Ridículo

Foto de Dennel

A escritora sem rosto

No silêncio de seu quarto, ela escrevia furiosamente. Era a única atividade que lhe dava prazer, uma vez que fora rejeitada pela sociedade que teimava em não reconhecer seu talento de escritora.

Amigos, não os tinha, e os que afirmavam sê-lo, o faziam por conveniência ou oportunismo; no entanto, ela não desistia de escrever, seus dedos calejados eram atraídos pela caneta que a seduzia, como um beija-flor é seduzido pelo néctar da formosa flor.

Sempre quisera ter filhos, mas a natureza lhe privara deste privilégio; em certos momentos de solidão, julgava que era melhor assim, pois acreditava que filhos traziam aborrecimentos e dissabores.

Sonhava ser uma grande escritora, admirada e reconhecida nos círculos literários. Escrever lhe fazia relembrar da imigração da sua família para o Brasil. Tempos difíceis aqueles, tempos turbulentos. Hoje, nada mais possuía, além da tradição do nome da família; tradição que não lhe trazia o reconhecimento esperado junto à sociedade.

Viu surgir sua grande oportunidade quando foi convidada, pelo diretor da revista Entricas & Futricas, a escrever uma coluna sobre personalidades famosas. Seu entusiasmo era visível com sua nova função; imaginava-se sendo laureada na academia de letras, ouvindo o burburinho de repórteres, implorando por uma entrevista.

Mas as coisas não saíram como era esperado, o número de leitores e comentários da sua coluna caía vertiginosamente. A direção da revista não teve alternativa, senão rescindir o contrato, pois apesar do talento para as investigações jornalísticas, ela fazia a cobertura do cotidiano de pessoas tão ou mais desconhecidas do que ela; evidentemente para a revista não interessava a vida de desconhecidos.

Tentou sem sucesso todos os argumentos que julgavam válidos, porém, o diretor fora inflexível. Via desabar diante de seus olhos o castelo de sonhos que erguera para si; sentiu um nó na garganta ao receber o veredicto fatal, a única ocasião em que sentira tamanha angústia fora numa solenidade literária, ao engasgar com um gole de água que bebera às pressas.

Passou dias desolada, lamentava a injustiça que sofria; a única que parecia compreendê-la era sua inseparável caneta. Agora escrevia como um autômato, descarregava toda a sua frustração nos escritos. Seus pensamentos não tinham unidade ou valor que levassem as pessoas a refletir sobre um modo de vida salutar, mas o que importava é que, escrevendo, sentia-se melhor.

Tomou uma decisão que avaliou lhe traria o reconhecimento que tanto buscava. Sabia que no mundo das letras havia o plágio; soubera inclusive do autor americano que fora laureado com o Nobel de literatura plagiando um escritor de outro país. Ela faria o mesmo, arrazoava consigo mesma que os fins justificam os meios. Quando se deparava com um texto que lhe agradava, ela o modificava ligeiramente, afirmando depois ser o mesmo de sua autoria. Para maior credibilidade, lançou uma campanha contra o plágio, defendendo os direitos autorais.

Sua obstinação de ser reconhecida levava-a ao ridículo, pois abordava pessoas desconhecidas na rua, propondo amizade, o que não raro produzia uma frase indignada do abordado: “Vem cá, eu te conheço?”.

Ela não se importava com estas situações vexatórias, lembrava-se de seus únicos ídolos, Hitler, Mussolini, Lampião e Idi-Amin Dada, que sempre souberam vencer preconceitos e dificuldades, tornando-se heróis para alguns e vilões para muitos.

Olhando-se no espelho, via as rugas a sulcar-lhe o rosto, o tempo fora implacável com ela. Lançando um olhar para a penteadeira, via as poucas fotos que retratavam sua vida; não havia semelhanças entre elas, de forma que se outra pessoa as visse, juraria que estava diante de um camaleão.

Sua atenção volta-se novamente para o espelho, cuja imagem parece lhe transmitir terrível acusação: “Você é uma fracassada”. Ela sente uma vertigem, apóia-se ligeiramente na penteadeira; ao lado, sua velha e fiel companheira parece convidá-la para escrever o último ato de sua existência.

Trêmulos, seus dedos agarram fortemente a caneta, que com a força empregada, se rompe, deixando um borrão de tinta na folha que um dia fora branca.

Juraci Rocha Da Silva - Copyright (c) 2005 All Rights Reserved

Foto de syssy

AMOR COVARDE

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Dizem que sou covarde por não lutar pelo amo amado,

Sou das inquietudes, o fracasso de um tolo apaixonado,

Sou dos amantes, as flores murchas da varanda.

Mais amar não teria valor, se não sofresse de todo

Tolo amor, que o ridículo seria não ser tolo.

