Trem

Foto de Anandini

Falar com você...

Falar com você...
Falar com você é poder ser livre
é poder sentir
a força ,os caminhos
onde se pode chegar
quando se ama alguém

é poder ousar, é não ter medo
de se entregar

é expor a alma...
limpa,verdadeira
como uma flor aberta
que se rende a entrada do sol

quente e ardente
Simplesmente sente

Falar com você é
abrir os braços para a poesia
é criar sem forças um caminho
que só a gente sabe onde vai dar...

Falar com você é
ter liberdade para subir num vagão
ir de encontro ao infinito
em um trem que partiu em silêncio,sem grito

Falar com você
É sentir na pele
o tamanho
dos seus medos e tédios

pedir clemência a morte
pedir a Deus a vida.
é tentar fechar a ferida

com lagrimas de sangue
que anestesiam a dor
e devolvem a alegria

São palavras ,letras que ora surgem
que ora se escondem
que não se despem como devem
Que se medem, não se entregam

Uma agonia,misturada com poesia
linhas fortes,sentidos confusos
rabiscando o desejo e matando o prazer

Falar com você
é criar asas,é se deixar levar
é viver a realidade de palavras
que não se concretizam

pois a alma aflita
não sabe pra onde partir
se confunde se perde
entre a morte e a vida.

falar com você é
transportar-se para um mundo distante
onde só cabe nós dois

e tudo o mais,deixar pra trás
e distantes de tudo
só há espaço pro amor

e o depois?

O depois vamos ver
analisar,entender

se sonhamos demais
ou se as palavras
impregnadas,de ´Sim
são apenas um nada

são apenas palavras
que se forem apagadas
rabiscadas ou rasgadas
continuam a valer

e se impõe e se firmam
entre ter ou não ter

a coragem,de buscar
a realidade em seu ser

e fundir-se, doar-se
assim

eu
e você.

Falar com você...
é não falar
é ouvir
é amar
é sorrir
é ficar
é partir
é estar sozinha

tu sem mim
e eu sem tí.

Cadê você?

Foto de Giovani Rodrigues

Lástimas de sua Ausência

Desembarquei do trem, como sempre!
Porém, agora não conto mais com seu apoio.
Agora me sinto só. Tão só que não quero mais viver.
E porque deveria querer?

Passei pela sua antiga casa,
E como eu imaginava, você não está mais me esperando.
Agora passo reto. Passo reto para não chorar mais.
Pois já chorei tudo o que devia.

Meu bem, eu sinto sua falta
Assim como os desertos sentem a falta da chuva.

Não estou pedindo compreensão de ninguém,
Já que ninguém iria me compreender mesmo.
O que eu espero e só meu amor, meu amor de volta!
Aquele mesmo que chegou de repente e nem me pediu licença.

Assim como vieste, meu bem, tu foste.
Sem me avisar, sem me abraçar uma última vez.
Isso me entristece, mas não me corrompe.
Sei que vou te ver mais uma vez. Eu sei.

Meu bem, eu sinto sua falta
Assim como os desertos sentem a falta da chuva.

Você bem que poderia ter morrido,
A dor poderia ter sido mais amena.
Pertenceria só a mim, para sempre!
Mas isso seria injusto demais para eu aceitar.

Agora, não conto mais contigo para nada.
E que graça isso vai ter,
Se era só você,
Com quem eu podia contar.

Meu Deus! Eu sinto sua falta.
Assim como os desertos sentem a falta da chuva.

Os dias têm provado.
Não sou mais ninguém sem você do meu lado.
Nós éramos um quando estávamos juntos.
Ainda se lembra?

Sinceramente, poderia sair correndo atrás de você nesse momento.
Mas não sei onde está agora.
Não sei onde esteve ontem.
Não sei onde estará amanhã.

Meu bem, eu sinto sua falta
Assim como os desertos sentem a falta da chuva.

