Cara

Foto de ek

Me desculpe meu bem

mas não sei pedir desculpas,
me perdoe,
eu peço uma, duas, admito estar errado, peço três.
mas não me ignore assim, eu não suporto.
exploda, me xingue, me manda tomar no cú.
diga que eu sou lixo, não presto, não valo o teu amor.
jogue na minha cara que me odeia e todas as coisas ruins que faço,
mas não se cale assim,
não guarde este rancor,
não se cale meu bem,
pois não posso te ver assim tão triste,
guardando para si esta dor que deveria ser minha.
não tenha medo meu amor,
não se preserve, não preserve nosso amor,
assim você me mata, destrói meu coração.
minha linda, não faça assim.
minha linda,
bata em mim, me xingue, me odeie,
mas não guarde seus sentimentos,
não esconda seus pensamentos,
eu quero ouvi-los, seja o que for,
mas não faça assim,
não se cale minha linda,
não guarde esta tua tristeza, esta tua dor,
porque ela é minha, ela tem de ser minha,
sou eu quem deve chorar,
deixe para mim o dever de sofrer,
não me proteja, me odeie,
pois este teu medo de ex, explodir, de falar, gritar,
mata-me, me mato, eu morro.
este teu rosto tão lindo, tão quieto, tão triste,
que tanto me ama e se cala
tira meu sono, tira minha paz, me tiram lágrimas.

Foto de Edson Milton Ribeiro Paes

"ALMA GEMEA"

ALMA GEMEA

Lembrar da pessoa amada
Não é o suficiente
Fazer parte de um conto de fadas
Também não é o bastante

Para ser sua cara metade
Tem que respirar o mesmo ar
Respeitar sua individualidade
Sem ao menos precisar se afastar

Num toque de mão num piscar de olho
Tudo se resolve tudo se encaixa
Até o que visto não sou eu que escolho
Pois o que ela decide é o que melhor se adapta

Tudo o que gostamos
Nem precisamos falar
Apenas compartilhamos
Sabemos que vai combinar

E assim vamos vivendo
Pensando em viver bem
Somente o que queremos
É poder viver para alguém.

Foto de Zami

Aleijadinho

FILAS COLOSSAIS
ARQUITETADAS COM CARRÕES,CELULARES,OLHARES,COLARES DOURADOS
SOBRE A CARA CALÇADA DO MUSEU
PESA TOLENADAS A LEPRA ATUAL
SANTAS FACES TRANSPIRAM O SUOR MÓRBIDO DO ARTISTA
LIBERDADE ENTALHADA NA MENTE HUMANA
COVAS SECULARES PERMANECERÃO SOB O CÉU DESTA TERRA
EXUBERANTE VERDE VIVO DO GRAMADO DESENHADO
ATIVA O CÉREBRO DA JOANA IDEALISTA
VERMELHO OFUSCANTE DO BARRO
SANGUE APAIXANADO DE UM POVO BRANDO
VIDA BROTANDO
A CADA MINUTO NASCE UM ESCULTOR

Foto de Zami

Turista Europeu

TURISTA EUROPEU

Corpo que pede corpo
Ser sem ser nada
Deseja o horripilante
Sem encanto
Dominado pelo desencanto
Cheio de anseios soltos
Querendo apenas ser pegado
Sem risos
Sem alma
Sem prolongar prazer
Ter apenas
Ser usado
Sem amanha
Sem cheirar
Sem ver mesmo
Só Ter
Sem tédio
Sem escândalo
Sem emoção
Baixar a zero a solidão intensa
Corre na praia sem sentir o vento
Se afoga na cana
Acorda com a cara carmim
Ver a rolha na areia
Sem sereia
Sem rir
Sem chorar
Sem magoa
Sem memória
Sem sentimento
Totalmente nulo

Zamy Pesci 18/02/2004

Brasilia-df

Foto de Osmar Fernandes

Natal...

