Asas

Foto de Rosendo

ILHOTA

HILHOTA
manhã, silenciosa manhã,
não deixes que nada te aborreça.
E no embalo de tua calma
faz com que eu mereça:

Voar sereno sobre os mares,
com asas longas de gaivota,
pousar suave e tranquilo
nas práias brancas de uma ilhota.

Num grande colchão de areia
adormecer e sonhar,
com o canto mágico da sereia
que naquela ilha está.

Saindo do fundo do mar,
me chama de pescador.
Faz de seu sorriso um encanto
de sua voz um grito de amor.

Sabe que estou sonhando
e me acaricia o sembrante,
cola seu corpo no meu
e logo sou seu amante.

Meu corpo se disprende
num suspiro enternecido,
e digo: que bom é sonhar e viver
neste corpo envolvido.

Manhã, me traz de volta.
O pássaro, já tagarela,
e ao invés de sonhar
vou até aquela janela,
e acordar a saudade.

Antonio Rosendo

Foto de Cecília Santos

CREPÚSCULO

CREPÚSCULO
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#
#
Sou um barco carregado
de crepúsculos.
Que avança serenamente
mar à dentro.
Entregue ao sabor do vento
te procura.
Sou bater de asas
transparentes
Sou noite, sou lua,
sou sol, sou chuva.
Sou fracção
de pensamentos.
Sou nuances no
céu de anil.
Sou nuvens soltas à
correr livremente.
E nesse mar brumoso.
Sou só uma alma
à peregrinar.
Na manhã que o dia trará
Sou um raio de sol a
espargir fulgores.
E nesse imenso mar sou
um naufrágo a chorar.

Direitos reservados*
Cecília-04/2008*

Foto de Bira Melo

METAMORFOSE

Se for para te ter sempre:
Eu passarinho em teu coração...

Se for para transformar teu repúdio em amor:
Eu acabo borbuletando...

Se for para mimar você:
Eu gateio, mesmo sem ser um felino...

Se for para te devorar:
Eu cachorreio, mesmo sem saber latir...

Se for para dar asas aos teus sonhos:
Eu águia sempre vou e vôo...

Bira Melo )

*direitos autorais reservados, in Pedaços de um CaraMelo.

Foto de Henrique Fernandes

GELO DA SOLIDÃO

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Paira um manto de suspiros
Prolongados por uma angustia
A alegria que me viciou outrora
Neste momento é um palácio em ruínas
Onde pássaros sem asas
Fazem ninhos de espinhos
E o tempo decadente atalha as rugas
Que rubricam a minha tristeza
As minhas horas que já não conto
São de Inverno rigoroso
Aqueço a alma no gelo da solidão
Com um calor mórbido
São múltiplos tesouros por descobrir
E eu tento escapar ao peso da pedra
Que me sepulta nesta cova
Tão escura quão recheada de nada
Envolto por muralhas de batalhas
Embandeiradas de luto e revestidas
De lágrimas que festejam a minha derrota
Sou aposta de um sonho
Que é carta fora do baralho
A vida preza-me veneno puro
Meu choro é um grito sinistro
Atormentando até as serpentes
Que rastejam nos meus desejos
Mas não consigo morrer para a vida