E assim, vou levando minha triste existência
Sem graça, sem vida.
Até, quem sabe, te reencontrar.
E continuar de onde paramos.

Estou pegando o trem de novo.
Estou indo para minha casa,
Sonhar com você, como sempre!
E como sempre , e sempre, e sempre...

Meu bem, eu sinto sua falta
Assim como os desertos sentem a falta da chuva.

Foto de Lou Poulit

São Jorge e o Dragão

Sentados em bancos tipo meia-bunda, Hermes e Cuia haviam acabado de chegar ao balcão da birosca. Cuia era bebedor dos bons. Mulato quase negro, de fala mansa e bigodinho de chinês. Bom malandro, sobrevivente a tudo. De terno e gravata daria um excelente relações públicas. Só bebia cachaça e tinha preferência: Ô Portuga, dá meu marimbondo aí! Já seu amigo Hermes era letrado. O Vela, como era chamado na adolescência, era magérrimo, branco como um defunto, parecia meio lento em tudo. Havia se afastado dali por alguns anos e nesse tempo fez faculdade, arrumou emprego, casou, separou, casou de novo, separou de novo, casou mais uma vez... Continuava mal bebedor, pedindo a mesma marca de uísque: Ah... Bota qualquer um aí, Portuga.

O Cuia só observando. Em sua cabeça um silêncio era bom conselheiro: gozado, o tempo passa e as pessoas vão se misturando. Aquela que conhecemos desde dos tempos das pipas e peladas, agregam-se com outras que não conhecemos ainda, mas parecem tão importantes quanto as antigas, senão mais. E todas se dão muito bem umas com as outras, dentro do mesmo corpo.

Era manhã de domingo, dia de decisão no campeonato local de futebol. A birosca na encosta da favela já parecia lotada. Se a polícia chegasse de repente, com certeza ganharia o dia, porque já era quase impossível aos de dentro vigiar os que viessem de fora. O tumulto pacífico da birosca era como o Hermes. Com o passar dos anos alguns não arredam pé. Outros, desconhecidos, chegam, depois voltam e vão ficando. E outros tantos somem, por algum tempo ou definitivamente. Mas a birosca ainda era a birosca do Portuga e as alterações individuais não modificavam muito a mistura. Fora a fauna birosqueira, tudo mais parecia continuar nos mesmos lugares: as garrafas de bebidas mais caras, os salames e enlatados cobertos de poeira, no nicho de táboa a lâmpada devia estar iluminando o São Jorge que, a despeito da ausência de uma lança, não fora ainda comido pelo dragão, apesar de tantos anos de luta. O próprio Portuga sempre se dizia convencido de o aquele dragão enchia a cara de madrugada, depois que fechava as portas, e que só por isso não conseguira ainda comer o santinho.

O Hermes agora tinha uma identidade virtual, a julgar pelo palavriado que estava usando e que provocava a indignação dissimulada dos bebuns mais próximos: sabe, Cuia, o Portuga devia deletar aquele mictório compactado... Como é que é? – Espantou-se o amigo. É verdade, mermão... Aquilo é um banco de vírus! O Portuga é meio lento mesmo. Ele quer que esses caras acertem uma latinha daquelas. Já viu bêbado bom de mira?... Não – Cuia achou melhor não interromper – Nunca vi não... Então, Cuia, pra começar você tem que se espremer pra passar na portinhola. Só nisso já vai um risco. Depois tem que segurar a bebida, o cigarro, a portinhola... A portinhola?... Claro, mermão, vai que alguém deixa pra última hora e entra lotado. É uma senhora “portada”!... Riram-se os dois e o Cuia completou: É o que chamo de um arranca-rabo!... E o cara que não queria encostar em nada... Vai chegar em casa todo molhado – Hermes interrompeu - e a dona encrenca vai inserir o cara na casinha do quintal, vai passar a noite junto com o Totó!

