Luz

Foto de Zedio Alvarez

Poema de um ex machista

Quem nunca se sentiu amado
Carrega no coração uma cruz
A opressão lhes faz um desalmado
A escuridão joga fora a sua luz

É acudido pela sombra machista
Antes de ser visitado pela solidão
Faz pose de um protagonista
Não aceita a vontade da emoção

Depois de tanto tempo apanhar
Pede a intervenção da pouca fé
Reconhecendo que só sabe amar
Ficando ao lado de uma mulher.

Foto de angela lugo

Amor eterno amor

Perfumei-me com essência de rosas
O aroma que te embriaga em êxtase
Vesti-me com aquele vestido que tu gostas
bem coladinho ao meu corpo,
formando curvas sensuais a te enlouquecer.
A brisa da primavera adentrava o meu quarto
os aromas das flores misturam-se,
inundando o ar com seu perfume.
Olho o relógio. A hora se aproxima
A hora que tu chegaras para nosso encontro.
Com o coração eufórico, acendo as velas.
Que espalhei por toda a casa,
para dar um aspecto romântico.
As cortinas entreabertas deixam entrar,
o luar prateado da noite de lua cheia.
Tudo colabora para esta noite de amor,
que é dedicada aos enamorados.
Escuto seus passos vindo em direção à porta.
Minha face brilha translúcida, o coração estremece.
Olho para a mesa posta com todo carinho.
Ao centro um buquê de cravos coloridos,
junto ao vaso um cartão, feito a mão.
Escrito em linhas traçadas em fios de ouro
uma declaração assim escrita:
Meu amor já um ano estamos juntos,
e esta é a nossa primeira comemoração.
Não poderia ter sido em um melhor dia,
senão este em que se comemora o amor
Deixo aqui expresso todo amor que sinto por ti,
com estas letras que brilham como o sol.
Quero dizer-te que assim brilha o meu amor.
Nada poderá apagar esta luz,
que a milhares de anos brilha e continuará,
até que a eternidade o consuma.
Assim é o meu amor por ti.Eterno....
A porta abriu-se, tu entraste, com um sorriso.
Sem nada dizer enlaçou-me...
E em teu peito aninhou-me.
Sussurrando ao meu ouvido perguntou:
Quer ser a mulher eterna da minha vida?
Minhas pernas bambearam, o coração disparou.
O abracei e quase desfalecida de emoção respondi:
Sim. Para sempre meu amor!
E como num passe de mágica lá tu estavas ajoelhado,
colocando o anel de noivado no meu dedo.
E naquele momento extasiada pela felicidade ouvi,
ao longe sinos badalarem em sinfonia
Vinha da Capela de São Valentim.
Selando assim o nosso enlace de amor sem fim!

ângela lugo

(Direitos Reservados)

Foto de Neryde

Doce segredo!...

Hoje amanheceu um lindo dia!
E a luz que do sol irradia
Veio a mim segredar,
Um sentimento que devo,
Expressar e cuidar...

Acompanho seu versejar
E envolvida nesta loucura,
Expresso aqui meus sentimentos,
Deixando-os nascer nesta mistura.

Continuando minha procura
Descubro em ti, o que me falta
E de pronto fico à espera
Do teu carinho que me conforta.

Sem medo desvendo,
O mistério de ser "eu em ti"
Por um momento,
Ainda que só em pensamento.
Meu doce segredo...

Foto de Senhora Morrison

Liberta

Livra-me do seu sentimento de posse.
Amar, não sabe o que é.
Livra-me do seu moralismo vil.
Honra, nunca tivestes.

Ris da dor alheia
Mas não suporta a tua própria
Engenhava-me mais sofrimento
E tivestes minha devoção!

Chama-me verme
Julga-se forte, viril.
Mas faz-me seu escoro
Seu chão, para que pise, pise...

Só sabe ploriferar o medo
Ganhas-me no grito
Violenta minhas entranhas
Sempre que se sente só

Eu que parecia lhe dever
Nunca ousaria seus olhos
Dei-te a submissão
Fui-te um depósito de gozos, esporros...

Era só o que valia
Só o que me fazia valer
Diante de um semblante psicótico
Acompanhava-me da incapacidade

Almejar-se-ia seu reconhecimento
Se não lhe descobrisse agora
Tão fraco, tão fora.
De realidade que ainda desconheço

Tu foste meu primeiro, meu único.
E com mãos de ferro
Marcava-me com sua brutalidade
Com prazer em me sangrar

Jamais saberia ter força olhando estas marcas
Não poderia sequer tentar fugir
De sua presença negra e duras palavras
Mediante suas perspectivas

Nunca tiveste um horizonte
Não me mostraste as rosas do mundo
Deixara as pétalas a outras
E me enfeitava de caules e espinhos

Acostumaste-me a pouco amor
Mas minha alma já cumpriu sua sentença
Agora que com fôlego caminho para a luz
Sinto-te ainda mais agressivo

Nunca me ganhaste
Não me amedronte
Mesmo em flagelos irei recomeçar
Aqui ou em qualquer lugar

Vou curar minhas feridas
Com minha saliva
Tenho a mim
E isto me basta

A dor me abriu os olhos
Vejo-me tão capaz
Vejo que te suportei além
Sozinha será mais brando.

