Velhos

Foto de Dirceu Marcelino

ESTÓRIAS QUE SE REPETEM

“ESTÓRIAS QUE SE REPETEM”.

Este conto se baseia na estória de “Eros” e “Lara” e de “Marcílio”, os dois primeiro personagens fictícios de nossa poesia denominada Súplica.
As estórias de “Eros” e “Marcílio” podem ser comparadas a do francês Jean Genet .
Sabe-se que “Genet nasceu de uma união ilegal. Sua mãe abandonou-o na primeira infância, tendo sido criado até a adolescência por uma família substituta e depois teria passado alguns anos em orfanato do governo, em Paris. Sempre se sentiu ‘um enjeitado’, pois seus irmãos adotivos o chamavam de ‘bastardo’, consideravam-no “ovelha negra” da família, a quem imputavam os atos mal feitos que fizessem e consta até que fora vítima de violência sexual”.
Aos poucos até os demais membros da pequena comunidade passaram a lançar-lhe a responsabilidade de todos os atos anti-sociais que aconteciam na localidade e passaram a chamá-lo de “ladrão” e “homossexual”. Desse modo, não tendo pai, não mantendo contatos com a mãe, sem ninguém com quem se identificar, foi assumindo a única identidade que poderia internalizar.
Porém, nosso personagem “Eros”, apesar de ter estória muito parecida com a de Genet, ao contrário, tinha pais e vários irmãos. Aliás, estes se destacavam no pequeno vilarejo em que moravam por serem trabalhadores, construtores de “calçadas de pedrinhas”. Eram muito requisitados para fazer seus serviços e “Eros”, com cerca de quatorze de idade podia ser visto acompanhando-os quase todos os dias pela manhã quando a família saia para o serviço diário e só à tardezinha retornava para casa.
Ao entardecer observa-se que “Eros” se associava ao grupo de adolescentes do bairro, pequeno grupo da vizinhança, grupo de amigos, autênticos. Passava a gozar dos folguedos juvenis típicos daquela região e sempre terminavam as brincadeiras em “peladas de futebol”. Após as mesmas, permaneciam por algumas horas conversando, raramente seu grupo mantinha contatos com meninas, apesar de que nas proximidades e no mesmo horário formar-se outro grupo de moças.
O primeiro dos adolescentes que passou a se associar com as moças foi “Eros”, que logo começou a namorar uma delas, a mais bonita por sinal – “Lara”. Esta aos dezesseis anos se destacava por sua beleza. “Eros” também era um rapaz bonito e logo começou a namorar “Lara”, um casal lindo de namorados e inseparáveis. “Lara” engravidou e apressou-se o casamento que sequer havia sido programado. Casaram-se e passaram a morar em uma casa doada pelos irmãos de “Eros”. Tiveram um casal de filhos, duas crianças que se destacavam por sua beleza e gentileza.
No mesmo período em outra pequena cidade vizinha eis que surge - “Marcílio”. Também, ao contrário de GENET, tinha pais. Mas eram ambos sexagenários. Alguns dizem que essa é uma grande dificuldade de pais que concebem muito tardiamente, pois quando alcançam a terceira idade já não tem energia suficiente para cuidar dos filhos adolescentes e acompanhá-los nos primeiros anos e após atingirem a maioridade. Parece-nos que foi o que aconteceu com “Marcílio”. Não teve o privilegio de ser assistido por seus pais já idosos, na sua infância e adolescência.
Mesmo sendo um belo rapaz, ao contrário de “Eros”, não se interessou por namoradas. Ao contrário, diziam que se interessava por rapazes. Apesar desses comentários na realidade nunca ninguém comprovara tal fato. Destacava-se no colégio onde estudava por ser inteligente e vivaz. Logo começou a ser chamado pelos colegas adolescentes de “Marcília”. Percebeu-se que não se preocupava com essas difamações, e aos poucos foi assumindo essa “identificação diferencial”. Como Genet assumiu a identificação de homossexual.
Porém, mais grave do que a assunção dessa identidade foi o fato de “Marcílio”, num mecanismo de fuga e evasão, passar a fazer parte de outro grupo pernicioso, uma “gangue” de usuários de drogas.
Talvez, tenha passado a associar-se a este grupo inconscientemente, induzido pelo casal que praticamente o adotou, fazendo-nos lembrar do slogan que hoje vemos afixados nas traseiras de ônibus caminhões e em alguns locais públicos:

“Adote seu filho, antes que ele seja adotado”.