Natal
O povo está em festa.
Cidades enfeitadas.
Comércio em pé-de-guerra.
Propagandas azucrinam...
Papai Noel está caro!
Virou moda, virou roda...
É o desprazer do bolso...
Solidariedade é piegas...
O mundo robotizado mostra a cara.
O progresso deixa o homem sem pensar, perde o raciocínio...
Entra em declínio.
Mas, é natal...
Tempo de refletir... Dar presentes.
Pensar no nascimento de Cristo.
Analisar o porquê exisitiu...
Mas, é natal...
Pessoas ficam sentimentais, outraS mostram a verdadeira face.
Papai Noel é muito desejado pelos fabricantes de brinquedos, de cervejas, de guloseimas, açougues, etc.
Mas, é natal...
Tempo de falar de amor, de perdoar, de pagar a dor...
Natal
Solidão de uns, festa de muitos, tristeza de uns poucos.
Traz alegria, abre feridas, cicatriza manchas da vida, reúne famílias.
Mas é natal...
Tempo de salvar a si mesmo.
De presentear a si mesmo.
De ganhar de si mesmo o natal...
O natal do perdão, do amor, do reencontro com a felicidade... De ser o seu maior presente, afinal, é natal.

Foto de Stacarca

A estrela

A estrela

Ah estrela de constelações
Áureas e formidável beleza,
Da fronte suave e delicadeza
De exorbitadas contemplações.

De tez lívida e bem tratada
Formosura, como uma gaza
Bordada de pasmadas gradadas,
Suspirando desejo a cara.

Robustas e cingidas faces,
Graves, suaves e venustas
Faces cingidas, robustas,
Venustas graves e suaves.

Que contemplam o inexorável
Estrelar absconso sideral,
Crestadas do toque feral,
Arcangélico e lindo, amável.

Espaço! Clarões sidéricos
De imensos borrões cinzentos,
Fulgurante dos céus, sérico
De imagens e sentimentos.

Resplandecentes de amores
Que ecoam, inconsequentemente
Nas noutes e escuros clamores
De amores Resplandecentes.

Enamorado de enamoradas ditas
Situações, enamorando truões
Obsequiados de imensidões,
Ditas, tidas, aditas...

Tiaras de airosas aparências
Como o oiro, como o cerúleo,
Abismada de mistérios, acúleo¹
do tudo, assim como a ciência.

De onde vem? De onde irrompe?
D'amplidão sanhosa pelejante?
De ponto a ponto apenas rompe
os olhares tímidos gotejantes.

Ah estrela linda. Linda! Linda!
De celestes imensos, imensidão
De uma beleza além da vastidão
Celeste, linda, estrela infinda!

