Interior I

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Um crime poderá estar prestes a acontecer. Em princípio, não será uma coisa mediática. As coisas acontecerão porque, simplesmente, o epílogo terá de ser esse. O autor não deve ainda fazer prognósticos sobre o modus operandi do alegado homicídio, porque na prática ainda não estão reunidas as condições para descrever uma situação que constitui sempre o último recurso da demonstração da animalidade humana.

A sala onde se adivinha semelhante desfecho é esparsa. Pintada de um branco reflector, com uma génese criadora de epilepsia, não terá mais que 10 metros quadrados. Trata-se de uma repartição de atendimento público, situada numa localidade do interior do país.

São três e 15 da tarde, e lá fora venta como se esperava de um dia de início de ano. Chuva adivinha-se, mas por enquanto está contida por entre o negrume das nuvens agrupadas em posição ofensiva.
Uma senhora, dos seus 40 e poucos anos, impõe a si própria um regime de calma auto-inflingida. Poderá ter a ver com a fila de cidadãos que se acotovelam no parco e sufocante espaço.

Mas não é de descartar que a senhora esteja a braços com uma situação de violência psicológica de índole doméstica, já que segundo as pesquisas prévias a esta dissertação, a localidade em causa ocupa um lugar de destaque nas queixas policiais apresentadas por mulheres de meia idade.
Faltam menos de 48 horas para terminar o prazo burocrático de entrega dos impressos de cobrança do imposto sobre o rendimento do trabalho, e a ansiedade colectiva forma uma nuvem espessa, difícil de contentar, e ainda mais complicada de controlar. A uma supremacia de idosos, respondem dois jovens, aparentando uma vida com duas dezenas de anos.
O ar taciturno e irritado que demonstram, revela que estarão ali para fazer o 'português' recado a uma pessoa de família. Uma jovem contenta-se a tilintar o piercing que pende de duas narinas aquilinas, e com uns laivos judaicos. Uma gabardine preta, tão densamente negra que contrasta com o politicamente correcto ambiente, oculta um corpo que se auto-esconde de olhares reprovadores. A jovem mulher terá tentado fazer uma demonstração recente de independência perante os progenitores, uma vez que tem o cabelo quase rapado. Os olhares de reprovação que a cercam num ataque quase 'Juliocesariano', aparentemente não a incomodam. (continua)

Comentários

6
Foto de minnie_heart

aguardo ansiosamente pela continuaçao
esta parte amei :)
Luh ***

Luh ***

Foto de pttuii

Também adorei escrever este texto.

Foto de DeusaII

parece-me que também tens jeito para
policiais...
Meu voto e minha admiração.
Da tua fã.

Foto de pttuii

....:-)
Isto quem arrisca, às vezes petisca
Obrigado pelo comentário.

Foto de Darsham

Um perfeito escritor! Eu, como assídua leitora e devoradora de leitura, digo-lhe que se um livro comecasse assim eu continuaria a ler, sedenta de palavras!
Você é extremamente minucioso na escrita e exigente com aquilo que escreve, preocupa-se com detalhes, que nem sempre visíveis fazem todo o sentido na composição do todo.
Disse e volto a dizer, ler-lhe é uma viagem...

Espero pela continuação :)

Beijinho
Darsham

Foto de pttuii

Fico embevecido e sensibilizado com o comentário.
Reconheço que tento ser o mais apurado possível em tudo o que faço.
Ainda bem que gostou desta pequena aventura.
Hoje ainda coloco a segunda parte.

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