Vidros

Foto de Arnault L. D.

Castelo e flor

Na rua, uma sombra alta e triste
ergue-se dentre a névoa gélida;
noite suspensa de um passado.
Tal braço, retesado em riste
do afogando, mão a buscar vida
e um mistério no tempo guardado.

Alta torre faz relevo à vista,
contrasta ao azul, somando ao céu.
Nuvens bordam a moldura entorno;
acima, janela a lua avista
e a filtra em vitrais, a luz pincel...
Quadro vivo, tela o chão, adorno.

Vestígios da beleza em ruína,
restos de sonhos, solvem a volta,
dos risos, dos casos em segredo.
Degraus subindo o mármore a cima,
ligando ao nada a ilusão solta...
Velhos fantasmas a trazer medo.

Apenas restou o que se ergue,
pois, mais ninguém, mais nada lá ficou.
Junto a ultima gota que verteu,
taça de cristal, vinho, e sangue,
estilhaçada a vida se quebrou.
Por testemunha a noite, que esqueceu.

O solo pontilhado de luar,
vazando aos vidros coloridos;
cintilou em matizes de carmim,
que a aurora escureceu ao raiar.
Revelando os Reis adormecidos,
em uma noite, que não teve fim.

Mas, o Sol não trouxe a claridade
que rompesse a densa névoa escura,
que encerrou dentre a alvenaria,
atrás de portas, paredes, grade.
Causas, culpas da história, pura,
não se soube, o oculto não traia...

E veio o anoitecer novamente.
Trancou as portas, fechou as grades,
cerrando as cortinas e os portões...
Desbotando tons, e o inconsciente
se encarregou de criar verdades.
Por provas, fez de mitos as razões...

Recolhido entre as salas desertas,
os anos a somar o abandono
pilharam a beleza em pedaços.
Abrindo furos, rasgando frestas.
E o dormir deste eterno sono,
Morfeu colheu por entre seus braços.

Tudo agora é escombro somente;
cravado à cidade, triste confim
de velhos espectros e da sombra.
Partilhado ao mendigo, indigente,
covil de ratos, aranhas, capim,
que feri aos olhos frágeis que assombra.

Mas, longe da escuridão, um alguém
guardara a lembrança, a luz vencida.
Que afundou-se aos relógios se pôr.
Lembrando a quem, já a muito além...
por tantos anos, por toda vida.
Posto uma prova que houvera o amor.

Solitária rosa, deixava ali.
Em data exata, quando ao ano vem:
De aniversário um presente terno,
no envelhecer do castelo e a si...
Até que a noite deitou-se também,
a pele esfriando-lhe de inverno.

E a ruína, assim, ficou mais só
e a historia, tornou-se rumor.
O castelo apartou-se do mundo,
sequer memória, saudade, ou dó.
Como se sempre ele fora a dor;
tal de canto algum oriundo...

Quiçá, a torre, querendo altura,
qual mão, apenas anseie outra flor,
pelo céu procurando a encontrar...
E para não quebrar-se a jura,
fez das pedras, pétalas, por amor.
Fez-se o castelo uma rosa a murchar.

Foto de João Victor Tavares Sampaio

Tudo Nublado (Caio Eduardo de Lima)

Por mais claro que esteja o céu hoje
Nunca esteve tudo tão nublado
As lágrimas que me cegam hoje
São o reflexo de um coração machucado

Os lírios d’alma murcharam
Os vidros da razão se quebraram
Para quem um dia sonhou ser poeta
O que restou?
Para quem um dia disse:
‘Nada me afeta’...

Tenho nojo do que escrevo
Porque em versos exponho
Tantos medos;
Tenho nojo do que sinto

Porque um dia vi estrelas!
De longe...
Hoje não quero mais vê-las
Nem de perto

Por mais claro que um dia esteve o céu
Hoje tudo está nublado.

- É um orgulho postar um poema seu, Caio. Você é um cara de personalidade forte e versos maravilhosos. Devo-lhe muito, justo aquilo que o dinheiro não compra. É indescritível ter a sua amizade.