“Marcílio” após ser adotado pelo casal, de alguma forma começou a se relacionar com outros jovens, pessoas de outra cidade, maior e próxima, e prosseguindo naquele mecanismo de busca de identificação, e de evasão, passou a fazer parte de um grupo formado por pessoas de fora do circulo familiar e da comunidade local, membros clandestinos, ocultos, que compareciam à pequena cidade para adquirir alguma coisa que só o “respeitável casal” comercializava muito livremente, pois além de vendedores de roupas – mascates – também eram respeitáveis no círculo dos ricos, dos mais abastados, pois moravam em uma das mais belas casas da pequena cidade e assim seus relacionamentos se estendiam aos altos círculos sociais.
Provavelmente, os pais legítimos de “Marcílio” gostaram do interesse do casal por seu filho, mesmo porque além de morar bem, do aparente sucesso material o varão exercia respeitável cargo público.
Com bom grado deixaram que “Marcílio” com eles permanecesse, trabalhasse, até morasse. Pensavam que ele trabalharia no bar, dormiria na casa do casal, mas na realidade o jovem passava os dias no bar, no recinto de jogo e à noite passava ao relento a perambular pela outra cidade vizinha, a “trotoir” pela praça e pelas ruas quase desertas até o amanhecer.
Ainda que se resumisse à jogatina ou a promiscuidade sexual o casal de velhos não teria muito com o que se preocupar. O problema era ainda mais grave. “Não percebia o velho casal que seu filho passava por problemas individuais que ‘induzia-o’ à fuga e ao refúgio no consumo de estupefacientes e ao cometimento de infrações conexas”
Aos poucos o respeitável casal que o “adotou” começou a utilizar “Marcílio”, para outros comércios que faziam além das vendas de roupas, que ofereciam para seus clientes de casa em casa.
Percebeu-se então que era um comércio clandestino e ilegal quando alguns cheques emitidos pelo casal foram objetos de registro de boletim de ocorrência na delegacia de polícia local e nas investigações procedidas constatou-se que apenas a assinatura era verdadeira, as demais escritas eram todas falsificadas. O casal dono do cheque, mesmo prejudicado desejava apenas resgatá-los, mas de forma alguma queriam que fosse aberto inquérito. Pois diziam que não pretendiam responsabilizar o adulterador, pois este era “Marcílio” “seu filho adotado” que já tinha naquela ocasião algumas passagens nesta mesma delegacia, por pequenos furtos e não pretendiam prejudicá-lo ainda mais. Por que será?
Ninguém sabia o que estava acontecendo, pois, geralmente, esses atos anti-sociais são imperceptíveis aos que não conhece a subcultura da localidade.
No seio dos grupos secundários que se interligam de modo imperceptível, através de um mecanismo de “transmissão cultural”, “alimentam uma tradição delinqüente com o seu peculiar sistema de valores anti-sociais, que se transmite de uma geração de residentes à seguinte”.
Na realidade “Marcílio”, não era apenas um pequeno delinqüente, hoje reconhecemos, também era vítima. Vítima tão culpada quanto aos delinqüentes traficantes de drogas. Durante as investigações dos estelionatos praticados por “Marcílio”, percebe-se que ele usava apenas camisas de mangas longas, com o propósito de esconder as inúmeras marcas de picadas intravenosas nas dobras dos cotovelos.
Mas como de fato cometera delito de estelionato, foi indiciado em Inquérito Policial e respondeu ao respectivo processo criminal.
“Marcílio” até então conhecido como “homossexual”, agora, também, passou a ser considerado “toxicômano” e “ladrão”. Embora a comunidade local o rejeitasse como sempre, surgem não se sabe como, pessoas abnegadas que espontaneamente oferecem ajuda nas horas de desespero e assim com colaboração de representantes de uma grande indústria local, conseguiu-se sua internação na instituição especializada na recuperação de toxicômanos.
Lá permaneceu por algum tempo nesta instituição, esperando o julgamento do mesmo processo a que respondeu, sendo condenado, foi recolhido à Cadeia Pública da Comarca, para cumprimento da pena de um ano e quatro meses de reclusão. Permaneceu recolhido no regime fechado até ser beneficiado com progressão para o regime de prisão albergue e passou a pernoitar na casa de albergado.
A Casa de Albergado era uma das poucas existentes, que pouco a pouco foi desativada, como as demais.
No mesmo período em que “Marcílio” permanecia internado, o “respeitável casal” que o adotara, também, foi preso, em flagrante por tráfico de entorpecente e ao final condenados as penas de três anos.
A “Respeitável Senhora” depois de um mês de reclusão na cadeia local foi transferida para uma Penitenciária Feminina do Estado. Lá teve algumas dificuldades de relacionamento com as demais reclusas, em face de ser esposa de funcionário público. Porém, com apenas nove meses de reclusão ela foi beneficiada com prisão albergue domiciliar e retornou para sua casa.
O “respeitável Senhor”, também, beneficiado com prisão albergue domiciliar, permaneceu preso apenas por um ano e dois meses.
Atualmente, ambos vivem felizes na mesma casa e continuam a ser respeitados na pequena comunidade. Consta que não reincidiram.
Ocorreu que, enquanto o respeitável casal saía do sistema prisional, logo depois, “Marcílio” ingressava, justamente, em razão daquele cheque adulterado cuja vítima era a “Respeitável Senhora”, pois fora condenado por estelionato.
Neste mesmo período Eros deu entrada na mesma cadeia em que estava recluso Marcílio, chegando a morar por pouco tempo juntos na mesma cela. Em razão disso saberemos a seguir o que acontecera com Eros.
“Eros” e sua bela mulher, também eram fregueses do respeitável casal e, provavelmente, além de roupas compravam outras “mercadorias”.
Logo a toxicomania de “Eros” o subjugou.
Inicialmente, por não conseguir acompanhar seus irmãos no trabalho de construção de calçadas, passou a ter dificuldades financeiras para suprir as necessidades da família e, provavelmente, para adquirir as substâncias entorpecentes de que necessitava, então passou a praticar pequenos furtos. Logo foi indiciado em inquérito. Mas sua primeira prisão ocorreu por porte de entorpecente. Tal infração era afiançável, porém, como nenhum de seus familiares se prontificou a pagar o valor arbitrado, chegou a ser recolhido à cadeia pública.
Consta que nessa oportunidade um dos presos, também oriundo da mesma comunidade, tentou seviciá-lo sexualmente e por resistir com afinco aquele não conseguiu seus intentos. Saiu da cadeia, invicto, mas marcado por uma das mazelas da prisão. Ainda dizem que a cadeia regenera, não foi essa primeira experiência de “Eros” o suficiente para ele.
Pouco dias depois, novamente ”Eros” foi preso por violação de domicílio. Desta vez, consta que o presidiário “Bárbaro” investiu sobre ele com intenções inconfessáveis e para resistir ele fingiu que estava tendo um ataque convulsivo, inclusive, espumando pela boca. Nesse estado foi socorrido e de alguma forma separado de ala da pequena cadeia, onde não poderia ser alcançado por seu algoz.
Ao saberem do sucedido seus irmãos e esposa fizeram esforços para pagar advogado e libertá-lo. Porém, consta que sua bela esposa inconformada do ocorrido, ou seja, com as constantes tentativas de sevícia a que o marido sofria, ameaçava-o abandoná-lo, caso não se corrigisse e retornasse à cadeia.
Foi o que ocorreu, pois decorridos mais alguns meses, outra vez “Eros” foi preso em flagrante por furto. Neste terceiro período consta que, totalmente, subjugado foi presa fácil de “Bárbaro”. Pior do que isso ao saber do ocorrido, sua esposa, o abandonou de vez. Logo arrumou outro companheiro.
“Eros” não foi abandonado apenas por ela, mas também, por seus irmãos e pais. Abandonado, não tendo trabalho e condição de comprar drogas, tornou-se um verdadeiro alcoólatra “bêbado de rua” e nos quatro ou cinco anos que se seguiram, retornou à prisão por flagrantes e condenações por furtos e uso de substância entorpecente.
Este foi o relato de “Marcílio” do ocorrido com Eros, porém, reservou-se a contar se “Bárbaro” tentara alguma coisa contra si. Chegou a dar a entender, que, o que importava saber sobre isso, se ele já era conhecido como “homossexual”.
Infelizmente, não foi longo o período de observação de “Marcílio”, pois ele que era conhecido como “alcagüete”, algum tempo após revelar esses casos que segundo a subcultura carcerária deveria permanecer oculto, e ainda por dar informações sobre outros delitos praticados na região, principalmente os relacionados ao tráfico de entorpecente, em certa data ao ausentar-se, descumprindo o horário de entrada na casa de albergado, foi morto num bairro de uma grande cidade próxima.
“Marcílio” morreu por “over-dose’ de cocaína, mas segundo dizem poderia ter sido forçados a tomar uma dose excessiva, ou seja, fora assassinado. Por quem? Não se sabe, pois esta é uma das estratégias do crime organizado.
Casos como o de “Eros” e “Marcílio” nos fazem lembrar e comparam-se com o de Jean Genet, mas agravados por serem estigmatizados, além de ladrões e homossexuais como “toxicômanos”, “alcagüetes” qualidades negativas que não são aceitas na sub-cultura carcerária, colocando-os na última categoria da hierarquia existente entre eles.
Estórias como de “EROS” e “MARCÍLIO” mesmo fictícias comprovam a dura realidade de nossos dias, mas o que é interessante são estórias que se repetem. Repetem...