___________________________
¹- fig.,

Foto de angela lugo

Papai Noel

Olá! Papai-Noel há muito tempo queria lhe escrever, mas somente agora com nove anos aprendi a escrever.
Todos os anos na véspera de Natal eu imaginava sua chegada aqui na minha casinha, mas infelizmente até hoje não aconteceu e agora mais um Natal se aproxima então pensei que se conseguisse lhe escrever uma carta o senhor viria me visitar, por isso me esforcei ao máximo para aprender a escrever.
Neste período em que vivi muitos sonhos foram se instalando em minha mente e a cada Natal que passou nada aconteceu espero que este seja diferente de todos os outros.
Aqui estão alguns dos pedidos para lhe fazer:
Para meus pais eu gostaria que lhe dessem uma casinha nova, porque a nossa é feita de caixas da feira, sabe, aonde vem às frutas e verduras, pois é assim mesmo que ela é feita e o papelão meu pai recolheu nas lojas que não precisavam. Minha casinha é um tormento, pois quando chove molha tudo e nem sequer temos onde dormir precisamos ficar encolhidos em baixo da mesa ou em algum cantinho para se abrigar da água da chuva, pois aqui chove tanto quanto na rua
Falei para os meus cinco irmãos que iria lhe escrever e todos estão confiantes na sua visita neste Natal.
Sabe! Contei também para meu pai e minha mãe que iria lhe escrever eles me falaram que estou louco, que jamais virá e muito menos trará qualquer presente, por favor, não me decepcione, sei que virá depois de ler a minha cartinha.
Também contei para meus amigos aqui da rua e todos riram na minha cara, zombaram dizendo que Papai Noel não existe que é uma fábula inventada, que são nossos pais quem compram os presentes e depois dizem que foi Papai Noel quem os trouxe.
Eu tenho certeza da sua existência sonho todos os anos com sua visita me trazendo uma bola, pois gostaria muito de ser um grande jogador de futebol, andar pelos parques de bicicleta, correr velozmente de patins... Mas claro que tudo isso é apenas um grande sonho meu.
Mas caso não possa vir, por favor, me avise, pois sei que é muito ocupado na noite de Natal e talvez não de tempo de chegar até a minha casinha
Mais um favor, quando estiver no alto do céu e se por acaso encontrar com Deus diga a ele que lhe agradeço muito por tudo que tenho. Ele sabe que não posso andar e por isso não vou a Igreja rezar, mas agradeço todos os dias tudo o que ele me da para muitos pode ser pouco, mas para mim é muito, pois é tudo o que tenho para sonhar a cada dia em que acordo..
Olha! Se não puder trazer muitos presentes eu não me importo, mas saiba que não posso jogar bola e muito menos correr se não me trouxer uma cadeira de rodas.
Já estou muito cansado esta é a primeira carta que escrevo e levei a noite toda para escrevê-la, já é quase dia, estou com muito sono, vou dormir agora.
Quando o senhor vier na véspera de Natal gostaria muito de lhe conhecer, mas se eu não agüentar esperar pode deixar o meu presente ao meu lado saberei que esteve aqui que não foi sonho e sim realidade.
Estas histórias de que Papai Noel não existe é tudo mentira sei que virá e trará os presentes que lhe pedi aí então eu poderei andar pelas ruas, correr pelos parques, ver os amigos que riram da minha cara e mostrar-lhes a minha cadeira de rodas.
Ah! Mais uma coisa não esqueça os presentes para meus irmãos, eles sim podem ganhar bolas, bicicletas, patins porque eles podem correr... Jogar... Brincar... E eu... Eu graças a Deus posso olhar e ver a felicidade na minha casa reinar.
Um beijo Papai Noel

Foto de Sonia Delsin

UM CORAÇÃO COMO O TEU

UM CORAÇÃO COMO O TEU

Um coração como o teu é coisa rara.
Tu dizias de um jeito tão especial.
Minha cara.
É... tu dizias.
Mas fugias.
Fugias do que eu despertava em ti.
Eu penso que coração como o teu é coisa rara.
Guardo no peito como preciosidade.
Outro tempo, outra cidade.
Adorava tua mão quente.
Aqueles momentos da gente...
Adorava tua fala, tua voz, teu olhar.
Eu adorava contigo estar.
Tem horas em que me pergunto.
O que foi feito de tanto amar?

Foto de Maria Flor e Rabiscos

Quando ele me pega...

Quando o amor me pega na esquina,
num seqüestro relâmpago,
pago logo a recompensa...

Quando o amor bate a minha porta ligeira vou abrir...

Quando o amor me toca,
descubro um céu imenso e um abismo profundo...

Quando o amor vem me traz companhia,
aquele sorriso bobo,
aquela cara de juventude,
aquele abraço que esquenta,
aquele beijo que alimenta,
um não sei o quê,
que me deixa meia dona do mundo...

...E depois de laçada,
alma, corpo e coração,
numa entrega total e alucinada,
num encontro da dor e da alegria,
esse estado anestesiante: O DELÍRIO.

Mãos hábeis, que seguram com carinho,
encaixam nos rumos a seguir, entrando e saindo dos dias...

O néctar de um beijo meio veneno,
meio antídoto, a embriagues de um sorriso
e a promessa de um olhar...

Quando vai embora a claridade,
te reconheço nos contornos da madrugada
e me embalo em braços,abraços, calores
e faço de ti meu ninho e depois de gemidos
o silêncio que conta nosso amor pela eternidade...

Maria Flor!

Foto de Lou Poulit

O CONDE GAGUINHO

CONTO: O CONDE GAGUINHO
AUTOR: LOU POULIT

Quando chegou a sua vez de jogar, o Bacalhau bateu a pedra marfim na mesa de cimento armado, das que haviam na calçada da praça, e disse espargindo saliva e cerveja para todos os lados: A minha mulher é a melhor. Sabe porque eu sempre ganho? Porque ela é falófaga ...— E desatou sua gargalhada mais destrambelhada. A estranha palavra feriu os ouvidos de todos que a escutaram, despertando curiosidade e calando o burburinho dos que jogavam em outras mesas. Todos queriam saber o que poderia significar aquela palavra, mas como todos já conheciam o jeito do Bacalhau, limitaram-se a rir, vindo alguns em seguida fazer uma roda em torno da sua mesa. Ainda restavam pedras nas mãos dos demais jogadores de dominó, mas eles sabiam que a partida estava selada. O velho Baca tinha a última quina e fecharia aquela partida na próxima rodada, sem que os adversários o pudessem fazer algo para impedir.