Foto de Gideon

Chico Buarque e o "sempre"

Sempre! – As vezes esta palavra soa irônica. Eu a uso sempre (viu só?), e muitas vezes, sempre (de novo)! Certa vez achei que estava sendo pouco criativo quando terminava um verso com o sempre.

Sábado, cinco da tarde, entre um afazer e outro, puxei o Segundo Caderno do jornal O Globo, de 19 de março de 2006, que guardara para ler no futuro. Observando a matéria sobre o lançamento do filme de Cacá Dieguez “O maior amor do mundo”, chamou-me a atenção a letra da trilha sonora escrita por Chico Buarque para esse filme. Letra inédita que passo a transcrever aqui:

Sempre

Eu te contemplava sempre.
Te mirei de mil mirantes,
Mesmo em sonho estive atento
Pra poder lembrar-te sempre,
Como olhando o firmamento
Vejo estrelas cintilantes
Que se forma para sempre.

O teu corpo em movimento,
Os teus lábios em flagrante,
O teu riso, teu silêncio,
Serão meus, ainda e sempre.
Dura a vida alguns instantes,
Porém mais do que o bastante
Quando cada instante
É sempre.

Letra inédita de Chico Buarque para a canção-tema de “O maior amor do mundo” – Jornal O Globo – Segundo Caderno de 19/03/2006

Pois é, cá está o grande Chico se safando no apelo do sempre. Engraçado, percebi já há algum tempo, que quando estamos em estado do que chamo transe poética, a eternidade parece se lançar à nossa mente como a realidade preponderante e que norteia toda a nossa poesia. Mais ainda quando o sentimento em questão é o amor. Nesse caso a eternidade parece construir em nossa mente uma estrada para o amor caminhar (que poético, não acham?).

O destino dessa estrada seria o sempre. Talvez isto fosse um desejo subconsciente de que aquilo que é tão bom e tão almejado, como é o amor, nunca se acabe. O sempre surge, então, como aquela palavra que representa muito bem e completamente a idéia deste estado de transe poético que me referi anteriormente.

Bem, depois de ler esta poesia, do Chico Buarque, senti-me mais aliviado, e já não vou mais rejeitar de pronto o sempre, que, aliás, fica tão bem quando acompanhado com umas reticências em forma de pontinhos: sempre...

Claro que não ouso me comparar ao Chico, mas confesso que me senti meio vingado com o meu lado chato e questionador, aquela personalidade, dentre tantas outras que os psicólogos dizem termos, e que vez outra me aborda acusando-me de ousado, metido e sem senso do ridículo, quando escrevo as minhas poesias, ensaios, etc...

Imagino o que não passava na cabeça do Chico Buarque, que de tão treinado em poetizar, deve, ao conversar, espontaneamente falar todas as palavras em metáforas. Agora, no entanto, quando escreveu esta poesia, parece tão simples e ingênuo ao ponto de aparentemente não ter incomodado-se em recorrer aos antigos clichês poéticos, contudo válidos ainda, que a natureza nos empresta: “sonho”, “firmamento”, “estrelas cintilantes”, “corpo”, “lábios”, “riso”, “silêncio”, “instantes”, e o, claro, “sempre”, que, aliás, termina a sua poesia como que caminhando pela tal estrada que me referi poeticamente.
Só faltaram as reticências...

As poesias do Chico, claro, são para sempre...

Foto de Lou Poulit

SÃO JORGE E O DRAGÃO

CONTO: SÃO JORGE E O DRAGÃO
AUTOR: LOU POULIT

Sentados em bancos tipo meia-bunda, Hermes e Cuia haviam acabado de chegar ao balcão da birosca. Cuia era bebedor dos bons. Mulato quase negro, de fala mansa e bigodinho de chinês. Bom malandro, natural da favela, sobrevivente a tudo. Em vez do calção e dos chinelos-de-dedo, de terno e gravata daria um excelente relações públicas. Só bebia cachaça e tinha preferência: “Ô Portuga, dá meu marimbondo aí!” Já seu amigo Hermes era letrado. O Vela, como era chamado desde a adolescência, era megérrimo, branco como um defundo, e parecia meio lento em tudo. Havia se afastado dali por alguns anos e nesse tempo fez faculdade, arrumou emprego, casou, separou, casou de novo, separou de novo, casou mais uma vez... Continuava mal bebedor, pedindo a mesma marca de uísque: “Ah... Bota qualquer um aí, Portuga”.