Foto de Edson Milton Ribeiro Paes

"EU SOU DO TEMPO....."

EU SOU DO TEMPO....

Eu sou do tempo do Aero Willys...
Do Chevrolet bell air e do Sinca Chambord...
Eu sou do tempo de Elvis Presley...
Dos Beatles, Jimmy Hendrix e Jannis Joplin...
Eu sou antes da camisinha...
Do amasso no portão e das juras de amor no
Pateo da igreja...
Eu sou do tempo da TV preto e branco...
De Pelé, Garricha, Ademir da Ghia, Tostão,...
Eu sou do tempo de Emersson, Pace, Niki Lauda, Piquet
E Alan Proust...
Eu sou do tempo do beijo na boca...
Do dançar coladinho, da pipoca na pracinha e da
Maça do amor...
Eu sou do tempo, em que se dava lugar para os mais velhos
Em qualquer lugar que estivesse...
Eu sou do tempo de Glenn Miller, Ray Connif e Billy Voughan...
Eu sou do tempo da admissão,do normal do clássico cientifico...
Eu sou do tempo todo, mas eu gostava daqueles velhos tempos...
Onde a educação era requisito básico...
Não existia a cocaína, êxtase e nem as drogas sintéticas...
Embalávamos nossas farras ao som de Joe Cocker e muita Cuba libre...
Eu sou de um saudoso tempo, onde a AIDS não existia...
No maximo uma blenorragia...
EU SOU DO TEMPO, NÃO DA TERRA!!!!

Foto de adrikas

Lago Azul

Vai barco navegando,
Em algum lugar ele vai me levar,
Não sei para onde vou,
Eu fecho os olhos e tudo fica tão claro,
E o céu está mais lindo do que nunca.

Olhando tantas estrelas, no amanhecer,
O nascer do sol, eu amo a vida, eu grito, extasiado de tanta beleza.
Eu que tive tantos medos, tanatas dúvidas,
Agora só deixo o barco me levar.

Pelo lago azul eu não sei onde vou parar,
E onde um dia irei te encontrar
Navegue barco, me leve, o vento vai me fazer lembrar
De tantas coisas boas, algumas coisas más.

Tudo bem, estou seguindo para onde ele levar,
Saudades dos velhos tempos, são só saudades,
Não vou chorar, quero dormir um pouco
Sonhar, sentir o frio da brisa me tocar.

Sentir o cheiro da mata me purificar,
Vou navegando rumo ao Sul
Eu vou remando pelo o lago azul e, os passáros voam cantando,
Todos na mesma direção, é tão lindo.

Todo juntos no mesmo caminhos, num só bjetivo
Chegar ao seu destino.
A luz do sol nascente, pintou de laranja o lago tão azul,
Vamos barco me leve, navegue, não dei onde irei chegar.

Eu so deixo o barco me levar, para onde o vento deixar,
Fecho os olhos para ver melhor,
Sonhar,que mal há?
Minha casa está bem longe, mas agora não estou mais perdido.