Foto de rukass

Mar Revoltado

Através de um oceano de pavor
As vozes esperançadas espalham-se
Reflectem nas águas brancas da dor
Navegam em vão por uma alma moribunda
E ao cair da noite
Mais um barco afunda

E o menino acorda,
Suavemente
no casembre à beira-mar
E pelos vidros da janela transparente
São visiveis os estragos
Causados pelo mar.

Outra onda gigante
mais navios naufragados
Tudo visto da janela transparente
Uns chamam-lhe olhos
Outros chamam-me mente.

Ouvem-se gritos mudos de socorro
As vozes ecoam numa cidade perdida
A dor é encontrada
a dor é devolvida.

A Lua acalma a maré revoltada.
E enquanto a dor se enche de luar,
mais uma alma é achada
Mais outra fica por achar.

Foto de Oliveira Santos

Vício

Acabo de lhe ter e já quero você de novo
E fico a garimpar migalhas em meio ao povo
Olhando vitrines, através dos vidros lhe ouço me chamar
Beirando a loucura, fissura querendo lhe saborear

Vício que me domina, que me desanima, me definha enfim
Vício me manipulando, rasgando, matando tudo dentro de mim

Vagando por todas as ruas me apoiando nas paredes
Um farrapo humano de pé que outra vez matou sua sede
Que mente, que engana, que rouba até mesmo seus próprios entes
Interno de um inferno moderno nessa condição demente

Vício que me domina, que me desanima, me definha enfim
Vício me manipulando, rasgando, matando tudo dentro de mim

Não sei o que acontece
É algo assim que cresce
Repentina sensação

Desejo incontrolável
E inalienável
Uma mortal sofreguidão

15/04/98

Foto de Dennel

Abra a janela para a vida

Há quanto tempo não abre a janela do teu coração. Parece que a correria cotidiana tem o impedido de fazer uma reflexão, de avaliar tua vida, de arejar teus pensamentos. O dia pode ser hoje, faça uma reflexão, abra a janela do seu coração e deixe entrar a brisa fresca da vida.

Retire de teu coração todas as mágoas e ressentimentos, coisas que tem ocupado um precioso espaço em tua vida, impedindo que outros sentimentos floresçam, ou muitas vezes deixando os á margem em detrimento de uma vida plena de amor e realizações.

Conta-se uma história de uma mulher que reclamava da sujeira dos lençóis que a vizinha estendia no varal, implicando-a em uma relaxada. O marido da mulher queixosa, silenciosamente observava as implicâncias. Certo dia, cedo se levantou, lavou as vidraças e preparou o café da manhã, quando sua esposa veio para a mesa do café, olhou pela janela e viu as roupas no varal da vizinha limpas com uma brancura impecável. A esposa desta vez parabenizava a vizinha, afirmando que enfim tomara vergonha na cara, lavando direito os lençóis. O marido então afirma que a sujeira na realidade estava nos vidros da janela, e que os lençóis sempre estiveram limpos.

Não podemos acusar outros por nossas deficiências. Um coração insensato tem a tendência de vitimizar-se. Pense o quanto a sua vida perde em qualidade por atitudes mesquinhas, por julgamentos precipitados e interesses que ferem frontalmente o convívio social. Agindo assim acumulará mágoas e dores sem nunca alcançar a felicidade. A felicidade é um mais um estado de espírito do que uma condição.

Convido-te a renovar tuas esperanças e ideais. Lembre-se que o ódio é um senhor antigo que nos quer parceiro da sua apatia e profundo desprezo pela vida, uma vez que a expressão máxima deste sentimento é a morte. Escolha, pois a vida. Juraci Rocha da Silva - Copyright (c) 2010 All Rights Reserved

Foto de raziasantos

A cabana.