Suas ameaças já não me martirizam
Tão pouco o cumprimento
Nunca tive nada a perder
Não me destes nada

Vou antes de tudo acontecer
Antes que nada se faça
Ainda que respiro
Agora que me livro...

Então dormes homem
Que ontem foste digno do meu amor
Dormes que enquanto isso
Vou para onde não alcance seu cheiro

Que seja embalado em sonhos malditos
De murmuras e lamentos
E que quando desperte
Tenha uma vida em sofrimento

Aqui jaz tudo que fui pra ti
Neste ímpeto de coragem
Deixo-te, a querer que esqueça.
Que um dia existi...

Senhora Morrison
30/05/2006

Foto de Lou Poulit

Amor por Obras de Arte

Sabe de uma coisa que me surpreende de vez em quando, a cada vez de uma forma diferente? O poder que têm os objetos de arte de fazer com que as pessoas desenvolvam uma relação psíquica absolutamente particular com elas. Já ouviu falar naquele sujeito que vai morar em um lugar mais valorizado, pinta a casa nova, troca todos os móveis, “...a velha calça desbotada ou coisa assim” (*), os sapatos, o carrão, o cachorro, troca até de mulher!... Aí quando o amigo (que não foi trocado) faz uma primeira visita... Não há como fingir que não viu, lá está aquela escultura, pintura, artesanato, ou seja lá o que for. Sem dúvida é a mesma! Se você nunca viu, prepare-se para conhecer um dia alguém assim.

Tenho uma cliente adorável. Comprou uma (apenas uma e nunca quis outra) pintura minha da série Bailarinos Elementais. Pois bem, segundo a própria, de manhã ela não vai trabalhar sem se despedir. A Bailarina fica o dia inteirinho quetinha na parede da sala, na mesma posição!, de frente para a porta, esperando que sua dona volte e diga boa noite, ou bom dia... Falando sério, quando ela me contou (foi assim mesmo, ela não deixou que ninguém contasse antes) pensei que fosse dizer que a Bailarina saía bailando pela sala... ou pior, que abrisse a porta pra ela!

Para que ninguém duvide, conto outra. Uma outra cliente, igualmente adorável, encomendou um Anjo Peregrino fazendo uma relação de especificações. Queria que o Anjo ficasse na cabeceira da cama, mas não o queria nu como os da série. Arrumei um jeito de cobrir as partes pudentas do jovem Senhor com algumas penas da asa. No dia marcado, ela veio buscar a pintura no final do expediente e saiu pela cidade toda serelepe. Até chegar em casa, com certeza deu muitas “pinturadas” em pessoas que queriam apenas chegar em casa íntegras. Pois bem, tomou sumiço... Cerca de um ano depois, eu estava expondo na feira turística de Copacabana e senti alguém me cobrir os olhos com as palmas das mãos, pelas costas para fazer surpresa: “Se você adivinhar, só pode ser um anjo”... Ora, passados mais de doze meses, até para um demônio haveria de ser difícil adivinhar que ela estava dando uma pista do anjo dela e que, portanto, tratava-se dela!... Conversa-vai-conversa-vem, perguntei pelo Anjo. Devo assumir ter parte de culpa, porque nesse momento eu próprio tratei o personagem como uma pessoa. E ela prontamente respondeu que estava lá no mesmo lugar. Querendo fazer uma piadinha, perguntei se ele nunca saía, nem para tomar um cafezinho ou, pelo menos, se espreguiçar. Então minha cliente, hoje uma boa amiga, me disse: “Sair ele não sai não... Mas às vezes eu tiro”. Naturalmente, pedi que explicasse. E ela me contou, com alguma timidez, que quando o namorado dela chegava, ela dissimuladamente ia no quarto (sem acender a luz), descia o Anjo do prego e o empurrava para baixo da cama! Não consegui me segurar. Não achei que pudesse ser uma indiscrição minha e quis entender a razão. Resposta envergonhada: “Ah... O seu Anjo tem um olhar muito severo”... E depois veio outra pior. A última risada dessa noite aconteceu quando ela me confidenciou que certa manhã, sentiu “pena” do Anjo e o reconduziu ao seu lugar, sem se importar com o fato de que o namorado ainda estava na cama. O resultado foi uma pergunta dele indignada, mas para mim surpreendente e reveladora: “Quem é esse cara aí?!”...

Foto de Lou Poulit

Hoje Celebro uma Estrela

Hoje celebro uma estrela.

Porque, como de todas as estrelas,

Devemos desistir de tê-las

E como o barco, que apetece Pessôa,

De tão boa apenas pertencê-las...

Pelos cantos, sob os estrelados mantos,

Em cujas noturnas lembranças vagueio.

Hoje celebro muitas coisas.