À sua direita, o Herculano Fraga apoiou o cotovelo mais à frente sobre a mesa, erguendo um pouco o traseiro suado da cerâmica que espelhava o assento dos bancos da praça, e coçou largamente a sua genitália, num típico gesto de auto-afirmação machista. Como não conseguiu atrair a atenção dos demais, que ainda olhavam para o Bacalhau como se houvessem sido ludibriados no jogo, em seguida o Herculano ajeitou os fios grossos do bigode sobre os lábios e levantou o braço para o garçom, enquanto asseverava em tom de brincadeira para o Bacalhau: Se a dona Marilda sabe disso você ta morto, Baca... A dona Marilda era a mulher do Bacalhau. Era uma mulata peituda, nova ainda mas surrada da vida difícil de criar oito filhos. Era uma mulher forte e tinha fama de valente e de mão pesada, que não havia por ali quem não o soubesse. Do outro lado da rua, um negrinho acenou da calçada do bar, confirmando que já levaria para eles mais duas cervejas. Depois, o Herculano falou com impaciência, mostrando que também nas suas veias o sangue já derrapava nas curvas: Acabou senhores, não adianta chorar o leite derramado. A quina com o terno está com o Baca... É, tem jeito não, mas na próxima vou estar de olho em você, Bacalhau — O “seu” Charuto acrescentou, do alto dos seus mais de oitenta anos... Ô, Cha-charuto, vê se, se não começa aí, o meu parceiro ta be-bêbo, já nem tem, já nem tem condição de roubar no, no jooo-jôgo.

O parceiro do Bacalhau era o Conde Gaguinho, que só bebia uns goles e no copo dos outros, para que sua mulher não visse ou fossem lhe contar. Mas noutros tempos bebera muito e de tudo que contivesse álcool, “menos perfume, não gosto não” dizia sempre. Até que depois de uma bebedeira despretensiosa foi parar no hospital, de onde saiu 45 dias e noites depois, muito pálido, todo de branquinho, parecia um defunto, apoiado no braço companheiro da sua esposa e enfermeira, Josefina. Ficara manco, meio lento e gago, porém ainda estava vivo! Razão da sua contumaz alegria. Era mesmo descendente de um conde argentino, que recebera o título pelo casamento com uma alemã, mas o Gaguinho fazia o tipo canalha-engraçado sem a menor cerimônia, e quando queria fazer com que todos rissem se passava por enfezado, falando palavrões gaguejados. A despeito da piedade carinhosa que despertava, era o mais ladino de todos.

As pedras foram embaralhadas e redistribuídas para uma nova partida. Olhando as pedras que escolheu e fazendo cara de desgosto, o negro velho e malandro, que parecia mesmo um charuto, coçou a calva dos cabelos crespos e brancos e tornou a implicar com o Bacalhau: Mas peralá, voltando à vaca-fria, ô Bacalhau, a gente estava falando de mulher boa, né? — O outro confirmou com a cabeça — Então você disse que a sua era a melhor, mas não explicou o porque... Mas eu disse, “seu” Charuto... Não, você usou de propósito uma palavra que, pelo jeito, ninguém entendeu, ou fez que entendeu... — O Herculano sorriu e o Gaguinho também queria entender, o Charuto insistiu — Vamos logo, Baca, explica isso aí que ela é, que agora todo mundo quer saber...