O outono esta terminando as folhas amareladas no chão, sentada a beira do pequeno rio com os pés na água o olhar perdido no nada: Não sei por quanto tempo permaneci ali.
O vento espalhava as folhas secas que batiam em meu rosto, a água fria do pequeno rio estava cristalina, era um lugar ermo distante de tudo... Um lugar lindo e solitário a pequena cabana cercada por um lindo jardim, na sala um lareira que permanecia sempre acessa, pois fora construída entre duas montanhas, por isso era fria mesmo no verão.
Estava casada há três anos meu marido era diplomata e vivia viajando por vezes me levava com ele, mas a maior parte dos dias eu ficava em casa.
A montanha era meu refúgio, os pássaros me faziam companhia.
Todos os dias eu acordava cedo, o nevoeiro era intenso, na parte da manhã para não me sentir tão solitária eu ocupava meu tempo pintando era um lugar ideal para inspirações pintava lindas paisagens flores, e pássaros.
Meu marido chegava há ficar um mês fora ou mais, quando voltava das viagens ia direto para montanha, mas logo voltava, nos amávamos ele era carinhoso, não sei se eu não me importava com sua ausência dele ou se estava resignada.
Eu sempre quis ter filhos, mas ele achava que devíamos esperar um pouco mais então...
O inverno estava chegando e a montanha era muito fria eu resolvi ir a cidade fazer umas compras de cobertores, e suprimento para resistir o inverno, eu tentei ligar o carro, mas o carro não pegou então tentei o radio, mas nunca aprendi usá-lo então eu desisti: Resolvi esperar meu marido voltar de viagem, ele traria o suprimento necessário: os dias estavam ficando longos e com a chegada do inverno o nevoeiro aumentava tornado o lugar triste minha solidão aumentava cada dia.
Eu esperava ansiosa a volta do meu esposo então enquanto ele não vinha eu pintava, e em cada quadro que pintava procurava colocar um pouco de vida assim as cores, fortes o brilho da luz retratado em meus quadros me alegrava um pouco.
Embora estas cores e luz fossem imaginaria, pois o lugar era sem vida e cinzento.
Em uma tarde eu estava passeando ao redor da cabana as flores estava cobertas por gelo, mal dava para ver as árvores devido o forte nevoeiro, o sol era tão tímido que só se via uma pequena fresta de luz que vinha do alto da montanha.
De repente eu ouço risos vindos da direção do rio era a voz de uma criança eu corri em direção ao som da risada, o nevoeiro me impede de ver, eu sigo em frente e pergunto quem esta ai?
Oi! Responda quem esta ai?
Chamei por varias vezes e nada de resposta logo o riso parou então eu pensei deve ser o som de algum pássaro fiquei curiosa, mas como o barulho parou, eu voltei para cabana estava tão frio que sentei ao lado da lareira peguei um livro e fiquei ali até adormecer.
Dormi direto até o dia amanhecer.
Quando acordei o frio estavam mais intenso os vidros das janelas estavam tão embaçados que não se via nada.
Levantei abri a porta e a cabana foi invadida pelo nevoeiro que entrava casa adentro cheguei até me assustar:
No meio daquela fumaça cinza e fria surge uma pequena luz vinda em direção à cabana eu tento ver quem esta chegando até que surge um rosto era meu marido que voltava para casa eu corro ao seu encontro e o abraço fortemente ele esta gelado seu casaco esta úmido então de mãos dadas entramos em casa ele senta em uma poltrona em frente à lareira flexiona as mãos, acende um cigarro, e com um sorriso tímido diz te amo meu amor.
Ele levanta vai abre a porta, e vai até o carro, pega um lindo buque de flores entra novamente pega o nosso retrato de casamento em cima da lareira e coloca as flores ao lado, e diz flores para meu jardim.
Ele toma um chocolate quente e vamos nos deitar ele esta calado seu olhar distante me acaricia olha em meus olhos e diz estou tão cansado preciso descansar então vira para o lado, em seus olhos a lagrimas ele chora eu fico sem entender, afinal já faz tanto tempo que não nos vemos e ele volta assim...
Penso comigo mesma amanhã conversaremos, ele vai estar melhor ai vou querer saber tudo que esta acontecendo.
O dia amanhece e quando abro os olhos ele já esta acordado sentado ao lado da cama me observando, tem em seus lindos lábios um sorriso maroto e um olhar doce me olha de um jeito tão lindo que me emociona:
Posso ver em seu olhar muita ternura e muito amor, então eu o abraço ele se deita lentamente e ficamos ali abraçados nos aquecendo, o coração dele bate forte nossos corpos se encaixam com tanta perfeição como uma forma sob medida.
Sem dizer nada ele levanta pega a chave do carro e sai, eu penso que ele vai pegar algo no carro, mas ele liga o carro e vai embora eu saio correndo em meio ao nevoeiro gritando por ele, mas ele não ouve, segue em frente até desaparecer na cinzenta fumaça: Me desespero caio de joelho entra as folhas molhadas pelo orvalho e choro copiosamente, naquele estande eu me vejo tão só sinto uma angustia tão grande que nunca sentira antes, em um lugar tão deserto em meio o forte inverno até os pássaros sumiram para se aquecer deixando-me na mais profunda solidão.
Neste instante eu ouço novamente o riso da criança agora esta perto de mim... Abro os olhos em meio o nevoeiro surge uma linda menina de cabelos loiro tão branca como a neve, ela esta na minha frente eu me surpreendo não tínhamos vizinhos então pergunto de onde você vem?
Quem é você, onde você mora? Ela sorrir e diz moro aqui, venha ver eu moro aqui!
Ela segura minha mão e me ajuda a levantar ela me puxa rápido sempre sorrindo diz vem, vem logo!
De repente para em frente um monte de folhas secas, então eu pergunto onde mora? Ela responde aqui com você, eu fico confusa e penso-a deve ser filha de alguém que mora perto da montanha tenho que encontrar sua família.
Eu olho para o rostinho dela e passo a mãos em seu rosto gelado, pergunto novamente, vamos meu anjo diga-me onde você mora? Entenda, está muito frio, seus pais devem estar preocupados com você, então ela me olha e diz não estão não, minha casa é aqui, a sua também: Neste instante eu sinto um frio subir na minha costa, ela começa a remover o monte de folhas, e vai surgindo algo branco ela olha par mim e diz vamos mamãe! Vamos para casa, logo surge um tumulo branco em cima um lapide escrito aqui descansa minha querida esposa e nossa filha que partiram em um terrível acidente de carro.