Ô Hermes, por falar nisso, cadê a Laurinha?... Laura? Ô Cuia, que estória é essa de “por falar nisso”? Eu nunca dormi com o Totó não. Você precisa ler as atualizações do meu perfil... Ler as atualizações... – Repetiu o outro perplexo. E faz isso rapidinho, porque eu tô saindo, Cuia... Você tá saindo... Já vai embora?... Que vou embora, cara? Quis dizer que tô desistindo das mulheres dos outros... – e aproximou-se do ouvido do amigo – Estou apostando todas as fichas na mentirinha... Que mentirinha, Hermes?... Ô rapaz, aquela gata gorducha, que trabalha na “lan house”, vai dizer que nunca viu?... Sei, da loja de internet ali no fim da ladeira. Mas não era a Laurinha a razão da sua vida?... Laurinha nada... Se arrumou com o dono da firma, agora desfila de gerente... Ô meu irmão... – O Cuia mostrou-se penalizado – Que azar... Azar? Você não sabe da missa a metade. Depois dela já tive a Mariazinha, a Teresinha e a Socorrinho... É mesmo Hermes?... Tô te falando, Cuia, mulher dos outros agora pra mim é homem!... Nenhuma delas deu certo, né?... Não podia dar: A Mariazinha só queria saber de ganhar coisas caras... Ih, mermão, isso ia te deixar na miséria... Deixou mesmo. A Teresinha no início era uma santinha, o marido tinha sido atropelado, vivia numa cama, e ela passava o dia fazendo sexo pelo computador... Mas isso não resolve, Hermes... Não, a gente saía toda semana... Então, qual foi o problema?... Ela acabou viciada, Cuia. Perdeu a fibra... Como assim, não era a sua mulher?... Não!! Era mulher do computador!!... Ô Portuga, dá mais um aqui pro Hermes!

Cuia precisou pedir mais bebida para dissimular. Tinha muita gente em volta olhando, querendo saber quem era aquela tal mulher do computador. Sem se dar conta e parecendo soterrado de alguma culpa, Hermes foi se explicando: Mas a Laura, ô Cuia, ela não foi a única culpada, sabe? Porque quando comecei a desconfiar dei de ficar deprimido. Depois, sabe... Eu não dava mais cem por cento, depois nem oitenta, e foi diminuindo, diminuindo a transmissão dos dados... Entende?... Os dados? Ah, sim, acho que entendo. Mas e a outra?

Quem, Cuia? Já te falei, depois foi a Mariazinha... Me deixou numa miséria de dar gosto. Ô acesso caro aquele, sô... Aí eu não podia mais fazer outras coisas das quais gostava e sentia falta, não tinha grana pra nada. Estourei o cartão de crédito. Ninguém olhava mais pra minha cara, mermão... Tentando entender melhor, o Cuia perguntos pelos dados... Ah, a transmissão voltou a cair, né? Chegou a menos de um quilobite por segundo! Ô desespero o meu... Por que você não fez uns programas, pra variar?... Programa, não fiz nenhum, Cuia. Mas baixei tudo que pude baixar. Todo dia era dia de “down”... E nada de “up”... Nem um cachorrinho? – O Cuia perguntou brincando, para tentar levantar o astral do amigo... Nem um, era só cavalo-de-tróia!... Essa eu não conheço ainda, mermão... Nem queira, Cuia. Depois você tem que fazer uma faixina geral. É muito chato mesmo. E se perdesse o HD nunca mais vinha aqui beber com você. Em falar nisso, ô Portuga! Cadê o meu uisquinho?... Já vos dei, ó pá!... Tão dá outro!