O Cuia só observando. Em sua cabeça um silêncio era bom conselheiro: gozado, o tempo passa e as pessoas vão se modificando. Aquela que conhecemos desde dos tempos das pipas e peladas, agregam-se com outras que não conhecemos ainda, mas parecem tão importantes quanto as antigas, senão mais. E todas se dão muito bem umas com as outras, dentro do mesmo corpo. Era manhã de domingo, dia de decisão no campeonato local de futebol. A birosca na encosta da favela já estava quase lotada. Se a polícia chegasse de repente, com certeza ganharia o dia, porque já era quase impossível aos de dentro vigiar os que viessem de fora, e alguns ali eram desejados pelos homens da lei. O tumulto pacífico da birosca era como o Hermes. Com o passar dos anos alguns não arredam pé. Outros, desconhecidos, chegam, depois voltam e vão ficando. E outros tantos somem, por algum tempo ou definitivamente. Mas a birosca ainda era a birosca do Portuga e as alterações individuais não modificavam muito a mistura. Fora a fauna birosqueira, tudo mais parecia continuar nos mesmos lugares: as garrafas de bebidas mais caras, os salames e enlatados cobertos de poeira. No nicho de táboa a lâmpada devia estar iluminando o São Jorge que, a despeito da ausência da sua lança, não fora ainda comido pelo dragão, apesar de tantos anos de luta. O próprio Portuga sempre se dizia desconfiado de que aquele dragão enchia a cara durante a madrugada, depois que fechava as portas, e que só por isso não conseguira ainda comer o santinho.
 
O Hermes agora tinha uma identidade virtual, a julgar pelo palavreado que estava usando e que provocava a indignação dissimulada dos bebuns mais próximos: Sabe, Cuia, o Portuga devia deletar aquele mictório compactado... Como é que é? — Espantou-se o amigo. É verdade, mermão... Aquilo é um banco de vírus! O Portuga é meio lento mesmo. Ele quer que esses caras acertem uma latinha daquelas. Já viu bêbado bom de mira?... Não. Nunca vi não... Então, Cuia, pra começar você tem que se espremer pra passar na portinhola. Só nisso já vai um risco. Depois tem que segurar a bebida, o cigarro, a portinhola... A portinhola?... Claro, mermão, vai que alguém deixa pra última hora e entra lotado. É uma senhora portada!... Riram-se os dois e o Cuia completou: É o que chamo de um arranca-rabo! E o cara que não queria encostar em nada... Vai chegar em casa todo molhado – Hermes interrompeu - E a dona encrenca vai inserir o cara na casinha do quintal, vai passar a noite junto com o Totó!... Ô Hermes, por falar nisso, cadê a Laurinha?... Laurinha? Ô Cuia, que estória é essa de “por falar nisso”? Eu nunca dormi com o Totó não. Você precisa ler as atualizações do meu perfil... Ler as atualizações... – Repetiu o outro perplexo. E faz isso rapidinho, porque eu to saindo, Cuia... Você ta saindo. Já vai embora?... Que vou embora, cara? Quis dizer que to desistindo das mulheres dos outros... — E aproximou-se do ouvido do amigo — Estou apostando todas as fichas na Mentirinha... Que Mentirinha, Hermes?... Ô rapaz, aquela gata gorducha, que trabalha na “lan house”, vai dizer que nunca viu?... Sei, da loja de internet ali no fim da ladeira. Mas não era a Laurinha a razão da sua vida?... Laurinha nada. Se arrumou com o dono da firma, agora desfila de gerente... Ô meu irmão... — O Cuia mostrou-se penalizado — Que azar... Azar? Você não sabe da missa a metade. Depois dela já tive a Mariazinha, a Teresinha e a Socorrinho... É mesmo Hermes?... Tô te falando, Cuia, mulher dos outros agora pra mim é homem!... Nenhuma delas deu certo, né?... Não podia dar: A Mariazinha só queria saber de ganhar coisas caras... Ih, mermão, isso ia te deixar na miséria... Deixou mesmo. A Teresinha no início era uma santinha, o marido tinha sido atropelado, vivia numa cama, e ela passava o dia fazendo sexo pelo computador... Mas isso não resolve, Hermes... Não, a gente saía toda semana... Então, qual foi o problema?... Ela acabou viciada, Cuia. Perdeu a fibra... Como assim, não era a sua mulher?... Não!! Era mulher do computador!!... Ô Portuga, dá mais um aqui pro Hermes!