Até aquelas crianças cheias de dentes,

Tão ricas, tão felizes, tão magrelas,

Que hoje celebro a lembrança delas,

Das velas que seus sorrisos dispensavam

(Quando até a luz faltava);

Porque tímidas estrelas guardam

O sonho radiante das manhãs

E aqueles sorrisos de dentes

Guardavam e protegiam pra gente

As nossas esperanças terçãs.

Sobretudo, do meu amor não apanhe,

Por celebrar com tão simples champanhe

O mais nobre e verdadeiro sentimento:

O querer-tão-bem mais insuspeito,

Que assim como um fermento do peito

Enobrece o tempo e a distância...

É uma prece, uma constância...

Quanto mais velho: melhor.

Hoje celebro uma estrela

Que não pode pertencer à noite

Nem ao dia, nem a ninguém;

Pois que seja, pois que sobreviveu!

Nos protegeu, pois que nos beija!

Nos fez crescer além da idade...

E tão injustamente amesquinhamos:

É só amizade.

Lou Poulit, jul/2006

(Aniversário da bailarina e amiga antiga Agda França, prestes a embarcar para um trabalho no Japão).

Foto de Lou Poulit

Soneto das Digitais

Poderia ver o cais do passado

despencar no horizonte hostil... sem fim.

Mas o veleiro à luz tarda, em mim...

Tarda o meu peito, em saudade ancorado.

Queria vagar por todos os mares...

Nem todos os éolos juntos, zangados,

secariam o brilho dos olhares

túmidos da luz dos tempos guardados.

Pensei em naufragar, tocar o fundo,

deixar-me ao silêncio imundo de amar

sem futuro, apodrecer sem sonhar.

Mas nem a volúpia das algas, corais,

nem sereias velariam com amálgamas

em meu coração suas digitais.

Foto de Lou Poulit

Antes Sujo o Verso Seja, Que o Homem em Quem Viceja

Meu Deus, lá se vai mais um ano! Mais um cano e eis que vejo: Porque ainda sou tão puro! Uma luz no fim do escuro.

Começar tudo outra vez... Tudo que se fez (sem trocadilho), do porão ao tombadilho. Tudo, tanto que se quis, e tudo mais que não se diz. Como arrepio que fugiu pela mente; pois somos gente, de carne e osso, e mesmo do fundo do poço vejo: Porque ainda sou tão puro! Uma luz no fim do escuro.

Se lá se vão, os anos não importam. Entortam-se os anos como pepinos: de meninos. E sem olhar pra trás!

Mas não confunda a barafunda que aqui faço (e não afunda) com o corcunda da igreja, que mesmo sem abraço beija o pé, que de pronto abunda! Deixem-me ser errado porque queremos, ao menos uma vez (e não porque queiram). Fui tão sério, tanto, tanto, quis tanto fazer tudo certo... Que mágica! Ao se virar a página, nenhuma coisa pode ser tão trágica.

Tome o poeta por assexuado, mas o homem é na verdade macho (e precisa usar desodorante). É facinho, mas é macho de fato. Com focinho e tudo, macho do mato. Da fruta e do flagra do flato!...

Basta, nunca fiz tanta bosta posta num espaço tão curto. Mas só assim me ameniza a lombeira de um ano inteiro, à beira de fazer uma última e salutar besteira. Antes sujo o verso seja, do que o homem em quem viceja! Em Notre-Dame, na Lapa antiga, nem a Cornélia boa de briga me escapa e nem à tapa me convence, que de tudo nada se aproveita. Se já me peita hoje com o sorriso (embora ela pense que economizo) não sabe na vida o quanto eu a desejo! E que por isso... Eis que vejo: Porque ainda sou tão puro! Uma luz no fim do escuro.

Nessa vida não há dois sentidos... Há três, quatro, cem! E todos tidos como sem-vergonhas, sem isso e sem aquilo. Mas não é um “self-service”. O poeta serve-se de palavras, crava as unhas no meu plexo e no sexo dos meus ideais (ais!), mas eu quero é mais, muito mais. O mais difícil: O Himalaia, a panacéia divinéia, até mesmo a Paulicéia, o Saara, o Everest, a Cachemira... Pois está na cara que se veste e depois se tira a fantasia! Para que só reste a luz do dia... Que seja a luz feliz dos olhos, de preferência dos olhos da vida!

Nada contra as luzes da virada. Mas seja a luz eternizada sobre o que se construiu pedra por pedra (ou seria pedrada por pedrada?), dia e noite, lembrança a lembrança... Porque nossa imensa andança, qualquer que fosse a distância, já tinha exato um endereço. Quero ser grato. Por ter pago o preço, por ter sido tanto tempo lapidado, para não perder agora o brilho do olhar.

Pois que venha o ano-novo logo! Assim volto a ser sério e rogo: não se apague em mim o sorriso da amada. Então, ainda que a minha estrela se apague, que o sol em zigue-zague, perverso caia no próprio escuro imerso, minha alma que ainda viceja gritará ao universo: Veja! Porque ainda somos mais puros juntos, uma luz no junto dos escuros!