O Bacalhau se fez de rogado e, aproveitando a passagem por perto do garçon pediu mais cerveja. O Gaguinho arriscou: Ele qui-quis dizer que ela é fa, fa-fa-ladeira... Nem pode, Gaguinho — Replicou o Herculano com um risinho sarcástico — Nem tem como... As jogadas se sucediam e, alheio ao falatório, o velho Charuto não tirava os olhos do Bacalhau, cismou que o pegaria de gato ainda naquela tarde. O Gaguinho arriscou outra: Então só, só pode ser pó-porque na hora a, ‘aaaa-ga’ ela fa-falha – Disse escondendo o olhar por detrás das pedras que tinha nas mãos... Dessa vez todos os demais acharam que não podia ser e caíram juntos numa grande gargalhada. O velho negro fechou o jogo, mas foi o Gaguinho quem anotou numa papeleta o traço correspondente àquela partida (ou pelo menos fez que estava anotando), porque todos riam muito ainda. Enxugando as próprias lágrimas com o dorso da mão, o Herculano explica: Não, senhor conde, nesse caso ela seria ‘fa-falhófaga’ – Mais risadas... E voltaram a uma nova partida. No momento mais decisivo desta partida, na sua vez de jogar o Bacalhau pôs seu dominó na mesa com algum barulho, fazendo um gesto discreto, mas que não escapou ao olhar e aos ouvidos atentos do Charuto. Ó, ‘seu’ Baca, pode parar... Que foi Charuto?... Eu vi, tu ta fazendo sinal com a pedra pro Gaguinho, ta pedindo o carroção do terno pra tu ficar batido... Eeeeuuu? Ocê ta bebo, eu nem to vendo terno aqui... Ah, não né. Então eu vou esperar até esse terno aparecer, porque se o terno com a ás não ta na mesa tem que estar na mão de alguém, e se estiver na tua eu vou te botar no lixo – Prometeu o negro, convicto de que dessa vez pegaria o Bacalhau de jeito. Compreendendo o verdadeiro sentido da expressão usada pelo Charuto, o Herculano completou com sarcasmo: Baca, meu camarada, vai abrindo o teu olho, porque o Charutão aqui escolheu você pra botar no lixo, e eu acho que você não está em condições de sair correndo não...

Novamente foi a vez do Bacalhau, mas ele não se mexeu. Os segundos passam e ele não se decide, olha para o jogo e para as pedras na sua mão diversas vezes, porém nada de colocar uma pedra na mesa. O charuto se esforçou para parecer irritado, coisa impossível de se imaginar para quem o conhecesse, e exigiu que o outro deixasse os demais jogarem. O Bacalhau ouviu impassivelmente. Sabendo que a dupla que perdessem mais uma partida perderiam também o jogo e teriam que sair da mesa, Herculano pôs lenha na falsa fogueira do seu parceiro, aproveitando-se do seu potente timbre de voz: Ta fugindo da charutada, né. Mas não vai adiantar, ou você joga ou levanta da mesa e deixa os outros jogarem... Pressionado, o Bacalhau acabou por ceder, mas não sem antes fazer também a sua cena, olhando desafiadoramente com os seus olhos baços e estreitos para os dois adversários, tentando fazê-los crer que tinha duas pedras válidas naquele momento. Mal o Bacalhau acabara de deixar a sua pedra na mesa, imediatamente e com um sorriso largo, cheio de dentes amarelados sob o bigode grosseiro, o Herculano Fraga fechou as duas pontas em ternos, e o Charuto deu um tapa na mesa de satisfação. Agora era a vez do Gaguinho, e ele tinha a impressão de que todos os olhares da praça e das janelas dos edifícios em volta estavam esperando impacientemente pela sua jogada. Tentou pensar em uma saída para impedir que jogassem seu parceiro aos urubus. Mas não havia. Estavam todos prestando atenção e, naquele momento, não seria possível usar uma trapaça sem que a percebessem. Expirou todo o ar do seu pulmão frágil e num gesto de desânimo jogou o tão esperado carroção de ternos sobre a mesa, sem a gentileza de encaixá-lo em uma das pontas. Na sua vez, o velho negro apontou o dedo indicador grande e cheio de nós para o Bacalhau, “Sua hora ta chegando, meu neném...”, e estendeu a mão para encaixar a sua pedra. A chegada do garçom com a cerveja não interrompeu a risada geral provocada pelo alerta do negro, mas quando o rapaz estava servindo Bacalhau fingiu se acomodar no banco, e assim fez com que o garçom derramasse cerveja no colo do Charuto. O negro deu um pulo ágil mas inútil para trás, reclamou, chamou o adversário de desastrado, porém não demorou para que voltassem ao jogo, que estava no seu clímax. Mas assim que recomeçaram chegou a vez do Bacalhau, que disse apenas “passo”. O Herculano foi o primeiro a escapar da surpresa: Como “passo”? A gente sabe que você pediu o terno, agora vem com essa de “passo”...
Mas eu não tenho terno aqui, uai. O que você quer que eu faça, Herculano?... – O Bacalhau tentou se justificar. Todos se entreolharam, procurando uma pista para entender o que estava acontecendo ali.
Determinado a pegar o Bacalhau, o negro levantou-se e fez com que ele abrisse as mãos. Todos viram que nelas faltava uma pedra. Então, afastando as pessoas da roda para procurar a pedra que faltava pelo chão da praça, para sua surpresa e dúvida o Charuto se viu diante da Marilda, e aos pés desta a tal pedra. Sem saber ainda o que estava acontecendo no jogo, a mulata respeitosamente agachou-se para pegar a pedra e entregá-la ao velho negro, que assim sentiu-se embaraçado. Até um segundo antes queria provar que o marido dela era um trapaceiro safado, mas agora já não tinha certeza de que devia fazer isso. Sentindo a tensão provocada pela chegada inesperada da Marilda, o Gaguinho quis fazer uma graça para descontrair: Ó, “se-seu” Baca, chegou a fa, fa-falófaga... A mulher não entendeu, mas sentiu-se convencida de que não devia ser coisa boa e foi logo dando a cara emburrada: Quem é o que aqui, “seu” moço?... O Bacalhau não movia nem um dedo, quietinho, com o pescoço já enterrado no tronco. E o conde, deveras assustado, quis se eximir de qualquer culpa: Sei não, dona Maaa-marilda. Quem fa-falou foi aqui o seu, ma-marido Baaa-baca!