Cuia precisou pedir mais bebida para dissimular. Tinha muita gente em volta olhando, curiosa por saber quem era aquela tal mulher do computador. Sem se dar conta e parecendo soterrado de tanta culpa, Hermes foi se explicando: Mas a Laura, ô Cuia, ela não foi a única culpada, sabe? Porque quando comecei a desconfiar dei de ficar deprimido. Depois, você sabe. Eu já não dava mais cem por cento, depois nem oitenta, e foi diminuindo, diminuindo a transmissão dos dados. Entende?... Dos dados? Ah, sim, acho que entendo. Mas e a outra?... Quem, Cuia? Já te falei, depois foi a Mariazinha. Me deixou numa miséria de dar gosto. Ô acesso caro aquele, sô... Aí eu não podia mais fazer outras coisas das quais gostava e sentia falta, não tinha grana pra nada. Estourei o cartão de crédito. Ninguém olhava mais pra minha cara, mermão... Tentando entender melhor, o Cuia arriscou meio sem jeito: Ah, a transmissão voltou a cair, né?... Chegou a menos de um quilobite por segundo! Ô desespero o meu... Por que você não fez uns programas, pra variar?... Programa, não fiz nenhum, Cuia. Mas baixei tudo que pude baixar. Todo dia era dia de “down”. E nada de “up”... Nem um cachorrinho? — O Cuia perguntou brincando, para tentar levantar o astral do amigo... Nem um, era só cavalo-de-tróia!... Essa eu não conheço ainda, mermão... Nem queira, Cuia. Depois você tem que fazer uma faixina geral. É muito chato mesmo. E se perdesse o HD nunca mais vinha aqui beber com você. Em falar nisso, ô Portuga! Cadê o meu uisquinho?... Já vos dei, ó pá!... Tão dá outro!
Da posição em que estava, Cuia percebia o interesse crescente dos bebuns em volta na estória do Hermes, mas achou melhor não interromper. O amigo devia estar precisando desabafar. Depois, eles não poderiam mesmo entender aquele dialeto de informática. E o Vela continuava falando: Agora a Teresinha, Cuia, nas primeiras vezes aquilo chegava sem jeito, olhando pro chão... Mas dali a pouco a santinha virava o demônio com rabo e tudo. Caraca, mermão! – O Cuia completou – Você só no piloto-automático... É isso, Cuia, o navegador era dela. Ela que escolhia a página. E num tinha anúncio não!...
 
Ao ouvir tais palavras, um dos bebuns já bastante calibrado, amigo dos tempos das pipas, chegou-se ao ouvido do Cuia e perguntou: Ele tava vendo televisão?... O Cuia dissimulou: Ainda não sei, mermãozinho. Fica na tua aí, na moral. Deixa o cara acabar de falar, valeu?... O bebum voltou meio inconformado pro canto dele e o Hermes falando: Mas foi assim só nas primeiras vezes. Pôxa, Cuia, eu já tava apaixonado por ela quando, numa tarde, começou a balbuciar umas arrôbas diferentes... Que arrobas, Hermes?... Endereços, Cuia... Ah, dos outros amantes dela?... Que outros amantes? Amante era eu, o resto era virtual! — Hermes indignou-se, deu um murro na táboa do balcão e pediu mais uísque. Do seu canto, sentindo-se desprezado pelo Vela, o bebum disse com a voz lenta: Taí, que machão que ele é... E recebeu um olhar enviezado do Cuia.
 
O Vela nem se dava conta do que acontecia à sua volta, ia desfiando o seu rosário enquanto a audiência dos bebuns aumentava: Eu não queria bloquear nem excluir a Teresinha, mas a cada nova tentativa ficava pior. Aí conheci a Socorrinho, que também era Maria, Maria do Socorro... E qual era o problema dela, mermão?... Não era ela não, Cuia. O problema era o marido dela... Ué, por que?... Porque o cara tinha mais de dois metros de altura, era muito forte e ruim que só o cão... E ele sabia que era chifrudo?... Sabia, mas era apaixonado pela Socorrinho e já tinha mandado dois pra lixeira, cara!... Ih, canoa furada, Hermes... Então uma tarde ela me chamou na casa dela... E você foi, maluco?!... Fui, ela me disse que estava precisando de um desencanador... Ocê é doido... É foi doidice mesmo. Quando eu pensei que ia carregar o arquivo, a um megabyte por segundo... O cara te deu o flagrante... Não, tocaram a campanhinha... Ô mermão, ninguém toca a campanhia pra entrar na própria casa... Pois é, mas já derrubou a velocidade, né? Era o filho da vizinha. Ela despachou o moleque e a gente voltou pro matadouro...