Foto de Lou Poulit

O Beiço da Feiosa

Cansado demais para continuar meus trabalhos de pintura no ateliê, de falar com meu próprio silêncio, decidi dar um tempo a mim mesmo. Assim também, escapava um pouco do convívio com o senso crítico de artista plástico. Tinha e ainda tenho esse hábito. Em arte, faz bem de vez em quando apagar tudo o que há no consciente. Depois deixar que o subconsciente, onde de fato habita a arte, aos poucos recomponha toda a estrutura de critérios e conceitos. Fazia uma tarde morna e abafada, típica do verão carioca. A tática era escolher um lugar sossegado no calçadão da praia de Copacabana, de onde pudesse observar de perto as milhares de pessoas que vão e vem caminhando. O apartamento da rua N. Sra. De Copacabana, onde havia instalado o ateliê, era de fundos e de lá não se via ninguém. Um artista precisa observar, muito, como um exercício diário. Apenas observar e deixar que seu silêncio assuma o lugar do piloto. Então uma série de impressões, não apenas luz e forma, serão armazenadas. E quando ele voltar ao trabalho elas estarão lá, disponíveis no subconsciente.

Depois de alguns poucos minutos esparramado numa cadeira de quiosque, já havia conseguido reunir tantas observações que era difícil mantê-las na mente de modo organizado. E ainda mais concluir alguma coisa daquela bagunça. Tentei interromper a observação para fazer uma seleção prévia sem novos dados. Muitíssimo difícil. Minha mente estava de tal modo seduzida pelo que estava em volta, que não podia evitar o assédio da sucessividade. Sempre que sentia a alma crescer e “viajar” nas próprias avaliações, subitamente era trazida novamente ao fundo do abismo por alguma sensação irresistível, como num grande tombo, que só poupava a cadeira de plástico. Tentei fechar os olhos então, mas isso também se mostrou inútil, ainda pior. O estímulo causado pelas demais percepções, que dessa forma ficam mais conscientes do que o normal, era poderoso o suficiente para provocar a mais estranha angústia de não ver com os olhos. Reabri-los seria quase um orgasmo!

Mas depois de um obstinado esforço consegui finalmente identificar algo suficientemente freqüente e interessante: muitas pessoas aparentam imaginar que são alguma coisa muito diferente do que aparentam ser! Talvez ainda mais diferente do que na realidade sejam. Achou confuso? Não, é muito simples. Veja, o nosso senso crítico tem a natural dificuldade de voltar-se para dentro, ademais, os defeitos dos outros não são protegidos pelas barreiras e mecanismos psíquicos de segurança que criamos para nos defender, inclusive de nós mesmos. Por exemplo, um jovem apenas fortezinho e metido numa sunga escassa, parecia convencido de ser uma espécie de exterminador do futuro super-dotado. Um senhor setentão, parecia convencido de ser mais rápido e poderoso que o Flash Gordon (um dos primeiros desses super-heróis criados pela fantasia americana do norte). Uma mulher com pernas de uma cabrita, difícil descobrir onde guardara os seios, fazia o possível para falar, aos que ficavam para trás, com uma linguagem de nádegas, que na verdade mais parecia uma mímica de caretas.

Mas houve uma outra (essa definitivamente feia, tanto vindo quanto partindo) que me surpreendeu, me deixou de fato muito fulo da vida, me arrancou dos meus pensamentos abrupta e cruelmente: vejam vocês que ela torceu o beiço pra mim, em atitude de desdém, como se eu houvesse dirigido a ela algum tipo de olhar interessado... Onde já se viu?! Quanta indignação! Ora, se com tanta mulher bonita no calçadão de Copacabana, de todos os tipos e para todos os gostos, passaria pela cabeça de alguém que eu dirigisse algum olhar interessado logo para ela? Só mesmo na cabeça dela.

Assim que ela passou me aprumei na cadeira, levantei-me e tomei o rumo de volta para o ateliê. A princípio me senti muito irritado com aquela feiosa injusta, no entanto, como caminhar no piloto-automático facilita as nossas reflexões (embora aumente o risco de atropelamento) já a meio-caminho havia mudado de opinião. Não quanto à sua feiúra, nem tão pouco quanto àquela grosseria de sair por aí torcendo o beiço para as pessoas, inocentes ou não. Mas o motivo de promovê-la a feiosa perdoável era o seguinte: sem querer, me ofereceu muito mais do que havia saído para procurar! E por quê?

Bem, antes de mais nada demonstrou ter se apercebido de mim. Não tenho esse tipo de necessidade, normalmente faço o possível em espaços públicos para não ser percebido, mas o fato é que algumas centenas de pessoas também passaram no mesmo intervalo de tempo sem demonstrar nenhum julgamento, nem certo nem errado, bom ou ruim.