Não estou mais só,
Estou em sintonia com todo o universo,
Como é bom estar com você,
Tudo fica tão claro, mais alegre e, mais bonito.

Longo caminho que eu sigo, vou indo, seguindo,
Navego e deixo, pelo barco, por você
Que me carrega que nos leva
Pela Lagoa Azul.

Foto de Ronita Rodrigues de Toledo

ESTAÇÃO

Primavera de amores
que se encontram na estação,
onde o trem traz muitas flores
E carrega a solidão...

O verão se aproximando
e o oceano a festejar.
A tarde o sol no o horizonte.
De noite a lua a brilhar...

O outono tao valente
chega como turbilhão,
vai despindo a paisagem,
de manha folhas no chão.

O inverno que não tarde
traz a chuva repentina,
em garoa ou tempestade
vai regando a campina.

Estação de Velhos anos
com o tempo a transportar,
Não tem flores, nem amores,
Nem a lua a brilhar...

Primavera é solitária,
no verão, sol ofuscou...
O outono hiberna sonhos
que o inverno atinou...

Ronita Marinho - BN

Foto de Marta Peres

Depois da Chuva

Depois da Chuva

Depois da chuva veio o sol acariciar
rostos e flores e a relva,
os jardins encantaram-se, as árvores
sorriram agradecendo.

Miúdas flores que enfeitam os balcões
dos sobrados sentiram o calor dos raios
e felizes mostraram-se em cores, tingidas
pelas lágrimas da chuva.

Da vidraça que ainda chorava grossas
Gotas vi reflexos das novas cores
E vi o arco-íris pintado de fresco em
Velhos e caiados muros.

Ouvi a criançada em algazarra nos pátios
Do grupo escolar, risadas e cantos se ouvia
Por todos os lados da praça e o asfalto inda
Molhado mostrava-se de coloração negra intensa.

Os passeios quebrados molhavam transeuntes
Desavisados em suas pernas,
Pessoas se cruzando por todos os lados, molhadas
E encharcadas pelo desaviso da chuva.

Na cozinha de minha avó está minha tia,
Sei que depois da chuva
bela sopa encontrarei na panela
que fumega no fogão e fumaça azul
se evola no ar.

Respiro meu ar de criança, sonho
Admirando a natureza e andorinhas voam
Em festa, não é hora ainda de pensar
No futuro.

Marta Peres

Foto de Carmen Lúcia

Reescrevendo minha história

Reescreverei minha história...

Em cada folha em branco
Que me oferece o amanhã,
Um novo capítulo será registrado...
Um novo rumo, em linhas bem traçadas...
Nada de pranto a rolar lembrando partidas...
Nada de dores, feridas e decepções sofridas...
Celebrarei uma nova tarde, a cada manhã falida...
Falarei das canções das manhãs
Despertando-me suavemente,
E do canto do sabiá a voar alegremente,
Tornando o hoje um eterno presente.
Nada de antigo, ultrapassado,
Velhos rancores, valores perdidos,
Sonhos vencidos, amores desgastados...
Em cada folha, um recomeço...novo arremesso,
Da esperança, a matéria-prima
A reconstruir minhas fantasias.
Do passado, alguns momentos
Que me deixaram saudade...
Merecem ser registrados
E eternizados...A minha identidade.
O futuro?A quem cabe?Ninguém sabe...

Reescreverei minha história...
Singela, sincera, simplória.

Foto de thaizinha2009_

Poema para refletir

Um dia, a maioria de nós irá se separar.
Isso é o que todos falam;
E infelizmente é verdade.
Mas temos que aproveitar todos os dias,
Como se fosse o ultimo,
Temos que respeitar os mais velhos,
Porque eles são nossa inteligência,
Nossa vida,
Nosso estudo.
Aproveite seus irmãos,
Seus amigos,
Seus professores ou seus chefes.
A cada ano, querendo ou não,
Essa hora está cada vez mais próxima.
É triste perder alguém querido?
É triste.
Mas só é mais triste quando alguém que a gente ama muito morre.
Só quem perdeu alguém assim sabe como é.
Muitos de nós achamos que a morte só vem para quem é velhinho,
Mas a verdade é que a morte não tem idade, não tem hora nem lugar para acontecer; só acontece.
Algumas dicas para aproveitar:
-Saia bastante com os amigos;
-Estude muito;
-Tenha um tempo só para a família;
-Viaje muito, nem que seja a trabalho;
-Tome um delicioso banho de cachoeira;
E por ultimo, mas não menos importante:
SEJA VOCÊ MESMO!
Tenha um bom dia.

