesmo instante, ansioso. Até havia sonhado com meus dedos ágeis sobre as teclas da máquina de escrever, que produziam sonoros claps. Mal tomei café, despedindo-me de Isabel com um beijo. Peguei sua Brasília emprestada e fui trabalhar.
Fui recebido com aplausos calorosos. Mariana, nossa rechonchuda e simpática ajudante, surgiu de trás da cabine com um pequeno bolo com meu nome em glacê vermelho. Não esperava toda aquela agitação pela minha volta. Agradeci a todos pela surpresa, dizendo que estava feliz em poder voltar trabalhar com meus colegas e amigos.
Foi logo que me sentei em minha cadeira que a vi entrar. Tinha longos cabelos cacheados e louros. Seu vestido era de excessivo decote, e seus lábios eram carnudos e avermelhados. Andava como se estivesse em um concurso de beleza. Era alta, mas apenas sob o efeito das plataformas de seu sapato. Então reconheci aquela figura graciosa que acabara de se sentar diante de mim, desejando-me bom dia com sua voz mansa e hálito bom. Ela era a mulher que me olhava no cinema. Havia até me esquecido dela e de seu gesto com os lábios, que me pareceram um beijo.
- Bom dia. – Respondi por fim, pigarreando, olhando para a minha máquina de escrever.
- Gostaria de fazer uma certidão de óbito.
O falecido era um senhor de setenta e cinco anos, vítima de uma pneumonia. Era o seu único tio, e ela, sua única sobrinha que havia vindo de Santa Tereza para cuidar dele. Lágrimas correram de seus olhos. Ela sorriu para mim, desculpando-se. Disse-lhe que não havia por que se desculpar, e ela, sorrindo-me mais uma vez, disse que eu era gentil.
Assim que ela saiu, pensei comigo se ela realmente havia olhado para mim e me mando um beijo ou se aquilo não passou de uma impressão. Era meiga, de ar inocente. Era sensual, hipnotizava com os olhos, mas parecia não ter consciência do seu poder de sedução.
Era hora do almoço, e eu seguia para casa. Passei em frente à praça, e lá estava a sensual figura desfilando. Vi que de sua bolsa uma pequena agenda caiu. Como ninguém pareceu notar o acontecido, encostei a Brasília. Peguei sua agenda e corri para alcançá-la.
- Oi. – Sorriu-me.
- Sua agenda.
- Ah, obrigada. Ando tão distraída...
Esticou o braço para pegar sua agenda, tocando rapidamente a minha mão. Estava excitado.
- Tudo bem. Acontece. – Disse, enxugando minha mão suada na calça.
Ia me retirando, quando ela me perguntou se eu estava indo almoçar. Respondi que sim, e então ela me perguntou se eu não gostaria de almoçar com ela.
- Deixei na panela de pressão uma carne com batata. Já deve estar pronta.
Não sabia ao certo se deveria aceitar. Certamente Isabel estava me esperando para almoçar em casa com algum prato especial para comemorar a minha volta. Mas aquela criatura encantadora ali me encantou de tal maneira que acabei aceitando. A casa onde seu tio morava era logo na esquina.
Além de tudo era boa cozinheira. Acabei repetindo a carne, o que ela tomou como elogio. Durante o almoço, contou-me que o velho falecido era o seu único parente vivo. Mais uma vez chorou, então afaguei suas mãos para confortá-la. Esse gesto fez com que ela me olhasse surpresa. Desculpei-me, mas então ela sorriu dizendo que quem deveria se desculpar era ela por estar se lamentando para um convidado em plena hora de almoço.
Quando saí, ela me disse que prepararia outro prato ainda melhor se eu prometesse almoçar com ela no dia seguinte. Prometi que voltaria sem nem pensar.