Ora, o meu objetivo ao sair não era o de fugir do julgamento alheio, mas sim do meu próprio senso crítico, que mais parece um cão farejador infatigável e incorruptível (capaz de desdenhar altivamente todos os biscoitinhos que lhe atiro), sempre fuçando eflúvios psíquicos e emocionais nas minhas reentrâncias almáticas. Outro ponto a favor da boa bruxinha: o julgamento alheio desse tipo (au passant) não permite qualquer negociação, como acontece por exemplo quando criamos subterfúgios e argumentos para falsear nosso próprio juízo, às vezes oferecendo até uma boa ação como magnânima propina!

Pensando bem, ela me deu algo muito mais importante. Pergunte comigo: não seria razoável imaginar o tipo constrangedor de reação que ela recebe quando homens jovens, bonitos ou interessantes têm a impressão de perceber alguma intenção no olhar dela? Claro, não apresentando nada de bonito nesse mundo onde todos somos tão condicionados à superfície das coisas e pessoas, qualquer reciprocidade seria mais provavelmente uma gozação. Então, nesse caso, a minha presença (não intencional) na prática ofereceu a ela a generosa e graciosa oportunidade de se vingar! Ou, dizendo isso de uma forma mais espiritualizada: de restaurar sua auto-estima e elevar o nível dos seus pensamentos. Quer saber? Me deu uma vontade de estar lá todos os dias.

Depois de algum tempo, certamente eu a levaria às portas do céu! Isso parece muito penoso? Nadica de nada, esforço nenhum. Veja bem, eu precisaria de muito mais tempo, abnegação, e força de vontade (dentre outras) para levá-la às portas do céu por meios, digamos, mundanos! Isso seria tarefa para um desses rapazes “bombados”, cheios de tatuagens, pierces, juventude e vigor, e sem 40 anos de alcatrão nas paredes arteriais! Nunca leram o Kamasutra, ou O Relartório Hite, ou coisa do tipo, mas pra que? Quando eu era jovem não os tinha lido ainda e não senti nenhuma falta disso.

Em resumo, de quebra ainda fiz a minha boa ação do dia e assim posso manter a esperança de chegar algum dia às portas dos céus, digo dos céus celestiais, lugar cuja direção desconheço completamente... Agora, penoso mesmo (e definitivamente brochante) seria encontrar a dita cuja lá! Sim, por ter chegado antes ela poderia sentir-se à vontade para fazer o meu julgamento e proferir solenemente que todas essas palavras que aqui escrevi não são mais do que uma mísera propina, só para liberar a minha mísera auto-estima do meu sentimento sovina de rejeição! Se assim acontecesse, eu não daria mais para a frente o passo consagrador, ao invés disso daria muitos de volta (sem saber em que direção ficaria o meu ateliê). Ainda juraria para todo o sempre aceitar o meu próprio senso crítico (assim como as demais pessoas comuns do meu convívio) e nunca mais sair do ateliê, interrompendo o meu processo produtivo, com o mesmo fim.

Copacabana, mar/2006

Foto de Lou Poulit

Trovão e o Sabiá Sereno

Aos Leitores e Amigos.

Antes de qualquer palavra, quero dizer que será um prazer partilhar com vocês os meus textos e que sou grato ao Poemas de Amor pela confiança que em mim depositaram.

Há alguns anos venho escrevendo contos. Mas vinha fazendo isso como quem armazena sementes, ou seja, sem permitir que elas brotassem antes da hora. Quando esse Site me ofereceu o blog, quis crer que não mais se justificava guardá-los só para mim. Até porque, talvez a partir de agora eu possa ter percepção de como eles tocarão outras subjetividades, diferentes da minha. Alguns serão postados tal como foram criados, enquanto que outros serão adaptados para que se tornem mais congruentes com os objetivos do Site, que não eram prioritários para a formação original da identidade do escritor.

Espero que gostem já desse primeiro conto, pelo menos tanto quanto eu. Mas como não vejo no conjunto deles, ainda, uma maturidade completa, antecipo que conhecer o que despertam nos leitores será motivo de gratidão da minha parte.

Abraços a todos e, desde já, muito obrigado pela gentil acolhida.

LOU POULIT
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Sentada sob alpendre da mansão colonial, sua fortaleza de toda a vida, Sinhá havia se perdido em seus pensamentos. O dia havia se despedido há pouco, na apoteose fugaz de um céu prestante de cores e texturas, que de tudo o que pode tentou fazer para merecer a atenção da moça. Nem a sinfonia da passarada fez efeito. Tudo em vão, restaram as estrelas que nem sequer se aventuravam. A passarada se calou para dar a vez aos grilos, sapos e outros barulhentos notívagos. Sinhá revirava mecanicamente os fartos rendados da saia à sua volta, pois de fato não estava ali.

Então, passos arrastados vindos de dentro precipitaram-na do etéreo, de volta ao corpinho magoado pela posição pouco cômoda. De tão surpresa e assustada, não teve coragem de se virar. E esperou apenas, como seu sangue esperava dentro das veias. Aos poucos uma luz tênue, mas capaz de expulsar soberanamente a escuridão, se aproximou. Depois mais um pouco. A moça temeu que se aproximasse ainda mais e explodiu em gritos nervosos: Saia já daqui! O que quer de mim, demônio? Eu não lhe chamei aqui!

