Reflexos

Foto de Jardim

chernobyl

1.
sons de violinos quebrados vinham das montanhas,
uivos de lobos noturnos,
varriam as imagens das imaculadas ninfas
enquanto se ouviam as vozes dos náufragos.
o príncipe das trevas desceu disfarçado de clown,
bailava num festim de sorrisos e sussurros.
a nuvem envolvia a cidade com seus círculos febris,
se dissolvia nas ruas em reflexos penetrantes,
coisa alguma nos rios, nada no ar e sua fúria
era como a de um deus rancoroso e vingativo.
a morte com seus remendos, oxítona e afiada,
distribuía cadáveres, penetrava nos ossos, na pele,
nos músculos, qualquer coisa amorfa,
alegoria da inutilidade das horas.
agora este é o reino de hades
os que um dia nasceram e sabiam que iam morrer
vislumbravam o brilho estéril do caos que agora
acontecia através del siglo, de la perpetuidad,
debaixo deste sol que desbota.
o tempo escorre pelos escombros,
o tempo escoa pelos entulhos de chernobyl.

2.
meu olhar percorre as ruas,
meus passos varrem a noite, ouço passos,
há um cheiro de sepultura sobre a terra úmida,
um beijo frio em cada boca, um riso
estéril mostrando os dentes brancos da morte.
não foram necessários fuzis ou metralhadoras.
mas ainda há pássaros
que sobrevoam as flores pútridas.
aqueles que ainda não nasceram são santos,
são anjos ao saudar a vida diante da desolação
sob este céu deus ex machna.
aos que creem no futuro
restaram sombras, arcanos, desejos furtados,
resta fugir.
uma nuvem de medo, ansiedade e incerteza
paira sobre o sarcófago de aço e concreto da usina.
asa silente marcando o tempo
que já não possuímos.
pripyat, natureza morta, vista através das janelas
de vidro dos edifícios abandonados
sob um sol pálido, ecos do que fomos
e do que iremos ser.
pripyat, ponto cego, cidade fantasma,
os bombeiros e suas luvas de borracha e botas
de couro como relojoeiros entre engrenagens
naquela manhã de abril, os corvos
seguem em contraponto seu caminho de cinzas
sob o céu de plutônio de chernobyl.

3.
e se abriram os sete selos e surgiram
os sete chifres da besta,
satélites vasculham este ponto à deriva, seu nome
não será esquecido, queimando em silêncio.
os quatro cavaleiros do apocalipse e seus cavalos
com suas patas de urânio anunciam
o inferno atômico semeando câncer
ou leucemia aos filhos do silêncio.
os cães de guerra ladram no canil
mostrando seus dentes enfileirados, feras famintas,
quimeras mostrando suas garras afiadas,
como aves de rapina, voando alto,
lambendo o horizonte, conquistando o infinito.
eis um mundo malfadado povoado por dragões,
a humanidade está presa numa corrente sem elo,
sem cadeado, enferrujada e consumida pela radiação.
vidas feitas de retalhos levadas pelo vento
como se fossem pó, soltas em um mundo descalço.
vidas errantes, como a luz que se perde no horizonte,
deixam rastros andantes, vidas cobertas de andrajos,
grotescas, vidas famintas e desgastadas,
que dormem
ao relento nas calçadas e que amanhecem úmidas
de orvalho, vidas de pessoas miseráveis,
criaturas infelizes, que só herdaram
seus próprios túmulos em chernobyl.

4.
mortífera substância poluente, complexa,
realeza desgastada que paira nos ares
da pálida, intranquila e fria ucrânia
envolta no redemoinho dos derrotados.
gotas de fel caindo das nuvens da amargura,
sobre a lama do desespero, sobre o vazio
da desilusão, no leito do último moribundo.
cacos, pedras, olhos mortiços, rastros cansados,
inúteis, o sol das estepes murchou as flores
que cultivávamos, descolorindo nossas faces.
seguem os pés árduos pisando a consciência
dos descaminhos emaranhados da estrada,
na balança que pesa a morte.
no peso das lágrimas, que marcaram o início da dor,
restos mortais, ossos ressecados, sem carne,
devorados pela radiação, almas penadas
no beco maldito dos condenados, herdeiros
da abominação, mensageiros da degradação,
horda de náufragos, legião de moribundos.
o crepúsculo trouxe o desalento e as trevas, a vida
agora é cinza do nada, são almas penadas que fazem
a viagem confusa dos vencidos em chernobyl.