- Eva. - Estendeu-me a mão. Cumprimentei-a, dizendo o meu. Atravessei a rua em direção à praça. Entrei na Brasília e voltei para o trabalho.
Quando cheguei em casa, Isabel me esperava no portão. Parecia estar mais ansiosa do que brava. Veio ao meu encontro, abraçando-me. Disse que havia me esperado para almoçar em casa, e que havia feito uma carne cozida na panela de pressão. Depois me encheu de perguntas, que respondi brevemente. Na janta, comi da carne cozida que não era tão boa quanto a que eu havia comido mais cedo. Antes de dormir, lembrei da cigana que havia profetizado uma paixão. Eva, só podia ser. Até então, nunca havia olhado para outras mulheres com aquele olhar desejoso. Adormeci, pela primeira vez, desejando outra mulher.
No outro dia, cheguei ao trabalho pensando logo no horário de almoço. Como havia dito a Isabel, o serviço estava com alguns assuntos pendentes e eu deveria resolvê-los naquele mesmo dia, ficando no serviço direto, comendo alguma coisa lá mesmo. Ela propôs levar o almoço, mas disse que não precisa se preocupar. Relutante, Isabel concordou.
Meio dia, já estava na Brasília seguindo para o meu encontro com Eva. Enquanto dirigia, imaginava minhas mãos deslizando por suas coxas, seus lábios carnudos chupando o meu pau, que depois penetraria sua boceta de pelos louros. Estacionei a Brasília em frente à praça. Sentada no banco, olhando para mim, Chavela, a cigana, fez sinal. Ignorei-a, indo em direção à casa.
- É ela! É ela, moço. A paixão e o perigo. Destino vai rir, moço!- Gritava-me a cigana.
Algumas pessoas assistiam à cena, curiosas.
- Maluca. – Disse, enquanto abria ao portão da casa.
Eva me esperava sorridente, ainda com um avental. Ao ouvir a gritaria que a cigana arrumava lá fora, perguntou-me o que era. Disse-lhe que era uma cigana maluca que estava me perseguindo. Reparei que não havia nenhuma panela sobre o fogão, nem sobre a mesa.
- O prato de hoje é frio. – Explicou-me, apontando o dedo para a geladeira. – Pode pegar para mim enquanto me troco?
A energia caiu. Ouvi um rosnado e pensei que fosse o cachorro do velho que eu não havia notado no dia anterior. Abri a porta da geladeira ouvindo o barulho de vidro se quebrando.
- Filha da Puta!- Xinguei, dirigindo-me para fora. Tive a impressão de sentir um cheiro de gás. Do lado de fora, com uma pedra na mão e o dedo no relógio, a cigana me encarava.
- Sua louca!- Avancei em sua direção. Antes que eu pudesse tocá-la, ela ativou novamente a energia do relógio.
- NÃO!- Foi a última coisa que ouvi de Eva antes da casa explodir, produzindo um barulho ensurdecedor. Caí no chão, ferido por alguns estilhaços. Chavela também rolava no chão, ferida. As pessoas corriam para ver a cena, assustadas.
- Era ela, a Indesejada. – Contou-me a cigana, diante de mim no leito do hospital. – Não aceitou te perder da outra vez. Mas agora ela sabe que não é a sua hora. Não agora.
Acordei e vi Isabel ao meu lado, sentada, com a mão acariciando a barriga, como faziam as grávidas.
O jornal do dia seguinte trazia a matéria sobre uma casa que havia explodido pouco depois da morte de seu proprietário, ferindo duas pessoas que passavam no local. No cartório, Jairo afirmava que nenhuma mulher com a aparência que eu descrevia apareceu por lá na segunda feira, e que a certidão de óbito do tal falecido já havia sido feito por um sobrinho, que havia morrido há dois dias.