O bebum desprezado era um bebum respeitado. Toda hora fazia uma careta, ou um gesto, e os demais bebuns, formando já uma meia-lua às costas do Hermes, trocavam impressões. Percebendo tudo, o Cuia tentou levantar a moral do amigo: Aí você fez o couro comer... O bebum balançou o dedo indicador e fez beiço, querendo dizer que não acreditava. O Hermes respondeu: Mais ou menos, Cuia... Os bebuns metidos a jurados dissimularam uma risada, quando o bebum desprezado saiu da birosca fazendo uma porção de gestos. Mas não demorou muito, alguns minutos depois lá estava ele novamente, pedindo licença para passar e voltar ao seu canto. Que mais ou menos é esse? – Perguntou o Cuia... Eu disse mais ou menos porque quando o programa estava quase carregado, ela me sussurrou que ouvira um barulho na cozinha. Quase que não deu tempo. De repente o cara entrou no banheiro, já tirando a roupa, e quando me viu perguntou o que eu estava fazendo ali... E você, mermão, por que não pulou a janela?... Que janela, Cuia? Primeiro porque não tinha uma por onde eu pudesse passar. Segundo porque o banheiro era tão pequeno e o cara tão grande, que eu tinha a impressão de que éramos duas sardinhas numa lata. Ou melhor, uma sardinha e um tubarão!... Que coisa, rapaz... Ele entrou tirando a roupa e eu tentando vestir a minha!... E aí?... Ai eu disse que já sabia qual era o problema... Como assim, Hermes?... É, mermão, foi o que ele também perguntou. Vou explicar: Quando corri pro banheiro, logo vesti a cueca. Aí ouvi o cara falando que havia chegado o caça-vírus. Então, em vez de por a roupa, eu desenrosquei o sifão da pia e abri a torneira. Só não deu tempo de abotoar as calças... E o cara caiu nessa? Mas que otário!... Bem isso eu não sei. Porque eu disse a ele que no dia seguinte voltava pra tirar o entupimento. Ele me pediu que saísse do banheiro porque queria olhar o serviço. Enquanto ele olhava eu fui saindo. Quando pus o pé na rua, mermão, desembestei que nem a mula-sem-cabeça! E ainda passei uma semana correndo. Vendo o cara atrás de tudo que era poste.
 
A turma de bebuns já não dissimulava mais as risadas e os julgamentos. E já não era composta apenas de bebuns, nem somente de homens. Haviam chegado mais torcedores e algumas prostitutas mas, devido a bebida já em conta alta e ao peso das lembranças, o Vela não se importava. Expunha-se ao ridículo, despertando a piedade de alguns. Cuia não sabia mais o que fazer. Pensava em como levar o amigo para casa, enquanto ele ainda pudesse andar com as próprias pernas. Mas de repente o Hermes se empolgava e recomeçava a falar, sem tramelas na lingua já melosa. Estava claro que ele não se submeteria a nenhum conselho: E tudo por causa daquela piranha, Cuia! A gente era feliz. Eu percebi muito antes e falei com ela. Disse que o Afrânio ia querer lotar o disco, secretária novinha, com tudo no lugar, se sentindo importante... É, o cara foi esperto... Ela é que foi uma vagabunda! Eu avisei antes, ela aceitou porque se entusiasmou com as gentilezas do Dr. Afrânio — Disse o Hermes com desdém... Mas calma, mermão, isso agora já é passado. Esquece essa estória e vai em frente. Você não quer pegar agora a Mentirinha? Então pega e esculacha, mermão. Vai te fazer esquecer as outras. Inclusive a Laurinha... Ah, a Laura não, Cuia. Eu não consigo esquecer o que ela me fez. Nunca, jamais vou perdoar aquela mulher. Se encontrar com ela na rua eu arrebento aquela piranha de porrada.
 