Foto de Homem Martinho

Morrer de Solidão-I

Miguel, um garoto de apenas anos de idade, vai caminhando por entre o pó da estrada que os seus próprios pés vão fazendo levantar à medida que avança, se alguém visse a determinação com enfrenta o desafio de certeza que não diria que aquele corpo um pouco anafado e de estatura ligeiramente abaixo do normal para os seus dez se dirige para aquele que será o seu primeiro emprego.
Miguel continua a caminhar de cabeça levantada e olhar fixo nos dois pilares de cimento que começam a assomar lá muito ao longe, são os pilares que suportam o pesado portão de acesso à quinta das lágrimas, destino do jovem.
Miguel coloca-se entre os dois pilares, roda a cabeça para trás, deixa-se ficar alguns minutos, volta a olhar em frente e exclama:
- Aqui vou eu direito a uma nova vida.
Prepara-se para avançar mas não consegue evitar que alguns pensamentos, sobretudo recordações, o retenham mais alguns minutos, recorda sobretudo a vida repleta de dificuldades que tem levado, seu pai é um homem humilde, funcionário público, o que por volta de 1964 não significa facilidades, enquanto que sua mãe tenta ajudar, aproveitando todo o género de trabalhos que possam surgir, o que em pleno interior alentejano significa actividades relacionadas com o mundo da agricultura, trabalhos pesados e muito mal remunerados.
Miguel não consegue explicar muitas das coisas que ultimamente constituem para ele questões sem resposta:
Porque é que seu pai não procurava outra vida?
Porque não obrigava os seus irmãos mais velhos a trabalhar, antes permitindo que os mesmos continuassem na escola?
Porque é que os irmãos, irmão e irmã, não deixavam a escola e iam ajudar os pais?
Quando se apercebeu que já perdera alguns minutos decidiu-se a avançar, não tomara a decisão de pedir ao pai para lhe arranjar trabalho para agora estar para ali preocupado com o que os irmãos faziam, ou melhor não faziam pela vida, se eles estavam dispostos a continuar com a vida repleta de dificuldades como o seu pai, então isso era problema deles, ele iria lutar por uma vida melhor, mas desenganassem-se, ia lutar por si e para si.
Sentiu-se orgulhoso por tanta determinação, prometeu a si mesmo que iria trabalhar para uma vida melhor e os outros que fizessem o mesmo.
Parecia quase impossível que um petiz de apenas dez anos conseguisse ser portador de tal modo de pensar e de agir.
Avançou.

Foto de neiaxitah

Crónica do mar...

Com uma vida superior, ao superior que a capacidade humana acarreta, sei hoje o que significa o menos e o mais infinito. Menos infinito é o lugar de onde sou originário, suor ou lágrima de uma existência metafísica que, também, causa desvios na crença da humanidade. E o mais infinito é a sina da minha existência com a qual terei eternamente de viver. Sou quem nasceu para jamais morrer, no fundo sou quem sofre, sou quem vê, sou quem chora, sou quem vive. Sou o melhor indicador da idade humana. Vejo nascer no nevoeiro e no orvalho da manhã, na chuva miudinha da tarde, ou entre uma chuva incansável da noite, aquele que tal como eu é ser, aquela criança que irei acompanhar durante todo o trajecto da sua curta existência. E assim sendo, prezo todos os da sua espécie e protejo os que em mim buscam protecção. E acreditem, ou não, são muitos, apesar de grande parte nunca me ter visto, sonha comigo e, nesses sonhos, eu espalho a espuma, a lágrima do meu corpo e ouço também atentamente os seus júbilos e pesares.
Inicio todos os dias, senão a todas as horas, jornadas diferentes com o ser humano.