A pouca distância um caboclo mulato de aspecto impressionante, pele muito morena e os olhos claríssimos de uma onça enterrados no rosto embrutecido, como pequenas gemas raras no emboço úmido da terra adubada pelos séculos. O velho Sereno segurava a candeia, tentando compreender, tão próxima, a moça que à distância vira crescer, como flor única naquelas glebas. Durante parcos segundos, Sinhá não conseguiu balbuciar uma palavra. Tentava decifrar como aquela figura estranha havia invadido seu silêncio, que significado poderia ter dentro dele e se seria perigoso para as coisas ricas que guardava em segredo. Porém, achando que o silêncio era ainda mais insuportável, a moça voltou à carga: Quem lhe deu o direito de estar aqui? Ele tentou explicar: Vim só alumiá o negrume da noite pra vosmicê, Sinhazinha... Carecia de se assustá não... Não tenho medo de nada, ela empinou a própria fragilidade. Como poderia temer um empregado dentro da casa do senhor meu pai? Ademais, estava aqui com meus pensamentos...

O homem olhava com segurança os olhos escorridos de lágrimas da moça, cheios de brilhos amarelados pela chama da candeia. Sentia pena dela, mas sabia pelas décadas de convívio que não se devia manifestar piedade para com os senhores. Sereno sabe que está triste, Sinhá. Ma num pode fazê nada não, disse ele abaixando os olhos. Mas como pode saber disso? Não lhe dou esse direito. De onde você saiu?... Ainda com os olhos baixos, ele respondeu: Sempre estive aqui, Sinhazinha. Vim pra essas terras do senhor seu pai na barriga da minha mãe, que se foi embora amarrada naquele pé-de-jurema-branca, bem ali na direção onde a lua vai nascer já. Eu era desse tamaninho, cabia no cesto onde o alazão comia o seu mio. Naquele tempo o capataz era um homenzinho muito do ruim... Ela só queria alimentar a sua cria...

A moça se refez da letargia quando o ouviu falar no alazão, tornando a gritar: Não me fale do meu alazão. Eu amava o Trovão como se fosse uma pessoa! Ninguém montava nele além de mim! E acabaram de trazê-lo num arrasto de pau-de-mangue... Ele estava morto! E eu vou matar quem fez isso com ele... E a chorar convulsivamente ela recostou-se no portal, até sentar-se de novo no degrau do alpendre. Sereno continuou calado, imóvel, com os olhos cravados nas lages do chão. Como se sua alma cansada procurasse uma brecha para um imenso arrependimento.

Tentando descobrir em seu próprio silêncio o que deveria fazer naquela situação triste e constrangedora, o velho caboclo foi lentamente até a arandela pendurar a candeia. Não sabia o que fazer a mais. Durante quase vinte anos quisera ajudá-la em muitas situações de perigo, mas sempre chegava alguém antes. Sereno trabalhara sempre na plantação, às vezes tratando dos cavalos doentes e outras como mateiro. Amava a menina, antecipava os riscos que ela corria, mas haviam outros mais próximos dela. E agora o mesmo sentimento de proteção lhe parecia palpável de tão denso. E ironicamente, embora estivessem ali apenas os dois, simplesmente não sabia o que fazer.

Passados alguns poucos e imensos minutos, a moça quebrou o silêncio, mais calma, porém sem perder a altivez da voz: Como se chama? Sereno, Sinhazinha - disse ele. E porque está aqui, nunca lhe vi dentro de casa?... O velho empurrou a aba do chapéu para trás e coçou a calva rala e branca, como sempre fazia quando se sentia inseguro. Demorou um pouquinho mas respondeu: Eu vim de pés lá de trás da serra dos pastos... O senhor seu pai mandou que me alimentasse e ficasse por aqui até amanhecer. Ela insistiu: Mas por que veio de pés? Ah, Sinhazinha, parei no meio da mata para ouvir o sabiá-da-mata, tava cantando bem em cima de mim. Desde menino adoro os sabiás, num gaio da mangueira, por cima da minha palhoça tem um que fez ninho agora. Quando passo o café da tarde ele tá arrebentando os peitos, de tanto chamá uma fêmea pro seu ninho novinho e arrumadinho. Mas me distraí, meu cavalo assustou-se com a onça e saiu desembestado, nem sei pra onde. Mas vou lá buscar, pro seu pai meu senhor num ficá num prejuízo maió. Não é um bicho caro, é até meio capenga... Mas é um bom companheiro, num sabe? Vendo a perplexidade dela, ele perguntou: Que foi Sinhá, com essa boca aberta, quem nem peixe morto? A moça sussurrou: Onça?... Que onça é essa, Sereno?