Da posição em que estava, Cuia percebia o interesse crescente dos bebuns em volta na estória do Hermes, mas achou melhor não interromper. O amigo devia estar precisando desabafar. Depois, eles não poderiam mesmo entender aquele dialeto de informática. Também não entendia bem. E o Vela continuava falando: Agora a Teresinha, Cuia, nas primeiras vezes aquilo chegava sem jeito, olhando pro chão... Mas dali a pouco a santinha virava o demônio com rabo e tudo. Caraca, mermão! – O Cuia completou – Você só no piloto-automático... É isso, Cuia, o navegador era dela. Ela que escolhia a página... E num tinha anúncio não!...

Ao ouvir tais palavras, um dos bebuns já bastante calibrado, amigo dos tempos das pipas, chegou-se ao ouvido do Cuia e perguntou: Ele tava vendo televisão ou o que?... O Cuia dissimulou: Ainda não sei, mermãozinho. Fica na tua aí, na moral. Deixa o cara acabar de falar, valeu? O bebum voltou meio inconformado pro canto dele e o Hermes falando: Mas foi assim só nas primeiras vezes. Pôxa, Cuia, eu já tava apaixonado por ela quando, numa tarde, começou a balbuciar umas arrôbas diferentes... Que arrobas, Hermes?... Endereços, Cuia... Ah, dos outros amantes dela?... Que outros amantes? Amante era eu, o resto era virtual! - Hermes indignou-se, deu um murro na táboa do balcão e pediu mais uísque. Do seu canto, sentindo-se desprezado, o bebum disse com a voz lenta: Taí... Que machão que ele é... E recebeu um olhar enviezado do Cuia.

O Vela nem se dava conta do que acontecia à sua volta, ia desfiando o seu rosário enquanto a audiência dos bebuns aumentava: Eu não queria bloquear nem excluir a Teresinha, mas a cada nova tentativa ficava pior... Aí conheci a Socorrinho, que também era Maria, Maria do Socorro... E qual era o problema dela, mermão?... Não era ela não, Cuia. O problema era o marido dela... Ué, por que?... Porque o cara tinha mais de dois metros de altura, era muito forte e ruim que só o cão... E ele sabia que era chifrudo?... Sabia, mas era apaixonado pela Socorrinho e já tinha mandado dois pra lixeira, cara!... Ih, canoa furada, Hermes... Então uma tarde ela me chamou na casa dela... E você foi, maluco?!... Fui, ela me disse que estava precisando de um desencanador... Ocê é doido... É foi doidice mesmo. Quando eu pensei que ia carregar o arquivo, a trezentos kilobites por segundo... O cara te deu o flagrante... Não, tocaram a campanhinha... Ô mermão, ninguém toca a campaínha pra entrar na própria casa... Pois é, mas já derrubou a velocidade, né? Era o filho da vizinha. Ela despachou o moleque a agente voltou pro matadouro...

O bebum desprezado era um bebum respeitado. Toda hora fazia uma careta, ou um gesto, e os demais bebuns, formando já uma meia-lua às costas do Hermes, trocavam impressões. Percebendo tudo, o Cuia tentou levantar a moral do amigo: Aí você fez o couro comer... O bebum balançou o dedo indicador e fez beiço, querendo dizer que não acreditava. O Hermes respondeu: Mais ou menos, Cuia... Os bebuns metidos a jurados dissimularam uma estrondosa risada, quando o bebum desprezado saiu da birosca fazendo uma porção de gestos. Mas não demorou muito, alguns minutos depois lá estava ele novamente, pedindo licença para passar e voltar ao seu canto. Que mais ou menos é esse? – Perguntou o Cuia. Eu disse mais ou menos porque quando o programa estava quase carregado, ela me sussurrou que ouvira um barulho na cozinha. De repente o cara entrou no banheiro, já tirando a roupa, e quando me viu perguntou o que eu estava fazendo ali... E você, mermão, por que não pulou a janela?... Que janela, Cuia? Primeiro porque não tinha uma por onde eu pudesse passar. Segundo porque o banheiro era tão pequeno e o cara tão grande, que eu tinha a impressão de que éramos duas sardinhas numa lata. Ou melhor, uma sardinha e um tubarão! Que coisa, rapaz. Ele entrou tirando a roupa e eu tentando vestir a minha!... E aí?... Ai eu disse que já sabia qual era o problema... Como assim, Hermes?... É, mermão. Vou explicar: Quando corri pro banheiro, logo vesti a cueca. Aí ouvi o cara falando que havia chegado o caça-vírus. Então, em vez de por a roupa, eu desenrosquei o sifão da pia e abri a torneira. Só não deu tempo de abotoar as calças... E o cara caiu nessa? Mas que otário!... Bem isso eu não sei. Porque eu disse a ele que no dia seguinte voltava pra tirar o entupimento. Ele me pediu que saísse do banheiro porque queria olhar o serviço. Enquanto ele olhava eu fui saindo. Quando pus o pé na rua, mermão, desembestei que nem a mula-sem-cabeça! E ainda passei uma semana correndo. Vendo o cara atrás de tudo que era poste.