Não há ser mais robusto e complicado, mais sábio e ignorante, mas divertido e envolvente. O ser humano enquanto ser pequeno, bebé ou criança, vê a minha angústia, consegue perceber se estou triste ou feliz e, por isso consegue distinguir uma lágrima num oceano inteiro, o que m deixa deveras surpreso e inibido. Inacreditavelmente, num acto de facto humano de ser ingénuo e puro, a criança brinca comigo, recupera o meu sorriso; faz o seu splash-splash, que me faz cócegas; corre para mim espalhando o seu sorriso estridente entre gritos apaixonantes de alma intocável; tudo isso, nas praias que me dão abrigo e, por tal vejo-me na obrigação de lhe beijar os pés. Perante tal tolice minha, a criança grita mais, ri e corre numa alegria imensa enchendo-me o coração que é de sangue azul, mas não aristocrata, que imaginando um mundo sem crianças entristece; e chora lágrimas tal salgadas que até me sinto agoniado com o péssimo sabor da inexistência dos pequenos. São eles que me fazem viver, nunca duvidei de tal. Mas o tempo passa, e o que ontem foi criança morena a quem eu beijei o corpo, hoje é miúdo, pré-adolescente, com manias de rebeldia e actos encantadores revolucionários. Desse pobre, eu tenho pena, nada mais que isso. É alguém que sem saber a pequenez dos seus actos tenta acordar os mais crescidos.
Em má fase se encontra, revolta-se pela incompreensão das novas obrigações que até então não existiam e da incompreensão dos pais. Mas a idade passa e dizem os humanos mais velhos que aquilo também há-de passar; no entanto eu digo que não passa, mas adormece, e com o passar dos anos vai morrendo no coração, ou acorda pelas razões erradas, todos sabemos. Eu também me revolto, mas as minhas revoluções já vão fazendo alguns estragos, quando me vejo com os nervos a flor da pele devido às guerras desumanas, às discussões sem fundamento, ao ferimento que me causa quem me esquece e me tenta destruir, quando me cortam a respiração, são gotas de agua a mais e revolto-me. Vou continente adentro, desbasto, grito, discuto, magoou. Vejo o mal que fiz, mas não e por isso que não o volto a fazer; no entanto, no momento, assombrado pela minha pertinácia, recolho as tropas e volto com as tropas para o vasto território que me foi consagrado. Passo dias ou anos, em sossego e quieto entre lágrimas e arrependimentos, porém, se me voltam a ferir o orgulho, reviro o coração de criança mimada, choro e faço quem me magoa chorar comigo. Não. Não me orgulho de ser assim, mas é feitio, e apesar de tudo, baseio-me naquela máxima de que feitio não é defeito. Às vezes paro, penso e questiono-me que idade teria na idade humana? Nunca cheguei a uma conclusão valida. Mas mesmo assim vou procurando no seu crescimento semelhanças com a minha pessoa.
Tal como a criança é feliz, o pré-adolescente revoltado, o adolescente ou jovem é inseguro ou em contrapartida, seguro demais; assim como eu. Há dias em que acordo com devaneios de conquistar mundos e fundos, de espalhar os meus feitos numa Europa senhora ou num África criança; porem toda a minha segurança se vai dissipando com o tempo, e perco as minhas oportunidades por medo de falhar desperdiçando se calhar boas oportunidades. Sou um jovem velho, tenho sonhos largos e medos amplos, pobre de mim e pobres dos adolescentes. Não há um jovem que me tenha passado nas mãos equilibrado; aliás o equilíbrio é uma utopia. Dá-me um prazer infinito escutar o drama duvidoso de um garoto ou a glória daquele que me vem falar das suas façanhas. Jamais o considero presunçoso. Gosto da capacidade, vontade, nem sei bem definir o que o ser humano possui no seu código genético que nem cientistas reparam que os ligam a mim. O ser humano tende sempre em vir falar comigo, no fundo sabe que mais ninguém lhes irá escutar as glórias, duvidas, medos com tanta atenção e tanta capacidade em ouvir como eu, no fim,
gosto de dar o meu palpitezinho, a minha opinião de mar sábio e sabido. Gosto, também, de ver nascer o amor juvenil que passa por mim e a quem eu pisco o olho e dito um murmuro de boa sorte que só os corações sentem, levando os apaixonados a visitarem-me e a contarem-me os desacatos e boas bonanças. Por vezes aparecem-me descontrolados e desejam mais que outra coisa nas suas curtas vidas, virem viver mais perto do meu coração do que do coração já aglutinado ao seu, do que do coração que amam por uma mera discussão por vezes insignificante ou mesmo porque o amor se esgotou ou acabou. Claro é que dou os meus concelhos mais uma vez, e humilde à parte, por vezes vejo nascer uma esperança de quem me apareceu em retalhos; contudo, é evidente, que me sinto muito mais feliz com os que vêm celebrar o seu amor para a minha beira. Aqueles que unem laços de amor eterno, ou se não for eterno que dure muito tempo, vestidos de branco, de chinelo na areia num dia em que eu mesmo mexo os cordelinhos e como prenda de padrinho que sou, apresento um dia celestial. Céu azul límpido, sol amarelo brilhante e tudo o que os meus afilhados desejarem e merecerem. Em prol daquela união sagrada, pelo menos para mim, recebo de ondas abertas os recém casados. E feliz me sinto ao ver o jovem passar a adulto, porque é nas grandes e verdadeiras decisões que se vê esta transição melhor que nunca. O ser adulto é uma fase bastante intensa, de renovação, cíclica. Existem cinco tipos de adultos na minha eterna vida. O adulto solteiro que vem correr para a praia de manhã, e na sua corrida continua denoto um vazio, ouço a musica tristonha a entrar-lhe pelo ouvido e a penetrar-lhe o coração. O ser humano tem atitudes estranhas, porque quando está triste ouve músicas tristes, quando se sente sozinho procura a solidão. De facto, este adulto solteiro apela-me ao sentimento, e não sei que posso fazer eu por eles se eu mesmo sinto uma semelhança entre a minha vida e a vida deles, pois também eu corro nas praias, com músicas tristes como som de fundo. Com vista a debater este negro pensamento descrevo outro tipo de adulto. O adulto que vem passear a namorada ou namorado acompanhado pelo cão. É aquele que namora anos e anos e mais uns anos com a mesma pessoa, sendo, ou não fiel e acolhedor a esta, mas que em contra partilha repudia casamentos e só permite a entrada do cão na sua vida pessoal. Uma escolha que, por vezes, lhe compromete a vida toda. Se é ou não feliz, nem eu sei, parece ser, mas será totalmente feliz, mesmo que não se sinta bem com as escolhas que faz?
O terceiro tipo de ser adulto é o adulto casado com vida de solteiro que não quer ter filhos nem animais. É aquele que não sabe viver a dois, é alguém que precisa do seu espaço sem perceber que quanto mais espaço tem mais precisa, afastando aqueles, que no fundo, quer por perto, arriscando-se por vezes a perde-los e deixando sempre um vazio na sua vida. Ao menos o outro tem o cão como companhia.
O quarto é o divorciado, adulto que todas as semanas vêm para a minha beira contar que já não sabe o que há-de fazer da vida. Coitado! O personagem bem vai tentando arranjar companhia, mas as que arranja duram pouco e ele percorre a sua vida com o filho do primeiro casamento, o cão de segundo, e assim vida fora.
Por fim, e aquele que prolonga os bons momentos da minha existência é o adulto pai. Aquele que me traz as crianças iniciando um novo ciclo e ocupando os meus dias. Aquele que vem jantar, fazer piqueniques e mais um enorme leque de coisas para perto do Mar, ou seja, de mim. Sinceramente os dias, as gerações vão passando e quanto mais vivo, mais vontade sinto em viver. A eternidade não é boa, nunca o foi nem há-de ser, pois ela é maçadora, sem sabor; no entanto encontrei neste mundo que tanto crítico, que tanto me fere, o que sempre procurei, a vida. Dá-me uma alegria tremenda e uma vontade de viver suprema ver nascer as crianças, vê-las crescer e revoltar perante a insensatez do mundo que um dia se ergueu, tenho um gosto fantástico em vê-los crescer, embora em entristeça ver que eles perdem muitas vezes o desejo de luta por um mundo melhor e até ajudem as más pessoas, que existem em toda a parte, a tentar arruinar, e quem sabe um dia a conseguir, a minha eterna existência; contudo alegra-me as suas aventuras, as suas histórias, as suas esperanças. É admirável ver o evoluir de uma raça. A juventude é a fase mais curta e mais complexa, e é entre todas as fases a que mais gosto, pois também é a que mais companhia me faz e alegrias, e até tristezas me dá; em suma é aquela que me dá o complemento essencial de uma vida. Os adultos também me fazem uma mediana companhia; porém só me aparecem com as crianças ou então para chorar as mágoas, muitas vezes completamente embriagados, raro é aquele que aparece no estado dito normal apenas para dar um simples passeio a olhar para mim. Gosto que olhem para mim confesso, disso não me envergonho, um pouco de vaidade nunca fez mal a ninguém. Mas agora sim chegou a altura de falar a idade que mais admiro. Pura admiração nutro pela velhice.
São os mais velhos, os idosos, que se levantam de manhã e vêem tomar os seus banhos de ouro, que vêem molhar os pulsos e tornozelos no meu corpo ensopado ou apenas o passeio matinal perto de mim. Gosto de os ver a jogar a canastra, tardes ao sol, brindando saúdes. Admiro os que confessam as diletantes vidas e se arrependem e tentam remediar qualquer coisinha no final de vida e admiro principalmente o amor daqueles que passeiam com o companheiro de uma vida inteira de braço dado. É uma sensação estrondosa que graças a Deus, ou graças a alguém que me pôs no mundo, eu possuo e apesar de saber que o que a eternidade não é boa, é bom saber que há seres não perenes que me fazem sentir uma perpétua felicidade com as suas vidinhas simples, complexas, felizes, infelizes, desgraças ou quase perfeitas, e é por tudo isso que eu, todas as manhãs me levanto com o amigo Sol, com a amiga Chuva, ou com o amigo Nevoeiro e abraço este ingrato e saboroso mundo, levantando os braços para ver os surfistas se erguerem no esplendor. Beijo a acolhedora areia agradecendo diariamente o abrigo que esta me dá em cada praia que abraço e dou palmadinhas nas Rochas com um desejo de bom dia. Prolongo a minha tarde viajando pelos cantos do mundo, ouvindo as deslumbrantes e apaixonantes vidas, e à noitinha o sol despede-se sempre de mim, mesmo que nem sempre o veja a despedir-se, e sinto o manto de estrelas abraçarem-me enquanto cobre todo o céu, e penso que só me posso sentir bem com os amigos eternos que tenho.
A querida Lua vem sempre toda espevitada com a sua tão terna voz dizer: “Tio Mar conta, conta o que aprendeste de nojo hoje, o que ouviste.” E sento-me eu a contar as histórias do meu dia à Luazinha, e ela fica bela, encantada, e eu desejo ter mais para lhe contar. Desejo um novo dia, enquanto ela deseja uma nova noite e uma nova noite… desejo uma evolução nesta humanidade, desejo ver as pessoas repletas de felicidade. E o novo dia nasce, e eu observo atentamente cada pessoa que me aparece, ouço as histórias com os ouvidos bem abertos, primeiro porque quero aconselhar de forma correcta as almas que me aparecem e segundo, porque a Lua nunca me perdoaria uma noite sem história. E por mim vão passando vidas simples, complexas, felizes, infelizes, desgraçadas, perfeitas, ou pelo menos quase perfeitas que cobrem os pedaços de terra, que alguém habitou para preencher os dias.
Esta é a minha vida, eterna vida, e assim é e assim será a eternidade, preenchida de defeitos, e com poucas qualidades, mas cada qualidade sobrepõe-se a muitos defeitos, fazendo com que esses sejam quase nulos.
A.C.