O velho respirou profundamente. Não haveria mais de esconder. Ela que soubesse a verdade e que fizesse o que achasse justo. Disse a ela com segurança: a mesma que pegou o Trovão... Aquele sangue todo foi porque quando cheguei ela já tinha garrado no pescoço dele – disse caboclo limpando instintivamente as mãos grosseiras nas calças. A moça mostrou-se inconformada: E você não fez nada para ajudar o coitado? Não tinha uma arma, Sereno? Sinhazinha, ele caiu por cima da bicha, esperneava como um porco endemoninhado... Endemoninhado é você, miserável! Ele era o alazão mais valente que conheci... Só que havia uma onça mordendo o seu pescoço... E um homem medroso e inútil assistindo a sua morte desesperada! Que queria que o Trovão fizesse?... Sereno, se calou constrangido. E ela quis saber mais: E depois, Sereno?... Sinhazinha, num é nada fácil chegar perto de dois bichos grandes e raivosos... E eu só tinha mesmo o meu facão de mato e não queria ferir ainda mais o Trovão. Sim, mas o que você fez? – ela implacável. Eu nada, Sinhazinha, a onça é que resolveu desaparecer. Onça é um bicho covarde. Só pega pelas costas, sangra e espera morrer. Mas se sentindo insegura ela larga e fica de longe só espiando. Esperando a hora de comer sossegada. E o outro, que também é bicho, sabe que vai morrer e que ela vai vir lhe rasgar as tripas. É só uma questão de tempo... O mundo dos bichos é assim mesmo, Sinhá. Ninguém muda não. Vosmicê ta triste e eu também... Mas o Trovão tá não... Só tá esperando os primeiros lampejos do dia, pra correr por essas terras sem fim, pelos campos e pelas matas fechadas, num tem mais nada que lhe impeça... Vai conhecer todos os lugares onde nunca tinha ido, vai beber água do rio grande e vai saltar nas ondas da praia... Enquanto isso nós vai fica aqui chorando de tristeza, porque num pensa que ele ta livre como nunca foi... É que como nós só sente o sentimento da gente, só pensa com a cabeça da gente, então acha que o trovão ta sentindo e pensando a mesma coisa, Sinhazinha... Não tenha raiva não... Que ele não pode aparecer pra vosmicê e lhe contá como que é lá donde ele vem, ele vai ficar triste por causa da sua tristeza...

A moça se esforçava para aceitar aquela sabedoria estranha, que quase desdenhava os seus mais puros sentimentos, todas as coisas que aprendera a sentir. Mas, embora não tivesse coragem de dizê-lo, até que gostava muito de imaginar seu querido Trovão suando da correria que tanto amava, brilhando ao sol e ao luar. Ele amava o vazio dos espaços, os obstáculos que vencia, amava o vento revirando as suas crinas, enchendo-lhe os pulmões no peito enorme e musculoso, e depois expirava com força fazendo seu próprio vento, era quase um deus da natureza... Ah, como ele gostava disso... – dizia a si mesma. Alagada da própria ternura, disse então ao velho: Ele lutou até o último instante não foi, Sereno?

Ele era valente demais, eu o conhecia desde que era um potrinho muito abusado... Sou lhe muito grata, quero que fique, se alimente bem e descanse bastante. E depois vá buscar o pangaré, antes que essa onça o coma, já que não comeu o Trovão, pois que os homens foram buscá-lo antes disso... Sereno sentia-se mais à vontade agora, já sentado também no degrau de baixo. E completou: Vou Sinhazinha, antes de clariá vou atrás dele. E ai dela que se meta... Faça isso por mim, Sereno – ela pediu com raiva.

Não posso prometer, Sinhazinha... Não Sereno, não se arrisque, leve uma arma... E se ela lhe pegar pelo pescoço, como fez com o Trovão?... Vosmicê num fique triste não, Sinhá... Também sou meio bicho, já fiz muita coisa nesse mundo de meu Deus... Já matei oito onças, seu pai meu senhor pode lhe dizer... Uma delas ia morder era o pescoço dele... É que de uns anos pra cá elas estavam sumidas, que os cachorros farejam a catinga delas de longe... Gato tem raiva de cachorro e vice-versa, num sabe?

Eu prometo, Sereno. Vou contar para os meus netinhos essa estória. E vou me lembrar de dizer que você foi um herói, que não pode salvar o Trovão, mas veio de pés buscar homens, para que ele tivesse um enterro digno. Meus netinhos vão aprender a odiar todas as onças, porque essa matou o Trovão... Mas eis que tais palavras indignaram o velho filho-do-mato, e ele quis ser exato: Não, Sinhazinha... Isso não é certo, não é verdade não... Como, Sereno? Se ela não matou o meu alazão, então quem foi?... Fui eu mesmo, Sinhazinha... A moça de um pinote ficou de pé, com o dedo em riste, enfurecida lhe disse: Seu traidor! Vá embora, suma daqui! Nunca mais quero ver sua cara! Não vou lhe perdoar jamais! Vai... Antes que eu grite por alguém para lhe surrar no pé-de-jurema, desgraçado!