A turma de bebuns já não dissimulava mais as risadas e os julgamentos. E já não era composta apenas de bebuns, nem somente de homens. Haviam chegado mais torcedores e algumas prostitutas mas, devido a bebida já em conta alta e ao peso das lembranças, o Vela não se importava. Expunha-se ao ridículo, despertando a piedade de alguns. Cuia não sabia mais o que fazer. Pensava em como levar o amigo para casa, enquanto ele ainda pudesse andar com as próprias pernas. Mas de repente o Hermes se empolgava e recomeçava a falar, sem tramelas na lingua já melosa. Estava claro que ele não se submeteria a nenhum conselho: E tudo por causa daquela piranha, Cuia! A gente era feliz. Eu percebi muito antes e falei com ela. Disse que o Afrânio ia querer lotar o disco, secretária novinha, com tudo no lugar, se sentindo importante... É, o cara foi esperto... Ela é que foi uma vagabunda! Eu avisei antes, ela aceitou porque se entusiasmou com as gentilezas do Dr. Afrânio – disse o Hermes com desdém... Mas clama, mermão, isso agora já é passado. Esquece essa estória e vai em frente. Você não quer pegar agora a mentirinha? Então pega e esculacha, mermão. Vai te fazer esquecer as outras. Inclusive a Laurinha... Ah, a Laura não, Cuia. Eu não consigo esquecer o que ela me fez. Nunca, jamais vou perdoar aquela mulher. Se encontrar com ela na rua eu arrebento a piranha de porrada.

Sem sair do seu canto, o bebum desprezado balançava o dedo e fazia beiço. Os demais, já em franco debate, se dividiam. As prostitutas, em grupo, se defendiam. Alguns torcedores defendiam as prostitutas, para que tivessem o que fazer depois do jogo, afundar a mágoa em caso de derrota. O Portuga não tomava partido, bastava-lhe vender bebidas para todos. No fundo todos se divertiam, aproveitavam o fim-de-semana. Até o dragão se divertia com aquele São Jorge sem lança! Menos o Vela. Estava realmente consternado, não parava de imaginar formas alternativas de trucidar a Laura. E usava as opiniões dos bebuns para reorientar as suas tramas, curtindo a dramatização da sua desgraça, como se lhe causasse prazer. Numa dessas, ao dirigir-se ao grupo de prostitutas para ver sua reação, percebeu que uma delas saia de trás do grupo e atravessava em sua direção. Ele não queria falar com ela, era apenas uma puta, como dizia ser também a Laura. Tudo farinha do mesmo saco! – Disse em definitivo.