Foto de Henrique Fernandes

ESCRITO NOS TEUS OLHOS

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Quando suspiro a satisfação que me dás
Sou um vulcão que estremece o solo com desejos
Numa erupção que semeia prazer na tua pele
As minhas mãos são raios solares que te bronzeiam
De carícias tropicais despertadas no meu íntimo
Que aquecem a tua vontade de mim confessada
Ao pousares a tua face no conforto do meu peito
Conquistado pela tua entrega com sabor de amor
Aromatizado pelas maravilhas que provo
Nos deslizar molhado dos teus lábios nos meus
Caminhar na mesma direcção pela vida a teu lado
Sou uma tempestade devastadora de obstáculos
E a bonança do caminho escrito nos teus olhos
Com brilho de esperança abundante no teu sorriso
Quando te aperto com um abraço de seres minha
Sou rochedo inquebrável nos golpes da tristeza
E a espada de um guerreiro no auge da coragem
Ao derrotar um exercito de incertezas no nosso leito
Dispo do corpo solidão vestindo-o com teu corpo nu
Recebendo todo o esplendor da tua pessoa
Sou um clarão de música cantarolado no horizonte
Um sentimento que assalta a lua e rouba o luar
De lua-cheia para o depositar no altar da tua alma
Adorno o meu bem-estar no teu calor de mulher
Que marca a hora de renovar o sentido da vida
Uma metamorfose que transforma o próprio Sol
Numa borboleta batendo as asas ao nosso amor

Foto de Maria Goreti

O BEIJO

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O BEIJO

(Oswaldo Genofre & Maria Goreti Rocha)

Pela sua existência, só fantasia.
Eterna viagem ao encantamento,
Ávidos, ternos, de muita alegria.
A imaginação nas asas do vento!

Às vezes, de carinho, molhados.
Com o gosto do desejo, ardente,
Provocadores de tão ousados,
Do paraíso, a própria serpente!

No rosto, doce sinal de amizade,
Na mão e na testa... muito respeito.
O coração a pulsar forte no peito...

O caminho certo para a intimidade,
Chega a fazer-nos perder a razão,
Os corpos, de tão unidos... explosão!

*Direitos Reservados aos Autores*

Foto de Lou Poulit

A MONTANHA E O PINTASSILGO (CONTO)

A MONTANHA E O PINTASSILGO
(Parte 2)

Com o passar do tempo, a tal tempestade não viera e duvidando de que viesse, afinal a montanha apiedou-se do pintassilgo, que se mostrava irredutível. Pediu que cantasse alguma coisa, depois que voasse para outra fenda só para ver o colorido das suas penas, pediu até que fizesse ao menos alguns passos da sua dança nupcial, o que era capaz de despertar sincera inveja da montanha. Tudo em vão. O passarinho só conseguiu emitir um único pio, mesmo assim em um tom debochado. A montanha então se indignou: quem esse cara pensa que é ― perguntou a si própria ― qualquer um dos sóis que passaram por aqui nos últimos mil anos daria qualquer coisa para me ver pedindo algo a alguém! Qualquer estrela desceria do infinito para me salvar, como se eu fosse a sua dracma perdida particular! Que raio de motivo pode ter este ínfimo montículo de penas, para recusar os pedidos tão simples de uma montanha tão maior que ele?

Raio?! Onde, onde dona Montanha? ― O pintassilgo saiu subitamente da sua silenciosa meditação. Ora, Pintassilgo, não sabia que tu és capaz de ler pensamentos. Não o sou de fato, exceto quando podem ser um indício de tempestade. Verdade? É verdade sim... Eu estava aqui quietinho, quase zen, entrando em alfa. Sei... Um zero à esquerda. Não! Um zero não. Nem à esquerda nem à direita. Mas nesse estado, a minha mente poderosa é capaz de proezas que não podes imaginar... Ah, mas que bichinho mais pretensioso. Tuas explanações a respeito são desnecessárias. Esquecestes de que sou uma montanha? Eu já dominava estas técnicas muito antes dos teus ancestrais secarem as penas. Eles foram pegos por uma tempestade, foi? Que tempestade o quê, Pintassilgo, tu tens fobia de tempestade. Então por quê ficaram com as penas molhadas? Pintassilgo... Quis dizer-te que nós as montanhas passamos a vida a meditar. E que eu já houvera feito isso por uma pequena eternidade, quando os primeiros pintassilgos migraram do mar para a terra. Entendestes agora? Não sei bem, dona montanha. Penso que podes estar a me enrolar com esta tua sabedoria. Ora, por quê? Porque se meus ancestrais moravam no mar, deviam ter escamas e não penas molhadas.