A Marilda até costumava dar uns tapas no Bacalhau, de vez em quando. Porém achava que isso fazia parte da privacidade deles, e não julgava aceitável que sequer o tratassem de “babaca”, ou de qualquer outra forma pejorativa. A perder tempo explicando a sua intenção inocente, o Gaguinho preferiu levantar-se, e se preparar para correr o quanto pudesse. E a mulata já ia dando a volta na mesa, na sua direção. Peraí, dona Marilda. O seu marido aqui ta roubando no jogo. Essa pedra que a senhora pegou no chão bem ali, foi ele mesmo que deixou cair de propósito... – O Charuto argumentou. Conhecendo bem o próprio marido e sentido-se na condição de ser respeitosa para com a severidade do negro octogenário, a mulata estancou por um instante, até decidir o que fazer. Herculano tentou dar um jeito no aperto do amigo Bacalhau: Pode deixar, a gente já conhece esse pilantra e gosta dele assim mesmo... Mas a Marilda não quis saber de conversa, pegou o marido pelo cotovelo e foi puxando aos trancos, dizendo que queria ver se a pilantragem dele funcionava em casa. Não houve quem conseguisse ficar sério.

Fim de confusão, o Charuto pediu ao Gaguinho a papeleta de marcação dos pontos: Gaguinho, passa a papeleta e deixa a outra dupla sentar na mesa... Mas a paaa-partida não te-terminou! -- O conde protestou. Como não? – Herculano quis ver o rasgo de papel – Só faltava uma, o seu parceiro roubou, o ponto é nosso... Pooo-pode ver bem aí na, na paaa-pa-pa-peleta que ainda fa-falta uma paaa-partida!... Falta nada não, seu conde canalha! Eu estou contando desde o início. Você deixou de anotar aqui a batida do Charuto... Eee-euuuu?... Você mesmo, com esse seu jeitinho de pobre coitadinho, seu Gaguinho, sei que é o maior larápio... O Gaguinho pretendia rechaçar a acusação do Herculano, mas como todos em volta riam com certeza concordavam, e o jeito foi rir também. Para não perder a dignidade ponderou, para delírio dos demais: Ora, aaamigo, se eu não tenta-tasse, como podia saaa-saber se você presta aaa-tenção no jo-jogo?

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