Quando o Hermes escutou aquela voz de mulher lhe dizendo um curtíssimo “Oi” pelas costas, imaginou que o mundo havia parado de repente. Um silêncio palpável preencheu o ambiente. O Vela tentava decidir o que fazer, sob o peso de muitos olhares. Quando se voltou para trás, viu que havia uma mulher muito bonita no centro de um pequeno espaço, obviamente aberto para ela. Apesar do congelamento generalizado, apenas o bebum desprezado balançava a cabeça, mas agora positivamente. O Hermes não conseguia articular uma só palavra. Dentro do seu íntimo encharcado de uísque “qualquer um”, tudo era escuridão, uma multidão de vultos ia e vinha, sem que ele pudesse organizar o pensamento. Não teve coragem de dizê-lo, mas não restava nenhuma dúvida: só podia ser a Laura. Queria olhar dentro dos seus olhos, pois conhecia-lhe o olhar, mas a bebida já não o permitia. E quando a mulher lhe estendeu docemente a mão, com um sorriso calmo e soberano no rosto, o Vela não conseguiu fazer resistência. E deixou-se levar lentamente para fora, pela mão, como uma criança ingênua. Atravessando o silêncio estupefato e o julgamento sem veredicto de cada um dos presentes, sumiram os dois entre os torcedores que, na rua, preparavam-se empolgados para tomar o caminho do estádio. Como se houvessem ali dois mundos paralelos, o casal e os torcedores não se confundiam, mal se notavam. Era de se pensar que não estivessem no mesmo tempo e no mesmo lugar. Uma mão imensa e irresistível parecia abrir aquele mar de gente, enquanto o casal sereno e mudo escapava dos julgamentos, sem que se molhassem sequer no suor dos torcedores.

Na birosca, foi o bebum desprezado que quebrou a perplexidade. Deu um tapa na lateral do balcão, fazendo um estrondo que deixou o Portuga furioso. Ô Portuga! Dá outro marimbondo aqui pro meu amigo Cuia, que ele está pagando o meu também – e virando-se para o mulato, que se mantinha pensativo, sussurrou - como nos bons tempos, hem Cuia? Uma a uma as pessoas foram se reacomodando pela birosca. O bebum sentou-se no banco, que o Hermes deixara morninho, disse com ar sábio: Ah, o amor. Coisa mais linda é o amor... Encafifado, o Cuia não respondeu mas quis saber: Sabe, você até pode me achar com cara de panaca, mas eu não tenho certeza de que aquela mulher era a Laurinha. Se bem que era muito parecida, não vejo há anos, mas acho que não era não... O bebum virou a sua cachaça toda de uma vez e depois ficou olhando para o chão, reflexivo, com um sorriso torpe nos lábios. Depois de um tempo, finalmente falou claramente: Não era ela mesmo, Cuia... Mas então, quem era ela?... Depois de fazer uma careta, como se rebuscasse o passado, explicou: Você não se lembra da Fátima? Não, né. A menina que vendia bala na estação do trem... Não, não me lembro mesmo... Eu conheci as duas desde pequenas, desde quando eu era um homem respeitado. A Fátima é mais nova, mas sempre foi parecida com a Laura. Depois meteu-se com aquele bandido, famoso por cortar as orelhas dos seus desafetos... O Pinga-Fogo... Isso, ele mesmo. Ele sustentava a ela e a outras molecas. A Fátima engravidou para se sentir mais segura, mas o cara apareceu cheio de buracos pouco antes do bebê nascer. Ela então andou na mão de um e outro bandido, pra manter o pirralho. Depois desapareceu de repente. Passou uns anos fazendo programas com gente endinheirada, gerentes de banco, diretores de empresa. Tem três meses que ela reapareceu, está morando no bairro aí de trás... Mas por que ela tomou aquela iniciativa?... Porque, como lhe disse, coisa mais linda é o amor...