Foto de Coyotte Ribeiro

Desabafo

"A verdadeira arte de viver está marcada por sabedoria disposta de humildade.
Esta é a razão que faz de um homem amar sem ter medo, ainda que ações da pessoa amada o mogoe para sempre.
Com tudo esta não é afinal uma derrota, mas é um recomeço!
De certo que pisei em cacos de vidros, andei por entre as serpentes, e todos os dias sou renegado de meu passado;
Amigos pedem desortação, inimigos clamam por minha rendição.
A natureza se opõe aos meus fracassos, e torna cada vez mais desolado o meu mundo encantado.
Por esta magia é que acordo assustado, inseguro, nerótico e emotivo, mas como fenix me levantarei do pó e das cinzas para edificar um novo dia, planar sobre as fronteiras da alma, e com audácia de um cavaleiro sem manchas, carregarei em meus braços o amor um dia por alguém despedaçado ..."

El Coyotte

Foto de cafezambeze

JOÃO PIRISCA E A BONECA LOIRA (POR GRAZIELA VIEIRA)

ESTE É UM CONTO DA MINHA DILETA AMIGA GRAZIELA VIEIRA, QUE RECEBI COM PEDIDO DE DIVULGAÇÃO. NÃO CONCORRE A NADA. MAS SE QUISEREM DAR UM VOTO NELA, ELA VAI FICAR MUITO CONTENTE.