Foto de Lou Poulit

REQUERIMENTO PARA TOLOS

Tolos que a brisa dos amores tange, possuem o instante. Tolos, algo mais tolos, que ofertam o brilho agônico de estrelas já consumidas por si próprias, possuem mentiras. Tolos que vaticinam o gozo apoteótico no leito incerto do sol, possuem uma tola eternidade. Mas quem lhes atiraria a primeira não-tolice? Quem jamais se sentiu tolo por amor, sem que antes, ou depois, ou mesmo durante, em algum tempo tenha sido possuído e gostado disso?... Ao sol, senhor de todos os tempos, as nossas vênias... Ao amor humano, grão-senhor de todas as tolices, lambamos as suas mãos generosas... Porque nem a transitoriedade de tudo pode nos derrubar dos trançados neurônios, onde balouça como pêndulo nossa auto-estima, tangida pela própria brisa, molestando-se a si própria, por todos os tolos requeiro...

No comezinho lar do tolo, uma mulher ocupa-se dos seus afazeres, imersa no seu sagrado silêncio. Ao tolo, mais parece uma extensão dos seus domínios, mas tudo em volta dela está semi-nu, tanto quanto ela. As sombras de cada recanto seguem-na, como a pervertê-la à luz da manhã, tenazmente disposta a revelar arrepios nos insuspeitos recônditos da sua pele pudica. Os seios dela esvoaçam de alças baldias da seda dormida, e dançam com simetria um tango ousado, ainda com cheiro de amor ressacado. Nádegas sorridentes tremelicam e, ingenuamente, espalham um sismo pela casa. Por onde ela passa soberana (e ela passa muitas vezes), arrasta um pedaço de céu que convida o tolo ao inferno. Mas entre as suas penugens, uma fauna carnívora e dissimulada a protege da insensatez do tolo. E lá vem ela de volta... Vê-se que ela possui tudo ao seu redor. O que possui o tolo?