A montanha aprumou-se nas suas profundezas e pôs-se a refletir por um instante: precisava concentrar-se mais, era muita arrogância para o seu gosto, contudo até que ele era bem esperto. E também teimoso como uma pedra... ― a montanha riu-se da própria piada. Depois, pensando bem, sentiu-se compelida a reconhecer que a tal tempestade, justo por não chegar, houvera lhe feito um bem. Deu-se então conta de que havia uma velada simbiose naquela relação aparentemente pouco útil. Mais que isso. A amizade de um passarinho não deveria ser importante para quem tenha a vida de uma montanha, muito menos os seus dejetos, que já lhe pareciam suportáveis. Sequer deveria tê-lo percebido, ele não viverá tempo bastante para ser importante. Entretanto, embora isso fosse difícil de explicar, já o era. Tanto que lhe preocupava. Conseguira despertar a piedade de uma montanha!

De repente o pintassilgo cantou, arrancando a montanha das suas reflexões. E logo ele ergueu-se, espreguiçou-se abrindo longamente as asas e depois sacudiu-se todo, da cabeça a ponta do rabinho. Mas a montanha ficou dividida. Em parte era o que ela queria antes: vê-lo menos triste. Por outro lado porém, ao vê-lo assim ela teve um pressentimento desagradável. A montanha dissimulou: Ora, ora, que bom vê-lo tão bem disposto, Pintassilgo! É mesmo, Montanha. Acho que a tempestade foi passear no mar... Talvez, mas, olhe aí bem ao teu lado, estas sementes fresquinhas, devem estar uma delícia e servirão para que reponhas as tuas forças. Nossa, Montanha, eu não estive doente. É, mas ficastes aí nesta fenda quentinha por horas, como se esperasses pelo fim do mundo, e não te alimentastes nem um pouco. Sei que tu estás todo doído. Não estou não, dona Montanha, e para que tenhas certeza disso, vou descer ao vale e comer as mais tenras lagartinhas, que não agüentam subir aqui. Sementes são comida para pintassilgo com auto-estima baixa. Mas Pintassilgo, não há necessidade ― ponderou ela ― então não sabes que sob as pedras também há insetos apetitosos? Claro que sei, mas estes têm sabor de terra. As lagartas que se empanturram de folhas têm um suculento e variado sabor, dependendo das folhas que estiverem comendo. Para um pintassilgo, o vale na verdade é uma colossal bandeja de salada, hum... É simplesmente irresistível!

O bichinho parecia mesmo decidido e a montanha já se sentia irritada com tanta teimosia. Mas como, para uma montanha, não é bonito que se exploda por um reles pintassilgo, somente porque ele não quer entender os seus tão bem intencionados motivos, ela optou por mudar a tática: Se tu te contentares com as larvas que te ofereço, antes de cair a noite te contarei um segredo que vais adorar. O pintassilgo franziu a testa e refletiu. Depois tentou negociar: Talvez... Se me contares logo. Ah, contando logo não terá graça nenhuma. Mas, ao cair a noite já estará na hora de dormir, e o que vou fazer de bom com este teu segredo? Que me importa? Azar o teu ― Ela dissimulou... Caramba, dona Montanha! Não eras tu que me aperreavas para que saísse a voar por aí? Estás a me esconder algo.

(Segue)

Foto de Lou Poulit

A MONTANHA E O PINTASSILGO (CONTO)

A MONTANHA E O PINTASSILGO
(Parte 6)

Naquela manhã não houve o habitual espetáculo de luzes dos coloridos véus da manhã, quando a alma da terra parece fazer vênias à chegada do astro-rei. A montanha cultivava especialmente o seu gosto por esse momento. Na verdade, ela se sentia uma montanha muito solitária, confinada em si mesma. Alimentava em segredo o sonho de, na próxima era, ser posicionada pelas contrações da terra em uma posição que lhe permitisse fazer amigas-montanhas. Tal era esse desejo seu, que em todo alvorecer de céu limpo ela adorava ficar observando as montanhas distantes distinguirem-se bem aos poucos do negrume, e as conferia como se pudessem ter dado uma saidinha furtiva durante a noite. Claro, elas estavam toda manhã nos seus respectivos lugares, mas mesmo assim a montanha gostava de fazer esse seu “confere” particular.

