Roupas

Foto de Deibby Petzinger

Aos invasores de almas perdidas...

Se a vida é um caminho, não sei...
Se me disserem que existe destino
Que aqui, somos apenas peregrinos
Sinceramente, eu não acredito.
Aprendemos a viver de forma errante
Na luta pela sobrevivência,
Na selva urbana
Com mensagens de amor,
E palavras desumanas.
Crescemos correndo contra o tempo,
Como folhas, ao vento
E o relógio, nosso inimigo
Que nos transforma em primitivos
Desesperados...
Não apenas em busca de vida
Mas em busca de adversários.
Pra ver quem ganha mais
Quem realmente pode trazer a paz,
E libertar de uma vez o mundo,
Pra ver que no fundo,
Não querem libertar nada,
Querem cada vez mais dinheiro,
Pra vender nossos sentimentos
Na verdade, os poucos que nos restam
E é isso que sobra...
Querem carros, roupas novas
Por que aparência conta mais do que as palavras
E inclusive,
É a primeira que fica.
O melhor é quem tem mais
Independente da luta,
Pobre dos outros, que ficam pra trás
Esperando a chance da disputa.
Mas o show não pode parar
Ainda não é hora para aplausos
Para que os “bons” possam se divertir
Chamando os ingênuos de otários;
Dignos de pena, ignorantes,
Pobres seres repugnantes
Pobres de nós...
Se a vida é um caminho, não sei...
Se me disserem que existe destino, talvez...
Mas se isso realmente for destino,
Realmente, pobres de nós,
Que passamos uma vida toda tentando
Provar inocência, e lamentando
As vezes sonhando até salvar a humanidade
Vivendo de forma humilhante
E quando chegarmos as 80 anos de idade,
Sermos condenados como ignorantes.

Foto de LETICIA MARQUES

Título: Revele-se

Deixe transparecer o sentimento

Diga que nesse momento

Seremos servis ao lamento

Que brota desse amar...

Deixe o mundo lá fora

A razão jogada no chão

Amassada com as roupas

Que não vamos usar...

E faça do olhar a expressão

Mais pura da alma

A luz que trás a aurora

De um arfar

Doce e matreiro

Que suavemente

Invade o lugar

Toma pra si a rédea

De um corpo solto

Dos jogos despudorados

Que não podemos evitar...

Até transpor o tempo

Romper com o impedimento

De se revelar...

Foto de Patrícia

Cantata de Dido (Correia Garção)

Já no roxo oriente branqueando,

As prenhes velas da troiana frota

Entre as vagas azuis do mar dourado

Sobre as asas dos ventos se escondiam.

A misérrima Dido,

Pelos paços reais vaga ululando,

C'os turvos olhos inda em vão procura

O fugitivo Eneias.


Só ermas ruas, só desertas praças

A recente Cartago lhe apresenta;

Com medonho fragor, na praia nua

Fremem de noite as solitárias ondas;

E nas douradas grimpas

Das cúpulas soberbas

Piam nocturnas, agoureiras aves.

Do marmóreo sepulcro

Atónita imagina

Que mil vezes ouviu as frias cinzas

De defunto Siqueu, com débeis vozes,

Suspirando, chamar: - Elisa! Elisa!

D'Orco aos tremendos numens

Sacrifício prepara;

Mas viu esmorecida

Em torno dos turícremos altares,

Negra escuma ferver nas ricas taças,

E o derramado vinho

Em pélagos de sangue converter-se.

Frenética, delira,

Pálido o rosto lindo

A madeixa subtil desentrançada;

Já com trémulo pé entra sem tino

No ditoso aposento,

Onde do infido amante

Ouviu, enternecida,

Magoados suspiros, brandas queixas.

Ali as cruéis Parcas lhe mostraram

As ilíacas roupas que, pendentes

Do tálamo dourado, descobriam

O lustroso pavês, a teucra espada.

Com a convulsa mão súbito arranca

A lâmina fulgente da bainha,

E sobre o duro ferro penetrante

Arroja o tenro, cristalino peito;

E em borbotões de espuma murmurando,

O quente sangue da ferida salta:

De roxas espadanas rociadas,

Tremem da sala as dóricas colunas.

Três vezes tenta erguer-se,

Três vezes desmaiada, sobre o leito

O corpo revolvendo, ao céu levanta

Os macerados olhos.

Depois, atenta na lustrosa malha

Do prófugo dardânio,

Estas últimas vozes repetia,

E os lastimosos, lúgubres acentos,

Pelas áureas abóbadas voando

Longo tempo depois gemer se ouviram:

«Doces despojos,

Tão bem logrados

Dos olhos meus,

Enquanto os fados,

Enquanto Deus

O consentiam,

Da triste Dido

A alma aceitai,

Destes cuidados

Me libertai.

«Dido infelice

Assaz viveu;

D'alta Cartago

O muro ergueu;

Agora, nua,

Já de Caronte,

A sombra sua

Na barca feia,

De Flegetonte

A negra veia

Surcando vai.

Correia Garção (1724-1772)

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