Sem sair do seu canto, o bebum desprezado balançava o dedo e fazia beiço. Os demais, já em franco debate, se dividiam. As prostitutas, em grupo, se defendiam. Alguns torcedores defendiam as prostitutas, para que tivessem o que fazer depois do jogo, afundar a mágoa em caso de derrota. O Portuga não tomava partido, bastava-lhe vender bebidas para todos. No fundo todos se divertiam, aproveitavam o fim-de-semana. Até o dragão se divertia com aquele São Jorge sem lança! Menos o Vela. Estava realmente consternado, não parava de imaginar formas alternativas de trucidar a Laura. E usava as opiniões dos bebuns para reorientar as suas tramas, curtindo a dramatização da sua desgraça, como se isso lhe causasse prazer. Numa dessas, ao dirigir-se ao grupo de prostitutas para ver sua reação, percebeu que uma delas saia de trás do grupo e atravessava em sua direção. Ele não queria falar com ela, era apenas uma puta, como dizia ser também a Laura. Tudo farinha do mesmo saco! Era assim que dizia a si mesmo. Quando o Hermes escutou aquela voz de mulher lhe dizendo um curtíssimo “Oi” pelas costas, imaginou que o mundo havia parado de repente. Um silêncio palpável preencheu o ambiente. O Vela tentava decidir o que fazer, sob o peso de muitos olhares. Quando se voltou para trás, viu que havia uma mulher muito bonita no centro de um pequeno espaço, obviamente aberto para ela. Apesar do congelamento generalizado, apenas o bebum desprezado balançava a cabeça, mas agora positivamente. O Hermes não conseguia articular uma só palavra. Dentro do seu íntimo encharcado de uísque da marca “qualquer um”, tudo era escuridão, uma multidão de vultos ia e vinha, sem que ele pudesse organizar o pensamento. Não teve coragem de dizê-lo, mas não podia pensar noutra, só podia ser a Laura. Queria olhar dentro dos seus olhos, pois conhecia-lhe o olhar, mas a bebida já não o permitia. E quando a mulher lhe estendeu docemente a mão, com um sorriso calmo e soberano no rosto, o Vela não conseguiu fazer resistência.. Atravessando um silêncio galhudo e o farfalhar dos julgamentos de cada um dos presentes, sumiram os dois entre os torcedores que, na rua, preparavam-se empolgados para tomar o caminho do estádio. Como se houvessem ali dois mundos paralelos, o casal e os torcedores não se confundiam, mal se notavam. Era de se pensar que não estivessem no mesmo tempo e no mesmo lugar. Uma mão imensa e irresistível parecia abrir aquele mar de gente, enquanto o Vela, como um bicho dócil levado pela coleira, sentia-se seguro a ponto de não se perguntar se ela viera a mando de São Jorge ou do Dragão.
 
Na birosca, foi o bebum desprezado que quebrou a perplexidade. Deu um tapa na lateral do balcão, fazendo um estrondo que deixou o Portuga furioso: Ô Portuga! Dá outro marimbondo aqui pro meu amigo Cuia, que ele está pagando o meu também... E virando-se para o mulato, que se mantinha pensativo, sussurrou: Como nos bons tempos, heim Cuia?.. Uma a uma as pessoas foram se reacomodando pela birosca. O bebum sentou-se no banco, que o Hermes deixara morninho, e filosofou com ar de sábio: Ah, o amor. Coisa mais linda é o amor... Encafifado, o Cuia não respondeu, mas quis saber: Olha, você até pode me achar com cara de panaca, mas eu não tenho idéia de quem era aquela mulher. Não a vejo há anos, mas acho que não era ela não... O bebum virou a sua cachaça toda de uma vez e depois ficou olhando para o chão, reflexivo, com um sorriso torpe nos lábios. Depois de um tempo, finalmente falou claramente: Não era ela mesmo, Cuia... Mas então, quem era ela?... Depois de fazer uma careta, como se rebuscasse o passado, explicou: Você não se lembra da Lalá, a menina que vendia bala na estação do trem... Não, não me lembro mesmo...

Eu ainda era um homem respeitado naquele tempo. Pois bem, eu sempre comprava umas balas pagando uns centavos a mais, mas a Lalá não pisou no meu laço. Anos depois meteu-se com aquele bandido, famoso por cortar as orelhas dos seus desafetos... O Pinga-Fogo... Isso, ele mesmo. Ele sustentava a ela e a outras molecas. A Lalá engravidou para se sentir mais segura, mas o cara apareceu cheio de buracos e pouco depois ela perdeu o bebê. Então andou na mão outros bandidos, vendida como mercadoria ou emprestada, para os mais valentes. E desapareceu de repente. Passou uns anos fazendo programas com gente endinheirada, gerentes de banco, diretores de empresa... Então, foi nesse tempo que ela conheceu o Vela... Não, Cuia. O tal do Afrânio começou a se sentir incomodado e, para mudar o cardápio, demitiu a Lalá. No desespero ela conheceu o Pinga-Fogo que, no início, deu guarita pra ela... Mas não deu pra reconhecer, mermão. Ta muito diferente... Por isso eu lhe disse que não era ela. Você acha que depois de passar por tudo o que ela passou, alguém pode continuar sendo a mesma pessoa de antes?... É, você tem razão... Tem três meses que ela reapareceu, ta morando num privé dividido com outra, no bairro aí de trás... Mas por que ela tomou aquela iniciativa? O Vela podia meter a mão na cara dela... Porque, como lhe disse amigo, coisa mais linda é o amor...
 