O Cuia estava inconformado, não conseguia entender direito. Não vai me dizer que ela está apaixonada pelo Hermes?... Que apaixonada, Cuia. Ela nem conhecia ele direito... E como ela veio parar aqui na birosca?... Eu chamei, ora. Ela é puta, não é adivinha. Mas eu conheço ela muito bem. Você sabe que conheço as putas daqui. Não posso mais pagar pelos serviços delas, mas conheço bem várias delas e sou amigo delas... Que coisa de doido, quem vai pagar? Quando o Vela entender tudo não vai tirar um tostão do bolso... Nada de doido não, Cuia. Ela não veio receber dinheiro não... Como não?... O bebum parou, se ajeitou no banco e continuou: Cuia, meu velho Cuia... Eu já vivi um pouco mais que você. E lhe digo com toda a convicção: As mulheres que vivem de programa não são todas iguais. Mas são seres humanos todas elas, têm sentimento. Eu não pedi, apenas perguntei se ela queria fazer isso. Ela confiou em mim e topou fazer... Mas o Hermes não ama essa mulher... Já deve estar amando, Cuia... Não é a Laurinha... Que diferença faz, Cuia? Ele precisava amar, se regenerar, tirar o paredão de dentro dele. Você acha que o amor dele, que ele não pode exercer e não serve pra nada, é mais amor que o da Fátima, dado de graça, pela necessidade dele e por amizade a mim? E ademais ela não tem nada a perder, tem a dar. Qual o pecado nesse caso? Mas o Vela podia ter perdido a vida, lá no banheiro do caça-vírus. E noutras vezes, porque ficar pegando as mulheres dos outros...

O Cuia ainda não aceitava plenamente a conversa do amigo, porém reconhecia certa razão. E será que o Vela vai segurar a peteca? Do jeito que saiu daqui, não sei não... Ora, Cuia, ela é uma mulher sofrida, experiente, com certeza vai dar o jeito dela... Mas ele não vai se casar com ela, né?... Casar? Acho que ela não ta pensando nisso, não. Prostitutas nunca pensam em casamento numa primeira ocasião. Não é esse o trato. Se você sair com uma delas e falar em casamento, nunca mais ela sai contigo, pra não apanhar do cafetão... Mas vai que a Fátima pensa... E daí? Eu não sou cafetão, não ganho dinheiro com ela... O Cuia pediu a conta ao Portuga, pagou a cachaça e pendurou o uísque, reclamando do preço. Depois, com ar de satisfeito, disse ao amigo: bom, tomara que pelo menos você esteja certo e ela saiba acender velas. Senão, quando ele voltar aqui, vai dizer que de repente bateu um vento... Que nada, Cuia, você num entende nada de velas. Ele vai dizer que quando o programa estava carregado, caiu a conexão!

Foto de Karine K.

Indolência

Eu morro assim, lenta
o trágico choro não me derrete prontamente
é uma despaixão insípida de águas rasas
e os tremidos soluços não lhe prendem
você passa imune

O horizonte lá no céu vermelho, foge
a libertinagem clama aos meus deuses
irresolutos pesares dos anjos que se foram
...são tristes as partidas....
quase pedaços

raiva, ódio, desejos, corpo, sangue
sono e ânsia
é o que restou dos dias inquietos

Naquele trem embarquei minha alma
deixando meu corpo pesado pra você cuidar
....seu tapete vermelho de desfilar....

ardida, vermelha, ácida
como cobra que rasteja, morde, envenena
eu assim, agora, vou corroendo
e gastando as matérias.

Foto de InSaNnA

Trivial

Gosto de coisas simples,
ovo frito,carne moída,café com pão,
e sem saber muito da vida,
vou juntando os meus cacarecos
Vou somando as emoções,
evitando uma ferida alí..
limpando outra ferida aqui..
secando as lágrimas,
Lá vou eu !!!
Mas,o danado do destino,
vive aprontando
com as nossas vidas..
Encontrei pelo caminho,
um coração perdido..
um coração menino,
material bom,de primeira !
um mimo !!!
Eu acho que não me arrisco !!
Eu não sei lidar com isso !!
Preciso tirar férias !!
partir em viagem no trem de ferro,
do mestre,Manuel Bandeira,
tentando esquecer o tal coração,
contarei nos dedos a saudade,
cantando o melhor do trivial...
café com pão,
café com pão,
café com pão...