Foto de João Victor Tavares Sampaio

O Orfanato

- O Orfanato

No orfanato
Toda linhagem de enjeitado
Toma a forma de legião

Todo o povo da região
Passa-nos com o ego apontado
Acusando nossa rejeição

E a sombra que aqui relato
Desnuda a treva em ebulição
Sonho irrealizado

Presente desembrulhado
Futuro em suspensão
A humilhação em seu recato
Frio, destrato

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O Sol é falso, losango angular.

Umas poucas crianças cantam.

Outras tantas crianças gritam.

A volta da escola é lenta e singular,
Pois não há ninguém há esperar.

O vento espalhar seu vento, e a folhagem.

Uma nuvem nos faz pajem.

Nosso ritmo é policial e folhetinesco.

Reside o medo do grotesco.

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Os moleques do orfanato são feios e não têm receio em admiti-lo, já que no verso de sua condição morava o adverso, o ridículo dos corações partidos, a brevidade de sua relevância.

Um deles riu-se automaticamente:
- Somos completos desgraçados!

Esta frase correu sem gírias ou incorreções.

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Os moleques
Sabendo serem desgarrados
Destravavam seus breques
Em serem desencontrados

Faltava-lhes o saber da identidade
Descobri-se em um passado plausível
Ver-se na evolução da mocidade
Em um lar compreensível

Mas não lhes foi dada explicação
Nem sentido da clemência
Nem pedido, nem razão
Para sua permanência

Viviam por viver
Por invencionice
Viviam por nascer
Sem que alguém os permitisse

Abandonados
No porão de um orfanato
Sendo assim desfigurados
No humano e seu retrato

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Os moleques eram órfãos
E eu estava no meio deles sem me envergonhar!
Minha vida é curta
Dura, diante dos comerciais contrários!
Meu cárcere é espesso, grosseiro, não derrete nem sob mil graus!
Subo mil degraus e não encontro o final da escada
E a realidade é tão séria como o circo ao incêndio dos palhaços,
Pois nem meu hip-hop consola mais a sombra da minha insignificância
E nem toda a ostentação suporta o peso da veracidade

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O mundo me usa
Ao agrado parnasiano
E me recusa
O verso camoniano
Não tenho honra nem musa
Não tenho templo nem plano
A vida é pouca e Severina
Louca e madrasta carnificina

Solidão
No meu retiro na multidão

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Somos uma falange
Outrora negada pelo sistema
Zunido como abelhas de um enxame
Invadindo os isolamentos propositais;
Nação sem cara
Homericamente mostrando seu rosto
Olhando a palidez da polidez
Sendo enfim mortos de fome.

Sendo enfim cheios de vida!
O braço que nos impede a pedir banha-nos com seu sangue;
Nós somos encharcados
Havendo assim a benção que ignoraram em prestar
A afirmativa de um futuro inevitável;
Matamos e nutrimos
O pavor que nos atira para a vida;
Somos assim não só uma falange como uma visão intransponível.

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Em esperar ter condições
Só restaria estacionar
Ao choro das lamentações

E logo quando o meu lugar
For definido às lotações
Na margem sem quem se importar

Ou mantenho insurreições
Ou vou me colocar
Abaixo das aspirações

Se calar minhas intenções
Alguém vai me sacanear
E se buscar santas missões
Cair no desenganar

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Estamos descontrolados!

- Foi ele, tia, eu vi!
- Não, eu não fiz nada!

- Cala a boca molecada!
Ou vai entrar na porrada
Cambada de desajustados!

Nem suas mães os quiseram
Desde o dia que vieram
E ainda bem que não nasci
No mesmo mal em que estiveram

Enquanto existir distração
Restrito será seu contato:
Problemas não chamam a atenção
Ao veio da escuridão
Silêncio do assassinato

Eu me calo e penso então
Em como o mundo é ingrato
Por sobras ajoelhadas
Firmo-me em concubinato
Em estruturas niveladas
Para minha exploração

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A noite chega aos esquecidos
E com ela sonhos contidos
De um sono forçado

Sinto-me encarcerado
No meu instinto debelado
Pelo pânico dos inibidos

E os olhares entristecidos
Cerram-se em luto fechado
Da morte sem celibato

Estamos envelhecidos
Tão jovens e tão cansados
Estamos aprisionados
Na cela de um orfanato

Foto de Marilene Anacleto

A Noite Silencia

*
*
*
*
A Humanidade se recolhe.
A lua quase cheia segue leve
Acompanhada pela estrela,
Ao dirigir-se para o oeste.

Uma nuvem faceira toma corpo,
Cai de mansinho, não faz lodo.
Molha as calçadas na rua
E, ali mesmo, beija a lua.

Esplendor reflete longo tempo.
Numa transformação solene,
Alegria esparge, meio nua,
Na poça, a nuvem serena.

Ao reflexo, que a lua expande,
Outra nuvem até se emociona.
Debulha-se em lágrimas a beijar a terra,
Torna-se a lua, feito espelho eterno.

Homens repousam corpos sem beleza,
Torpeza que devora o ânimo.
Imagens e ameaças de guerra,
Insegurança que produz pânico.

Movimentos atrás das portas,
Uns escondidos, outros às soltas.
Alguns em lágrimas, outros em êxtase,
Trazem insônia, enlaçam corpos.

A terra segue o fluir, seu fluxo.
O Amor, ao homem se apresenta
No respirar sufocado em refluxo.
Na chuva, na cama, na lua, na estrela.

Marilene Anacleto

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