E os seus pés? Ah, os pés da mulher amada... Nem os seus pés ele possui... Não são apenas os pés do corpo. Com eles caminham a sua identidade e a sua auto-estima, os seus ideais e o seu silêncio, sua sabedoria ancestral crida submetida. Com eles ela refaz todo dia o caminho da sua escolha tola e descrente, e atrás deles caminham as tolices de muitos tolos crentes. Ao ser apresentado à mulher da sua vida, o tolo é também um injusto por beijar a sua mão. E para mantê-la sob sacro juramento de fidelidade, antes algum dedo do pé recebesse a aliança. Pois mesmo com as plantas altas, e por mais que estejam distantes, e ainda que apontem para direções opostas, eles não crêem. Eles sabem. E dissimulados vagueiam no peito do tolo ancorado, que assim não pode ver suas pegadas, prova mais indelével, endosso insofismável do seu amor. Com as patas silenciosas da fêmea, sobre o barro vermelho do sangue da manhã que se anuncia, caminha a vida que tem fome e sede da mônada, caminho da criatura única, de volta à nudez do lar.

O tolo penitente é de todos o mais desapegado. Em certo momento, distribui as suas tolices e crê que assim poderá seguir leve e ileso, porém não pode distribuir a solidão que o segue. Suas tolices pesam na alma como... um jardim, entre o corpo e o espírito. Ele o cultiva como cultivasse o seu amor e o defende como um cão raivoso. Mas não pode trazê-los para dentro de casa como gostaria, nem o jardim nem o cão. E noutras tantas vezes, o seu amor prefere ficar do lado de fora também. Antes de viajar, o tolo o rega, e ao passar por ele se despede já sentindo o peso da sua ausência. E quando retorna da viajem (nos tolos pesa a compulsão por retornar), encontrando-o do mesmo jeito ele reconhece a sua lealdade. Então o jardim, repleto e perfumado de belas tolices, fica sempre além das paredes, erguidas pelo lado de dentro para que possam se reconhecer, sem se confundir com as suas obras e tolices.

No entanto, não são as tão diversificadas tolices particulares que caracterizam o tolo-medium, mas a maior de todas as tolices, a mais geneticamente generalizada, a mais sustentada por ideologias hoje dominantes no mundo como o capitalismo e o consumismo, e por tantas razões a mais maquiada: o insaciável sentimento de posse. Alcunhado de amor-objeto por dificuldade lingüística, seria mais conciso dizê-lo amor por objetos. Sim, no plural, e isso é facilmente explicável. O primeiro amor de qualquer tolo são na verdade dois. Basta apenas alguma manha para que um deles lhe seja disponibilizado, ficando o outro para depois. Com o passar dos anos, o pequeno tolo desenvolverá muitos tipos diferentes de manha, porém, ao longo de toda a sua vida e mesmo quando já for um tolo-velho (talvez desdentado) ele dará preferência a objetos de aparência dupla... E macia...

Portanto, não se deixem iludir as tolas pelas deliciosas tolices maquiadas dos tolos, nem vice-versa. Sejam tolos novos e inexperientes demais, ou muito velhos e canalhas, sejam enormes ou apenas tímidos tolinhos, bem pressurizados com pouca irrigação celebral ou escassos de sangue com muitos sonhos na cabeça... Se já é tão difícil ter posse de alguma coisa nos amores, imaginem a tamanha tolice de querer exclusividade de coisas de aparência dupla! Posse das suas respectivas portadoras? Sem chance... Sustentar financeiramente as suas fartas e socializadas tolices? Como investimento, certamente será a alternativa mais segura... Garantia de uma aposentadoria tola e miserável.

Ora, o amor humano tem sobrevivido a tolices milenares. Mas teria se perpetuado sem elas? A brisa que tange os tolos, assim como as estrelas que podem ver, não são mais que um instante fugaz, a própria vida é um instante fugaz! Mas é tudo que podem possuir, tolos ou não... Por que então se deveria descartar as tolices? Não são elas mesmas as melhores referências para que se reconheça o tipo de amor insosso e inócuo? As tolices e o sexo se alternam enquanto o amor sobrevive, mas ele só será feliz se ambos ocorrerem simultaneamente de vez em quando. Apenas algumas vezes, e isso tornará cada amor inesquecível. Se alguém cultiva um amor por muito tempo, provavelmente cultiva alguma tolice. E se alguém se recorda de um amor passado, com muita certeza tem alguma tolice para contar. Talvez ambos sejam tolos e tenham seus próprios jardins particulares... Assim como eu, que sequer tenho uma carteirinha de estudante para pagar meia-entrada, em algum pulgueiro da cidade, e ser tolo o bastante para assistir o filme! Não, chega... Sejamos tolos, até sejamos convictos, mas nunca mais sejamos tolos-anônimos...

Eu, Lou Poulit, vulgo Passarinho-tolo (*), artista plástico, poeta e contista, por meio desta tolice crônica venho reclamar de volta todas as minhas tolices antes distribuídas, por equívoco desapego, declarando-as doravante reintegradas ao meu acervo sentimental, inalienáveis e insucessórias.

Por seu justo reconhecimento, venho requerer à minha própria auto-estima de tolo do amor humano, registro definitivo e carteira de identificação de tolo-aprendiz, com foto de passarinho.

Outrossim, declaro, por ter declarado “de rua” meu cão raivoso, que meu jardim desde já está aberto à visitação de tolas, loiras ou não, desde que portadoras de coisas de aparência dupla apreciáveis (a critério do declarante) e queiram nele amanhecer.

Para dirimir quaisquer dúvidas, elejo como fórum privilegiado a subjetividade coletiva de todas as beneficiárias das minhas tolices, destas desapropriadas sem “chorumelas”, digo, sem querelas, bastando que seja sediada em algum lugar entre o corpo e o espírito.

Sem mais para reclamar...

(*) – Em sites e comunidades de poesia da Internet, o autor também é reconhecido pelo pseudônimo de Passarinho.

Lou Poulit

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