************************************************
Uma humilde brincadeira com o Mestre Manuel Bandeira e o seu Trem de ferro.

Obrigada por vir até aqui !
Hoje fizeste mais uma insana feliz..rs

Foto de Jamaveira

Rota morta

Rota morta

No martírio das lembranças
O pipocar das andanças
Que importa se houve glória
Se outro rumo tomou a história...
Abraçado ao desespero do agora
Amordaçado sem fala
Assisto debruçado no tempo
O sopro frio do tormento
Embarquei no trem errado
O bilhete trocado
A estação de desembarque
Hoje vazia não tem mais embarque
O banco de pedra solitário
Jaz ali petrificado no itinerário
Caminhos que levam ao nada
De cabeça baixa sou fumaça...

Jamaveira

Foto de Karine K.

FIM PARA O COMEÇO

O trem mais assassino de traumas passados
trará visões de além mundos,
escondidos e encobertos pela massa cinza do cérebro
Corte-se ao ver sangue,
grite ao cair
escorregue e sinta.
A mão que puxa seus pés dormentes
também guarda em suas veias
menções ao pequeno medo passado.
Então sonhe
e percorra o sombrio desprezo da floresta,
porque esta, não te acolherás ao gritar.
Sonhe!
Quando acordar,
continuará a correr,
só que agora o sol cegará seus passos.

Foto de Paulo Gondim

O trem errante

O trem errante
Paulo Gondim
10.06.2006

Para onde corre esse trem?
Como expresso do fim do mundo
Empoeirado, sujo, desbotado
Cheio de graxa, de carvão, imundo
Com apito rouco, mórbido
Sobre trilhos tortos
Numa viagem sem volta
Que se faz fora da rota

E me vejo entre os viajantes
Como mero retirante
Fugindo de mim,
Sempre errante

E não sei porque nele embarco
Mesmo sem saber se quero ir
Algo me arrasta e com ele vou
E me apressa com ele a partir
Como mais um passageiro do além
Em qualquer classe, seja como for
Lá vou eu a reboque desse trem

E o trem corre e percorre
Caminhos tão incertos
Em horizontes desertos
Levando tanta gente, tanto sonho
No burburinho da segunda classe
Estonteando quem por ele passe
É o expresso do fim, do abandono
Que não tem destino, nem dono
Apenas corre, sem saber pra onde

Foto de jgdearaujo

Anjos decaídos

De deus, sobre homens... a título de explicação e justificativa infundada...

O resumo da ópera é que você perdeu
O trem da história
Tua memória
Inglória...

O segredo do tempo é que ele passa
... e passa... e passa!
... e passa.
E você passa... e passa...
Pelo tempo... passa.
Estava escrito e você não leu

O segredo da esfinge estava lá.
Estava escrito e você não leu.

E a esfinge-tempo te devorou
Se engasgou, te vomitou.
Te devorou, se engasgou,
Te vomitou... te devorou...

Foto de Zedio Alvarez

Viva! a Literatura de Cordel

Faço história no Cordel
O qual muito me encanta
Meus poemas não são tão belos
Mas são muito singelos

Sofro a influência Nordestina
Estou cumprindo a minha sina
De uma literatura cordelizada
Meio esteriotipada

Os versos não são fenomenais
São até meios bestiais
Mas acho muitos normais
Por isso são especiais

Não vamos banalizar
E dizer que cordel é brega
Pois acontece muito entrega
Qual a diferença de: Pro mode de quê? Ou Para quê?

Temos a coragem de alçar vôos rasteiros,
Sempre a procura de versos
Para mim tanto faz
Temos que ser audaz

A Linguagem literal, é universal
Você pode escrever: Olá! Tchê
Ou ainda versar: Oh! Trem Bão
Ele vai pra estação do coração

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