5.
ainda ouvimos os gritos daqueles que tombaram,
e os nêutrons sobre a poeira fina dos vales,
os pés descalços sobre pedras pontiagudas,
ainda ouvimos o choro das pálidas crianças,
a fome, a sede e a dor,
o estrôncio-90, o iodo-131, o cesio-137.
vazios, silêncios ocos, perguntas sem respostas,
degraus infernais sobre sombras, rio de águas turvas,
quimera imunda de tanta desgraça,
fantasia desumana sem cor,
transportas tanto mal, conduzes a todos
para a aniquilação neste tempo em que nada sobra,
em que tudo é sombra, é sede, é fome, é regresso,
neste tempo em que tudo são trevas,
onde não há luz.
cruzes no cemitério, uma zona de sacrifício,
sob um céu sem nuvens,
a morte em seu ponto mutante.
no difícil cotidiano de um negro sonho,
restaram a floresta vermelha,
e os javalis radioativos de chernobyl.

Foto de Arnault L. D.

Pelas estrelas do céu

Eu esperei encontrar no silêncio
um tanto ainda do que foi sentido
como se buscando a meu ouvido
um eco do passado... do início

Nos vestígios esparsos em mim
que ainda guardarem da história
além do pensar e da memória,
é o sentir, o que procuro enfim.

No fundo da mente, soterrado,
cavo com as unhas, garimpo gemas:
Pedaços de sonhos, coisas amenas,
que ainda fazem o olhar marejado.

E neste silêncio me vasculho,
à cata de todos os cacos de amor.
E neles, corto a carne, e nesta dor
de romper-me o peito mergulho.

Lá, tão profundo e sem senso:
Os sentidos todos, mesmo sem nexos
feito purpurina a criar reflexos,
é todo um céu estrelado, imenso...

Foto de Bel Souza

Ser mulher...sei lá!

Ser mulher...sei lá!
Aprendi com a minha mãe...
No começo foi fácil, um enxoval cor de rosa...um nome feminino, um signo feminino demais
Depois os brincos, os vestidos, os enfeites do cabelo
Quando dei por mim, estava lá na chamada das meninas, no lado da sala onde só as menininhas sentavam...
E eu estava ali, uma meninazinha, uma menininha da Brasil, uma menina ...
Quando dei por mim, já mexia os cabelos de lá para cá, procurando por mim nos espelhos e em outros reflexos
Já ensaiava um salto maior que outro, já cobiçava toda aquela renda, todo aquele róseo facial
De repente, trocando números e modelos, rendas maiores, palmilhas maiores, sonhos maiores
Ser moça é muito lindo, ser moça é perfeição, ser moça dá um trabalho!
Os amores vieram, um a um
Eu os descartava, só pensavam em namorar feio, com a malícia que eu ainda não tinha
Bem feito, ficavam sem par!
De repente, desejos absurdos, sonhos efêmeros, juras demais...
De repente não cabia mais em mim...
Alguns ficaram, outros correram, um prendeu
Eu me soltei, me liberei, fui sincera como a gente deve ser com a menina dos olhos da gente.
E, agora tô aqui... sem rosa, repleta de azul, cheia de querer bem!
Desprovida de enfeites, sem róseo na face, sem palmilhas, com uma saia rodada, um espelho em frente, uma boca vermelho céu-de-tarde! Tô aqui...
Ser mulher...sei lá!

Foto de nelson de paula

A SALA DE ESPERA NAS NUVENS (de "Vozes do Aquém")

Ponho
um pé
mais perto
dos meus sonhos,
mas,
ainda assim,
vou ter
que esperar,
então
sento
em um canto
e deixo
a nuvem
flutuar.

Sinto
no rosto
as gotas d’água,
frias,
mas açucaradas,
a tal ponto
que
as estalactites
melam
e
viram
sorvete,
muito apropriado
para
o
momento.