O sol já pairava sobre o horizonte, porém nuvens carrancudas e postas amontoadas pelos ventos, umas sobre as outras, só por uma espécie de concessão deixavam passar um raiozinho de luz, que ficava assim como cachorro-caído-do-caminhão, sem saber para onde ir. Era uma manhã escura demais. Aos seres notívagos, que já davam tratos ao lugar de dormir, restava a lamentosa conclusão de que podiam ter aproveitado mais, enquanto aos que, nos seus lugares quentinhos, esperavam pela luz do dia, a preguiça mostrava-se boa conselheira e muito sedutora.

Com um vôo curvo repentino, tirando proveito magistralmente de uma lufada de brisa, o pintassilgo tirou a montanha das suas reflexões. Esse é o meu velho e bom pintassilgo! ― Disse a si mesma a montanha orgulhosa. Ele pousou suavemente na ponta de um galho mais alto, todavia não se demorou ali. Logo decidiu-se a um vôo mais audacioso, embicando de pedra acima. Quase não conseguiu. E vendo-o depois arfar de cansaço, a montanha passou abruptamente do orgulho à mais uma preocupação: suas asas haviam perdido o vigor de antes, seu organismo já não demonstrava a mesma resistência. Isso significava que ele estava muito vulnerável. Qualquer predadorzinho barrigudo, desde que não fosse muito impaciente, acabaria por comê-lo. Desesperada, a montanha começou a procurar por todos os lados, querendo encontrar qualquer animal que representasse uma ameaça. Precisava encontrá-lo antes que ele visse o frágil passarinho. Nas redondezas haviam algumas raposas, uma pequena família, porém a montanha achou que, apesar de espertas e cheias de truques, elas eram lerdas demais para pegar um pintassilgo. Mais acima, um solitário gato-do-mato acomodara-se na reentrância de um lajedo, de onde, protegido pela relva, tinha uma vista privilegiada para encontrar seu almoço. Com imensos e atentos olhos de um verde azulado muito cristalino, ele ainda não vira o pintassilgo, mas estava perto demais para que a montanha se tranqüilizasse.

Em pouco tempo, ela viu confirmada a sua suspeita. O passarinho irrequieto acabou por despertar a atenção do felino. Não era exatamente o que ele poderia considerar um banquete, porém, apenas para o seu desjejum, até que não era mal lamber aquele coraçãozinho antes de engoli-lo. Era algo para ser mais propriamente degustado e nem tanto para abarrotar a pança. O gato bocejou, espreguiçou-se, e só então se dispôs a caçá-lo, tão certo da sua superioridade que já se imaginava palitando os dentes com a cana daquelas peninhas coloridas. Demorou algum tempo até que, muito sorrateiramente, conseguiu se posicionar para um bote seguro. Os gatos são extremamente pacientes e não gostam de errar o bote, tanto que, quando perdem a primeira tentativa, normalmente não tentam novamente. O pintassilgo havia se colocado em um galho abaixo do nível do terreno onde estava o gato, porque descobrira ali bem perto uma colméia de pequenas abelhas. Esperava a oportunidade de comer algumas delas sem, entretanto, atrair para o seu encalço um pelotão de abelhas furiosas. E de tão compenetrado, não se apercebeu do gato, que já estava bem próximo.