O Cuia custava a acreditar. Não vai me dizer que ela está apaixonada pelo Hermes?... Que apaixonada coisa nenhuma, Cuia... E como ela veio parar aqui na birosca?... Eu chamei, ora. Ela é puta, não é adivinha. Mas eu conheço ela muito bem. Você sabe que conheço as putas daqui. Não posso mais pagar pelos serviços delas, mas conheço bem várias delas e sou amigo delas... Que coisa de doido, quem vai pagar? Quando o Vela entender tudo não vai tirar um tostão do bolso... Nada de doido não, Cuia. Ela não veio receber dinheiro não... Como não?... O bebum parou, se ajeitou no banco e continuou: Cuia, meu velho Cuia, eu já vivi um pouco mais que você. E lhe digo com toda a convicção: As mulheres que vivem de programa não são todas iguais. Mas são seres humanos todas elas, têm sentimento. Eu não pedi, apenas perguntei se ela queria fazer isso. Ela confiou em mim e topou fazer... Mas o Hermes não ama essa mulher... Já deve estar amando, Cuia... Mas não é a Laurinha que ele ama... Que diferença faz, Cuia? Ele precisava amar, se regenerar, tirar o paredão de dentro dele. Você acha que o amor dele, que ele não podia exercer e não servia pra nada, é mais amor que o da Lalá, dado de graça, pela necessidade dele e por amizade a mim? E ademais ela não tem mais nada a perder, só tem a dar. Qual o pecado nesse caso?... Mas por causa dela o Vela podia ter perdido a vida, lá no banheiro do caça-vírus. E noutras vezes, porque ficar pegando as mulheres dos outros, se não for pecado com certeza é muito perigoso...
 
E será que o Vela vai segurar a peteca? Do jeito que saiu daqui, não sei não... Ora, Cuia, ela é uma mulher sofrida, experiente, com certeza vai dar o jeito dela... Mas ele não vai se casar com ela, né?... Casar? Acho que ela não ta pensando nisso, não. Não é esse o trato. Se você sair com uma puta e falar em casamento, nunca mais ela sai contigo, pra não apanhar do cafetão... Mas vai que a Laura pensa... Acho mais fácil que o doido do Vela queira isso... O Cuia pediu a conta ao Portuga, pagou a cachaça e pendurou a conta do uísque, reclamando do preço. Ó crioulo! Então meu estabelecimento virou agora a casa da sogra? Vais dependurar a conta do outro? — O Portuga fez-se de indignado... Ó Português, não virou agora não. E já saindo o mulato completou, para desespero do birosqueiro: Não virou porque sempre foi. Ou você pensa que eu esqueci de quando abriu aqui esse seu barraco? Eu fui dos primeiros a honrar sua birosca com a minha presença, seu ingrato. Nem água pra lavar os copos você ainda não tinha... Ora pois espere aí mesmo, que eu já mostro a sua honra... Para delírio da freguesia o Portuga sacudiu no ar uma garrafa vazia, porém o Cuia já se encontrava na calçada, a uma distância segura, fazendo gestos obcenos para irritar ainda mais o amigo birosqueiro. Vinde cá, ó crioulo! Vou mandar o meu São Jorge correr uma gira atrás de você!... Qual São Jorge? Esse aí cheio de poeira? Deixa de ser mão-de-porco, ó português, e dá uma lança nova pra ele. Ó que o dragão acaba comendo ele, heim...

Depois, já descendo a ladeira, com ar de satisfeito o Cuia disse ao seu amigo bebum: Bom, tomara que pelo menos você esteja certo e ela saiba acender velas. Senão, quando ele voltar aqui, vai dizer que de repente bateu um vento... Que nada, Cuia, você manja muito é de despacho, mas num entende nada de computadores. Ele vai dizer que justo quando o programa estava carregado, caiu a conexão!

Foto de Naja

ENVELHECER SEM MEDO

ENVELHECER SEM MEDO

O que é envelhecer sem medo? É não se estremecer ao perceber que os primeiros cabelos brancos despontam espaçados em seus então, belos cabelos que tinham uma só cor? É saber que com o tempo toda a cabeça será grisalha e em breve tornar-se-á totalmente branca?.
É ver surgir as primeiras ruguinhas em seu rosto e não se importar porque faz parte da vida...da natureza?
É achar o momento certo para evitar o sol, é a reposição de hormônios, ou não submeter-se a isso, é usar forte maquiagem para disfarçar e não se importar em recorrer a esses recursos, ou simplesmente recusar-se a fazê-lo?
É não temer ficar em grupos de jovens sabendo-se ser a mais velha de todos?
É simplesmente não se importar? Será isso envelhecer sem medo?
Será dizer, sentir-se por dentro do mesmo modo que se sentia ao ter seus trinta anos, com todos os sentimentos, sensações, alegrias e tristezas, amor, tudo enfim natural do ser humano independente de idade e sexo?
O que pode sentir uma mulher que nada tem a não ser a si mesma? Onde buscar alento para sentir alegria por estar viva e ainda ter anos para aproveitar, nessa vida de sinceridades e mágoas?
A aparência nesse mundo de consumo, onde a beleza e juventude são cultuadas
como princípio de felicidade, é preciso se estar muito bem preprados para enfrentar
esse início, pois a tendência é sempre piorar.
Na juventude perdemos muito tempo preparando um futuro, uma profissão, durante anos nos dedicamos a outras pessoas, ficando nós mesmos em segundo plano e quando abrimos os olhos, o tempo passou e já quase nada mais resta.
Como fazer para ser natural, se não quisermos mascarar a velhice que se aproxima, por até acharmos ridículo, pois nada há para disfarçar; pintura não resolve o problema do tempo. O tempo não perdoa, ele vem e não quer saber; fica claro e explícito, nada se poderá fazer.
naja
Publicado no Recanto das Letras em 17/11/2007
Código do texto: T740912