JOÃO PIRISCA E A BONECA LOIRA

Numa pequena cidade nortenha, o João Pirisca contemplava embevecido uma montra profusamente iluminada, onde estavam expostos muitos dos presentes e brinquedos alusivos à quadra festiva que por todo o Portugal se vivia. Com as mãos enfiadas nos bolsos das calças gastas e rotas, parecia alheio ao frio cortante que se fazia sentir.
Os pequenos flocos de neve, quais borboletas brancas que se amontoavam nas ruas, iam engrossando o gigantesco manto branco que tudo cobria. De vez em quando, tirava rapidamente a mão arroxeada do bolso, sacudindo alguns flocos dos cabelos negros, e com a mesma rapidez, tornava a enfiar a mão no bolso, onde tinha uma pontas de cigarros embrulhadas num pedaço de jornal velho, que tinha apanhado no chão do café da esquina.
Os seus olhitos negros e brilhantes, contemplavam uma pequena boneca de cabelos loiros, olhos azuis e um lindo vestido de princesa. Era a coisa mais linda, que os seus dez anos tinham visto.
Do outro bolso, tirou pela milésima vez as parcas moedas que o Ti‑Xico lhe ia dando, de cada vez que ele o ajudava na distribuição dos jornais. Não precisou de o contar... Demais sabia ele que, ainda faltavam 250$00, para chegar ao preço da almejada boneca: ‑ Rai‑de‑Sorte, balbuciava; quase dois meses a calcorrear as ruas da cidade a distribuir jornais nos intervalos da 'scola, ajuntar todos os tostões, e não consegui dinheiro que chegue p'ra comprar aquela maravilha. Tamén, estes gajos dos brinquedos, julgam q'um home não tem mais que fazer ao dinheiro p'ra dar 750 paus por uma boneca que nem vale 300: Rais‑os‑parta. Aproveitam esta altura p'ra incher os bolsos. 'stá decidido; não compro e pronto.
Contudo não arredava pé, como se a boneca lhe implorasse para a tirar dali, pois que a sua linhagem aristocrática, não se sentia bem, no meio de ursos, lobos e cães de peluxe, bem como comboios, tambores, pistolas e tudo o mais que enchia aquela montra, qual paraíso de sonhos infantis.
Pareceu‑lhe que a boneca estava muito triste: Ao pensar nisso, o João fazia um enorme esforço para reter duas lágrimas que teimavam em desprender‑se dos seus olhitos meigos, para dar lugar a outras.
‑ C'um raio, (disse em voz alta), os homes num choram; quero lá saber da tristeza da boneca. Num assomo de coragem, voltou costas à montra com tal rapidez, que esbarrou num senhor já de idade, que sem ele dar por isso, o observava há algum tempo, indo estatelar‑se no chão. Com a mesma rapidez, levantou‑se e desfazendo‑se em desculpas, ia sacudindo a neve que se introduzia nos buracos da camisola velha, enregelando‑lhe mais ainda o magro corpito.
‑ Olha lá ó miúdo, como te chamas?
‑ João Pirisca, senhor André, porquê?
‑ João Pirisca?... Que nome tão esquisito, mas não interessa, chega‑te aqui para debaixo do meu guarda‑chuva, senão molhas ainda mais a camisola.
‑ Não faz mal senhor André, ela já está habituada ao tempo.
‑ Diz‑me cá: o que é que fazias há tanto tempo parado em frente da montra, querias assaltá‑la?
‑ Eu? Cruzes credo senhor André, se a minha mãe soubesse que uma coisa dessas me passava pela cabeça sequer, punha‑me três dias a pão e água, embora em minha casa, pouco mais haja para comer.
‑ Então!, gostavas de ter algum daqueles brinquedos, é isso?
‑ Bem... lá isso era, mas ainda faltam 250$00 p'ra comprar.
‑ Bom, bom; estás com sorte, tenho aqui uns trocos, que devem chegar para o que queres. E deu‑lhe uma nota novinha de 500$00.
‑ 0 João arregalou muito os olhos agora brilhantes de alegria, e fazendo uma vénia de agradecimento, entrou a correr na loja dos brinquedos. Chegou junto do balcão, pôs‑se em bicos de pés para parecer mais alto, e gritou: ‑ quero aquela boneca que está na montra, e faça um bonito embrulho com um laço cor‑de‑rosa.
‑ ó rapaz!, tanto faz ser dessa cor como de outra qualquer, disse o empregado que o atendia.
‑ ómessa, diz o João indignado; um home paga, é p'ra ser bem atendido.
‑ Não querem lá ve ro fedelho, resmungava o empregado, enquanto procurava a fita da cor exigida.
0 senhor André que espiava de longe ficou bastante admirado com a escolha do João, mas não disse nada.
Depois de pagara boneca, meteu‑a debaixo da camisola de encontro ao peito, que arfava de alegria. Depois, encaminhou‑se para o café.