Naufragados novamente em profunda tristeza, ambos se foram. Ela para chorar na cama e ele no mato. Mas nenhum dos dois conseguiu dormir. A moça rolou na cama, sobre o lençol úmido das suas lágrimas, até que lhe viessem chamar para o almoço. Não foi. À tarde, na hora da refeição também não quis sair do quarto, deixando a todos apavorados. Seu pai começou a preocupar-se, vendo que as mucamas não paravam de cochichar pelos cantos. Resolveu-se a sacudi-la. Entrou no quarto como um furacão para intimidá-la e foi querendo saber o porque daquele drama. Sabia o porque, também sentia muito pelo alazão, sabia o valor que tinha, mas não queria perder também a filha. Sinhá estava desolada e não apenas pelo seu Trovão. As horas lentas da madrugada lhe convenceram de que havia sido injusta com o Sereno. Estava agora claro que quisera apenas poupar o animal de mais sofrimento. Não podia carregá-lo nas costas e com certeza não quis que o alazão assistisse a desgraçada da onça comer-lhe as carnes ainda vivas. Ela estava soterrada de remorso e com muito jeito fez o velho concordar em mandar buscá-lo. Assim também concordou em levantar-se para se banhar e voltar à vida normalmente.

Alguns dias depois estava novamente sentada no alpendre, mas dessa vez assistiu a obra da natureza que se comprazia em dispor da sua atenção. O dia terminou. Escureceu por completo. Ela se lembrou da noite em que se assustou com Sereno. Dessa vez queria imensamente que ele lhe trouxesse a candeia. Havia preparado algumas palavras para lhe pedir que perdoasse a grosseria. Ninguém lhe dissera uma palavra durante esses dias, tinha a impressão cada vez mais densa de que não lhe queriam falar a respeito. Uma luz veio de dentro, mas pelo andar sem botas não poderia ser Sereno. Era uma mucama, que foi dispensada. Sinhá só queria a luz do velho caboclo, como naquela noite. Agora queria gostar dele, da sua sabedoria e da sua paz. A lua começou a aflorar, derramando seu prateado pelas colinas que pareciam abraçar em segurança a mansão. De repente, algo mexia nas folhas do pé-de-jurema-branca, que pareciam lhe acenar variando o reflexo do luar. Então, para sua imensa surpresa ouviu com nitidez o canto mavioso de um sabiá... Mas como? Sabiá cantando há essa hora? Não pode ser... Não queria aceitar o que seu próprio silêncio lhe dizia, lutava contra com todas as suas forças... Então ouviu de novo, logo ouviu outra vez e de novo tornou a ouvir... As defesas que havia erguido em si própria foram ruindo a cada canto, como se fossem rojões de poderosos canhões. Até que não pode mais sustentar a certeza que preferia. O sabiá só podia estar feliz. Tão feliz que nem se importava com a noite, não queria esperar o amanhecer! Se quisesse vê-lo sempre feliz, devia afastar a tristeza. Libertá-lo do próprio peito para que fosse completamente livre, para que cantasse onde quisesse e quando quisesse. Seu canto não era triste como o de outros, mas vigoroso e doce como o de uma flauta da natureza. A mucama voltou com um semblante pávido, mas quedou-se quando à luz da candeia viu que o de sua Sinhazinha sorria para a lua, já em seu esplendor. A mucama lhe disse: Sinhazinha, o seu pai mandou meu irmão e me primo buscar o Sereno... Mas eles não querem falar, estão com medo. Medo de que? Diga logo... Não fica brava comigo não Sinhazinha... Fala de uma vez, mulher... É que a onça pegou o Sereno também, Sinhazinha...

Completamente perplexa, a mucama ouviu a Sinhá lhe dizer com doçura: Não fique assim tão triste. Há essa hora ele deve estar bem assobiando por aí... Por onde, Sinhazinha?... Pela natureza, pelo céu, pelo rio grande, ou se lavando nas ondas do mar... A pobre mucama não conseguia atinar com aquelas palavras surpreendentes e Sinhá completou: Anda, pode deixar a candeia na arandela e vá pra dentro. Se precisar eu lhe chamo, agora vá. Quando mais tarde seu pai veio lhe buscar para dentro, aliviado pelas falas da mucama, encontrou-a bem disposta, quase feliz para aquelas circunstâncias. Sinhá aproveitara o tempo para fazer uma prece emocionada, repleta de gratidão e amizade, pela alma do velho Sereno. Durante toda vida estivera bem ali e nem o havia notado. Mas havia sido de grande valia justo no momento que mais precisou. Se estava feliz a ponto de assobiar no galho do pé-de-jurema àquelas horas, então deviam estar todos felizes: O Sereno, sua pobre mãe e também o Trovão. Não, não queria mais pensar em tristezas. Foi quando seu orgulhoso pai, sentindo necessidade de participar daquele momento lhe disse: Deixe estar, querida... Aquela maldita onça não irá longe... Eu me encarregarei disso pessoalmente.

Lou Poulit
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