Leio
nos rostos
uma certa
ansiedade,
da qual
não compartilho,
pois
li
nas estrelas
o que devo
fazer.

Cai
do bico
da gaivota
o cristal,
rompendo o silêncio
e
jogando
para as paredes
reflexos.

Toco
com a língua
o pulso,
invertendo
a
circulação.

Talvez
pare
o
tempo,
ao menos
pode ser
que
estique
a
espera.

Foto de Rosamares da Maia

PAS-DE-DEUX

PAS-DE-DEUX
No espelho desafia-me a bailarina,
Suavemente rodopia, faz piruetas,
Seu olhar é terno, mas forte, arguto,
Contrastando os movimentos em rodopios
Questiona a minha existência - Olho no olho!
Assim, o dialogo é vigoroso, mas virtual.
Dizemos coisas mais próprias do sentir,
Mas ao paladar, ao ouvir e meditar.
Ela desliza, faz movimentos que eu não ousaria.
Nosso Pás-de-deux é quase mortal.
Eu concretamente vivo, mas toco o surreal.
Ela rodopia - graça e leveza. A certeza de bailar.
Eu caustico vislumbro realidades – o dia a dia.
Mostra-se no espelho, acompanha-me nas sombras.
Dança a melodia na chama flamejante d’alma.
- Eu danço conforme a música permite.
A imagem refletida baila, por motivo comum,
Companheira inevitável da mesma história.
Ela, prisioneira do melhor dos meus sentidos,
Reflexos do meu olhar que escapa do espelho.
Altiva, em estudada harmonia revida o desafio.

- Quem é a prisioneira de quem?

No espelho revelam-se os preconceitos.
Vem! Estendes a mão, instigas.
Fecho os olhos e mergulho profundo.
Ao emergir deixo os conceitos e amarguras
Do fundo da alma trago o espelho.
E transformo em música, traços, passos de bailarina,
Toda a alma, a minha e a tua, em versos,
Refletidas e tracejadas nas letras destas linhas.

Rosamares da Maia - 10.03.2011

Foto de nelson de paula

ESTUPRO DA SONÂNBULA(de "Vozes do Aquém")

A bela que levanta à noite
é aquela que o caçador fareja
e empurra para a janela.

Não há senão o céu sem estrelas,
após a veneziana,
que felizmente emperra
e evita o pior.

Mas os grilos gritantes
fazem tanto barulho,
ajudados pelos morcegos e pelas cigarras,
que a tranca finalmente cai
e o orvalho faz seu abominável serviço
de preparar a carne para o banquete.

O pelo antecede o apelo,
intercedendo na rota
entre a mão e o gesto.

Fica a trança,
refém da tiara,
sustentando contra tudo
a virtude.

Enrosca na grade a última conta do terço,
feita de vidro e não de cristal,
arrebenta, porém, esparramando
reflexos pelo jardim.

A Besta assusta com a luz
e corre.

De longe lança o seu feitiço,
poderosa flecha,
roxa como convém ao momento,
acertando em cheio
o peito desfeito,
que racha,
para acolher o beijo
do passante distraído,
agora personagem.

Do ato será parido o mantra,
para ser usado na sétima porta,
mesmo que doa.

Foto de Siby

Nosso lugar

Nas águas do mar,
Vem o sol se refletir,
No balanço de ir e vir
Sua imagem a flutuar.

Vem o céu para pintar,
Com o seu azul colorir,
E o sol amarelo a reluzir,
Reflexos jogados ao mar.

É a natureza a nos dar,
Presentes sem pedir,
Maravilhas para repartir,
Que vem da terra , céu e mar.

São riquezas para preservar,
Espetáculos para aplaudir,
Tantas belezas para usufruir
É seu, é meu, é nosso lugar.
(Siby)

Foto de MarcosHenrique

Brilho Ébrio

(soneto decassílabo)
.
.
.
.
.
Ao enganar-me , em fim, um sorriso.
Ilusão sutil por sumir teu brilho.
Envolto em razões de tantas lembranças,
Cheguei a achar atos de criança.

Como que de outro mundo remoto,
Refulgem-me de novo estando mortos:
Reflexos do teu olhar meio turvo,
Que, das muitas dúvidas, é o fruto.