Roendo o sabugo das unhas nas pontas das lajes subterrâneas, a montanha era só desespero, porque o passarinho não dava atenção aos seus esforços de alertá-lo. O bote era iminente, a distância muito pouca e o bichinho nem imaginava o perigo que corria, por causa de umas poucas abelhinhas, tão pequeninas. Mas nessas horas a natureza mostra a sua complexidade. Eis que num arvoredo, próximo e acima dos dois, veio pousar um outro sorrateiro predador. Como não podia saber em quem o gavião estava realmente interessado, o gato estancou o seu bote e pôs-se imóvel, como se fosse uma pedra a mais na paisagem. Sua sensatez instintiva lhe fazia considerar que, embora os pássaros menores sejam destaque no cardápio dos gaviões, levar nas garras para o seu ninho um gato gordinho deveria ser preferível, pois assim regalaria a família toda com menos esforço.

Mesmo para uma montanha, acostumada à grandeza do tempo, aqueles segundos pareciam uma eternidade. Reconhecia que aquela era uma cena muito corriqueira da natureza, onde todos de alguma forma são predadores de uns e predados por outros, e embora seu instinto lhe dissesse que não devia interferir no curso natural das coisas, ela não suportava a idéia de ver o seu querido pintassilgo morto nas garras de outrem. Ora, havia esperado tanto para reencontrá-lo. Tinha agora a pretensão de readaptá-lo à natureza, tarefa longa e morosa. Não. Não e não. Definitivamente, não permitiria que ele fosse comido assim, à toa. Ele não seria mais que um aperitivo para qualquer dos dois, enquanto que para a montanha representava uma satisfação incomparavelmente maior.

(Segue)

Foto de Lou Poulit

A MONTANHA E O PINTASSILGO (CONTO)

A MONTANHA E O PINTASSILGO
(Parte 8)

Porém, a eufórica felicidade da montanha de súbito cedeu os seus subterrâneos a uma terrível agonia. Ela logo percebeu que tudo era um golpe baixo. Os pássaros de dentro nada mais eram do que uma família. Para convencer o pintassilgo “fugido” a voltar para a prisão, para mostrar a ele que nunca mais seria o que foi, o caçador trouxera a sua fêmea e os seus filhotes, que piavam apenas porque nem sabiam cantar ainda. Furiosa, a montanha quis voltar a ser um vulcão, mas deteve-se a tempo de arrepender-se. Não poderia despertar tamanha força somente para despejá-la na cabeça daquele ínfimo caçador. Além do que, já tinha uma transgressão grave registrada na sua folha-corrida.

Acalmou-se para desfocar sua energia. Precisava voltar à sua dimensão consciencial, natural e soberana, e não negar ao pintassilgo o direito de escolher. Mas essa era uma tarefa muito difícil. Seu querido passarinho fora arrancado do seu abraço generoso. Passara muito tempo sendo condicionado a uma vida muito diferente, mas agora teria a chance que ele sempre esperara. Ou será que não? E se ele não o quisesse? E se sentisse medo da liberdade? Assim como não mais respondia aos apelos da montanha, com certeza perdera a sensibilidade para todas as coisas, não podia mais compreender o mundo exterior à gaiola. Fora acostumado a comer e beber do que lhe serviam, e não saberia mais encontrar alimento por conta própria. Por mais irônico e inaceitável que isso fosse do ponto de vista da montanha, ele poderia preferir a segurança oferecida por seus algozes. Pelo menos não perdera o seu canto maravilhoso, muito embora agora, isso parecesse menos importante. Mas para os seus filhotes sim, isso devia ser o que existia de mais importante. Sob o peso imenso da dúvida a montanha sentiu a conseqüência da sua ousadia. Deixara-se levar. Fora até onde montanha nenhuma houvera ousado chegar com seu comportamento. Não podia mais prosseguir sob o risco de perder-se em vão. Tudo por um pintassilgo que não quisesse, desgraçadamente, reencontrar-se. O fim das suas dúvidas não dependia mais de si, ou nunca dependera. Era preferível deixar que tudo se ajeitasse naturalmente.