‑ Quero um maço de cigarros daqueles ali. No fim de ele sair, o dono do café disse entre‑dentes: ‑ Estes miúdos d'agora; no meu tempo não era assim. Este, quase não tem que vestir nem que comer, mas ao apanhar dinheiro, veio logo comprar cigarros. Um freguês replicou:
‑ Também no meu tempo, não se vendiam cigarros a crianças, e você vendeu-lhos sem querer saber de onde vinha o dinheiro.
Indiferente ao diálogo que se travava nas suas costas, o João ia a meter os cigarros no bolso, quando notou o pacote das piriscas que lá tinha posto. Hesitou um pouco, abriu o pedaço do jornal velho, e uma a uma, foi deitando as pontas no caixote do lixo. Quando se voltou, deu novamente de caras com o senhor André que lhe perguntou.
‑ Onde moras João?
‑ Eu moro perto da sua casa senhor. A minha, é uma casa muito pequenina, com duas janelas sem vidros que fica ao fundo da rua.
‑ Então é por isso que sabes o meu nome, já que somos vizinhos, vamos andando que se está a fazer noite.
‑ É verdade senhor e a minha mãe ralha‑me se não chego a horas de rezar o Terço.
Enquanto caminhavam juntos, o senhor André perguntou:
- ó João, satisfazes‑me uma curiosidade?
- Tudo o que quiser senhor.
- Porque te chamas João Pirisca?
- Ah... Isso foi alcunha que os miúdos me puseram, por causa de eu andar sempre a apanhar pontas de cigarros.
‑ A tua mãe sabe que tu fumas?
‑ Mas .... mas .... balbuciava o João corando até a raiz dos cabelos; Os cigarros são para o meu avôzinho que não pode trabalhar e vive com a gente, e como o dinheiro é pouco...
‑ Então quer dizer que a boneca!...
‑ É para a minha irmã que tem cinco anos e nunca teve nenhuma. Aqui há tempos a Ritinha, aquela menina que mora na casa grande perto da sua, que tem muitas luzes e parece um palácio com aquelas 'státuas no jardim grande q'até parece gente a sério, q'eu até tinha medo de me perder lá dentro, sabe?
‑ Mas conta lá João, o que é que se passou com a Ritinha?
‑ Ah, pois; ela andava a passear com a criada elevava uma boneca muito linda ao colo; a minha irmã, pediu‑lhe que a deixasse pegar na boneca só um bocadinho, e quando a Ritinha lha estava a passar p'ras mãos, a criada empurrou a minha irmãzinha na pressa de a afastar, como se ela tivesse peste. Eu fiquei com tanta pena dela, que jurei comprar‑lhe uma igual logo que tivesse dinheiro, nem que andasse dois anos a juntá‑lo, mas graças à sua ajuda, ainda lha dou no Natal.
‑ Mas ó João, o Natal já passou. Estamos em véspera de Ano Novo.
‑ Eu sei; mas o Natal em minha casa, festeja‑se no Ano Novo, porque dia de Natal, a minha mãe e o meu avô paterno, fartam‑se de chorar.
‑ Mas porquê?
‑ Porque foi precisamente nesse dia, há quatro anos, que o meu pai nos abandonou fugindo com outra mulher e a minha pobre mãe, farta‑se de trabalhar a dias, para que possamos ter que comer.
Despedíram‑se, pois estavam perto das respectivas moradas.
Depois de agradecer mais uma vez ao seu novo amigo, o João entrou em casa como um furacão chamando alto pela mãe, a fim de lhe contar a boa nova. Esta, levou um dedo aos lábios como que a pedir silêncio. Era a hora de rezar o Terço antes da parca refeição. Naquele humilde lar, rezava‑se agradecendo a Deus a saúde, os poucos alimentos, e rogava‑se pelos doentes e por todos os que não tinham pão nem um tecto para se abrigar., sem esquecer de pedir a paz para todo o mundo.
Parecia ao João, que as orações eram mais demoradas que o costume, tal era a pressa de contar as novidades alegres que trazia, e enquanto o avô se deleitava com um cigarro inteirinho e a irmã embalava nos seus bracitos roliços a sua primeira boneca, de pronto trocada pelo carolo de milho que fazia as mesmas vezes, ouviram‑se duas pancadas na porta. A mãe foi abrir, e dos seus olhos cansados, rolaram duas grossas e escaldantes lágrimas de alegria, ao deparar com um grande cesto cheinho de coisas boas, incluindo uma camisola novinha para o João.
Não foi preciso muito para adivinhar quem era esse estranho Pai Natal que se afastava a passos largos, esquivando‑se a agradecimentos.
A partir daí, acrescentou‑se ao número das orações em família, mais uma pelo senhor André.
GRAZIELA VIEIRA
JUNHO 1995