Restando aceitar tal triste emoção,
Que me aprisiona e desfalece-me,
Esperarei perder minha visão.

Antes olhos cegos ou negras órbitas,
Que permanecer a inebriar-me
Em tua luz, deitando-se à fria cova.

Foto de Marilene Anacleto

Escrevo para Dizer que Te Amo

O tempo passa, nossa alma se ilumina.

Estrelas colhidas na noite,
Fagulhas a voar das fogueiras,
Picos de ondas, antes da quebrança,
Espuma do mar na areia espraiada
Suntuosamente vividas nesses tempos
Em que nossas mãos deslizavam
Nas faces, nas costas, nos corpos,
Brilham hoje em nossas almas.

Carrega sementes, teu olhar florido,
Da calmante flor de laranjeira.
Tuas mãos são suave afago
Feito a nota sublime de uma lira,
Cujo toque, a alma suspira
E imprime, ainda, calor à vida.

Quero dizer que te amo.
A imagem do corpo perfeito
Perdura ainda na leve memória.
Hoje, o rosto com rugas
Ainda mais e mais amado,
Completa nossa bela história.
Transpassa a alma sem rusgas
Colhida em anos de dedicação
A mim, às flores e a tantos mais,
Na prática constante da paciência,
A ciência de Deus, a ciência da paz.

Quando tivermos de partir
Para o mundo dos sonhos,
Rodeados de serafins,
Flores vão exalar perfumes,
Pássaros vão ecoar seus cantos,
E, à noite, grilos farão serenata.

Nossa alma colherá o desejo
Feito na antiga e estreita rua,
Naquele primeiro beijo
À luz da suprema lua:
Que alma eterna seguisse
Repleta de iluminuras,
Isenta de medos e lamúrias
Cheias de perdões ornamentados
Alma sem qualquer lágrima,
Cisnes a elevar-se aos céus
Com pálidos reflexos no lago.

Nada me entristece.
Bem fadado o dia que te conheci.
Naquele instante sussurrava uma prece
Que seria para ti, o que serias para mim.

Os momentos de volúpias,
Beijos ardentes, corpos elétricos,
Seguirão conosco vidas afora.
Não haverá saudade imorredoura.
Vivemos plenamente todas as fases.
Do amanhecer ao anoitecer,
Do surgir da lua e das estrelas,
Ao deslumbre do sol após a aurora.

Só quero dizer que te admiro e te amo.

Foto de Rute Mesquita

Soluços embriagados

Ela chega embriagada,
feliz, contente
mas, mal encarada
num olhar descontente.

Embriagada ela chega
estafada de álcool se rega…

Pousa a cabeça
sobre a mesa
perdida em pensamentos…
será que mereça
estes jumentos?

De mão trémula
leva a morte à boca.
À boca tumula
e esconde-se nessa dita ‘toca’.

Canta…
com uma voz lenta.
Lentos são agora os seus reflexos…
Espanta
a foz sedenta
com os seus perplexos.

Recusa-se a ouvir
explicações, sermões…
Apenas se quer suprimir.

Lamenta-se
por entre sorrisos
melancólicos…
Afoga-se
pelos seus precisos
e albergados tons alcoólicos.

A cama?
Nem pensa nela…
Age como se o Mundo acabasse hoje…
Clama,
pel’aquela felicidade que lhe foge.

Fala em morrer…
despedindo-se,
promete enfraquecer
desmetindo-se…

Repete e repete
a música sem fim…
Será que compete? Que lhe compete
este destino assim?

Não aceita mudar
quando uma voz amiga lhe soa…
Conjuga compulsivamente o verbo ‘chorar’
até que a alma lhe doa…

Segreda-se
arrependida…
Desemprega-se
desta vida…

Vêm à tona não revelados…
e choram-se as almas
contam-se os desabafos…
Agrafos,
de vidas aparentemente calmas.

Assistem-se,
confrontadas…
Complicam-se
insensibilizadas.

E eu não aguento mais…
levanto-me e vou deitar-me…
Já amanheceu num ‘jamais’
onde nunca pensei encontrar-me.

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