Pois tudo aconteceu muito rapidamente. O gavião não resistiu à tentação de ver três refeições num espaço tão pequeno. Desceu noutro vôo rasante, passando bem próximo, na tentativa de fazer com que ao menos um dos pássaros saísse apavorado da gaiola. O gato achou que o risco já estava de bom tamanho e que poderia muito bem simplesmente esperar em um lugar mais seguro. Quem sabe? Com sorte lhe sobraria alguma coisa, pois havia mais passarinhos na confusão do que aquele gavião intrometido poderia carregar. Como a tentativa anterior não dera resultado, o rapineiro voltou e pôs-se a voar quase parado no ar, bem juntinho das varetas. Mais cedo ou mais tarde algum dos bichinhos se esgotaria de tanto se esbater, e então seria facilmente arrancado pelo pescoço, para fora da gaiola. Entendendo a malícia cruel do gavião, o pintassilgo lançou-se contra ele numa atitude heróica, pensando em bicar-lhe os olhos, golpe terrível e mortal para qualquer gavião, por condená-lo a morrer lentamente de inanição. O que se viu surpreendeu a todos.

Ninguém ali sabia, mas os pássaros engaiolados na verdade pertenciam ao caçador mais velho. Vendo-os ameaçados pelo gavião, sem ter uma justificativa para o fato de tê-los pego sem pedir, ao mesmo tempo em que o pintassilgo atacou o caçador arremessou com toda a força uma pedra, na direção do gavião. Porém em vez deste acertou a gaiola, que caiu, se quebrando e libertando os pássaros. Aquela trapalhada encheu a montanha de alegria, por ver os pássaros libertos. Mas onde havia ido parar o pintassilgo? Todos procuravam por ele. Então descobriram que estava no galho mais alto, pendurado pelo pescoço no bico do gavião. Antes que pudessem dizer uma palavra, o rapineiro achou que já estava bom e tratou de bater suas asas até desaparecer nas nuvens, com certeza na direção de uma outra montanha, onde se sentisse mais bem-vindo.

Nesse dia a montanha chorou, mas ninguém percebeu. Não foi mais uma transgressão sua. Simplesmente ela se retirou para os seus subterrâneos e lá permaneceu por muito tempo. De tão triste não queria ver ninguém, sequer tinha vontade de apreciar o amanhecer como sempre fizera. As outras montanhas que achassem o que bem entendessem, não estava mais preocupada com o julgamento delas.

Numa manhã, entretanto, uma voz que lhe pareceu familiar fez com que voltasse a atenção para fora. Não pode ser ― disse a si mesma. Então chegando ao lugar onde tudo havia acontecido havia dois anos, lá estava um pintassilgo, que já não era mais um filhote, prestes a estourar o peito de tanto cantar. E não apenas por zelo. Vinha de logo abaixo uma zoeira que o fazia aumentar o volume para ser ouvido. Era uma cascata, uma pequena queda por enquanto. Sabia a montanha que, sem imediatismos, a fonte construiria um sulco que melhor lhe conviesse, e no futuro seria uma queda ainda mais bonita. E quando depois viessem lhe admirar, todos já encontrariam aquela plaquinha rústica pregada no arvoredo, escrita com letras que mais pareciam garranchos, porém onde se podia ler com alguma boa vontade: Fonte do Pintassilgo. Não vira quem a pregara ali, porém até que estava bem bonitinha. Obra do velho caçador? Mas que tanta diferença isso fazia?

Foto de Drica Chaves

Satisfação

Os meus olhos se encantaram com você
Eu querendo transformar o mundo, descobri que é preciso criar formas próprias para viver.
Buscando simplesmente o prazer
Desvendo círculos, crio circo e faço riso
Encho o seu ego e se for preciso dou asas à imaginação
Reativo a minha invenção.
Brinca de se esconder, fica de mal
Vou, corro atrás e onde está você?
Será que só te acho ao escurecer?
Um dia a lua nos dirá que São Jorge galopou muito até chegar lá.
E assim, vou seguindo o rastro
Acertando o compasso
Fazendo laços!

Drica Chaves.

Direitos autorais reservados.

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