Foto de Vanessa F.

Sussurro

Som de rebentação das ondas
que mergulha profusamente na alma do ser
pintando inocuamente as cores
sem permissão para tal indagar
pergunto-me quem brilha assim tal qual raio de sol
que refracta pelos vidros estilhaçados
reflexos paradoxais de novos mundos esvoaçantes
brisa suave de noite de lua cheia
envolvente de luz em sabor místico
escondendo na verdade
toda a ilusão de encantamento.
Perfeição de simetria
induzida pela ironia do destino
e neste permanecerá envolta
até que ventos longínquos sussurrem
palavras celestiais adornadas de revelação.

Foto de pttuii

Trazida para casa

Trazida para casa. Sentiu-se recortada do ambiente natural de soluços descontrolados em que foi pescada. Podiam censurá-la, e dizer que sempre se sentiu peixe a saltar na lota, com o sol fraquinho do amanhecer a percorrer-lhe o corpo. Mas foi trazida para casa. As redes invisíveis de lavanda barata tolheram-lhe os movimentos. Serviram para o desfeito soar de ilusões que a pareceu enfeitiçar. Aqueceram aquele frio desengonçado que sempre nos toma, quando as decisões tomadas são indefinidas pelo medo das consequências. E até ampararam a queda na ascensão ao inseguro do inesperado. Foi trazida para casa. Sempre previu seda, como ornamento de sedução. Mas por momentos a pele queimava, com o suave beijo da tentação que a envolvia.
Ele escolheu o que ela sempre gostou. O desejo era só um, se alguém a quisesse tomar por deusa de emoções. Que a conquistassem pelos ouvidos. Queria ser deixada em tranquilo desvario, com uma recriação do que o Universo ouviu no dia em que rebentou pelas costuras, e com os grãozinhos de pó que sobraram, começámos nós, os que vamos morrer, a ser criados. A mão dele era suave. Capaz de conter desesperos bacantes, com um saber tocar onde devia. Ela silenciava o que não queria que acontecesse. Com o corpo que ainda controlava, fez-se corpo do desejo que embalava dois corpos que se desejavam.
Mas não tinha de acontecer, se o que se pretendia era só sentir a carícia das corpulentas gotas de chuva que descreviam trovas de amor aos vidros do apartamento. Trazida para casa, pediu meças de contentamento à solidão que a voltou a cumprimentar. Seriam já irmãs de eternidade, se não se quisessem matar uma à outra.

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