Foto de Flower Medeiros

Pra quê?

Pra quê? Viver numa ilusão,
Nesta fantasia,
Na qual tu apegaste.

Neste sonho tão ridículo, a ponto de virar teu mundo,
De cabeça para baixo,
E pra quê?
Se ele não te ama,
Se ele não te quer,
Se tudo que tu quiseste, foi apenas ama-lo.

Amou-o tanto que esqueceu de si mesma.
Esqueceu que tu és mulher,
Cheia de vida e que tem muito a oferecer.

Então, pra quê?

Aquele homem nunca merecerá uma lágrima tua,
Um sorriso enternecido,
Um aceno emocionado,
Um beijo apaixonado.
Nunca merecerá,
Tua pele, Tua boca,
Teus sonhos, Teus desejos.

E mesmo sabendo de tudo isso
Tu ainda o amas, ainda o quer,
Sempre!
Eis me aqui, tua consciência,
Mostrando-lhe a realidade, da qual não queres ver.

Autora: Flower Medeiros

Foto de Stacarca

Satã

Satã

Ei-lo, obumbra a sânie lisa,
Míngua de soluços dolorosos,
Corno dos exórdios chorosos
Soluços pitorescos que giza.

Contemplativas, ó sacrílego,
Formidolosas contemplativas,
Idéias, compêndios, inativas
Castas, extremoso coligo...

Conglobadas noções pitorescas,
Ah Funesto pancalismo imundo,
Débil, ó sentimento inundo
D'áurea elegíaca funambulesca.

Ó formas, figuradas felozes
Que fanam, fulgurando fiéis
Formas fúlgidas, felosas féis
Formas flamejantes, ferozes.

Indefiníveis flébeis de rasa,
Choro, lamúrias indefiníveis,
Augusto da insânia, eiveis
A'çucena ao mefítico que vaza.

Ah! Horrorosa, esquisita, feia,
Magnífica, avultada, linda,
Tantas formas, formas qu'inda
Pálpebras duvidam sobre teia¹.

Palavras que abismam medonho,
Fracas, fortes, sorumbáticas,
Teogonias imagináveis, áticas,
Escuros, leis, parvo tardonho.

Caveiras, defuntos, fantasmas,
Sarau imprescritível de beleza,
Lésbia lamentosa, delicadeza
De lamentos lesbianos, asnas.

Préstito solene d'um ressupino,
Defeitos, belos e feios defeitos
Criados, vis, molemente feitos
Da ingenuidade, cantos de hino.

Cantante da crença reclinada,
Ululadas por padres idiotas,
Professores da burrice, rota
Abismada e d'cadência assinalada.

Que céu, que inferno, que afã,
Pugilato da fé e pululante,
Que entoada, que desgastante
As limitadas litanias de satã.

Risos, gargalhadas réprobas
Da chafurdaria, gargalhadas,
Ó ridículas, ó exorbitadas
Cachinadas anátemas de probas.

Ó insânia, doudice da doudice,
Tomada p'la lúgubre orbe maldita,
Ó Sofreguidão bonita, bendita
Vida medonha, como a bela dixe².

Ah! Pungente vida fulgente
Purgada. Ah! Vida pungente!
Pungida. De figuradas entes.
Vida, vida punida fedente.

Clamores ridículos do futuro,
Futuro ridículo de clamores,
Ante a fé, de medonhos amores
Molestados do frágil aturo.

Ah finito, finito glorioso,
Eflúvio de essência infinita
Do que é zimbório, que incita
O ímpeto abstruso, lamentoso.

A calma, raiva, interrogações,
Quantidades acerbas, tratadas
De limitações treplicadas...
Languidez, ah! Lamentações

Lamentações lânguidas, funérea.
Sacrossantos versos belizes,
De rimas nevoentas, infelizes,
Pavorosos, de idéias férreas³.

Genuíno de métricas falazes,
Oh podridão falaz, cautelosas
Elocuções verrinas, chorosas
De sentimentos, audazes.

Que nesse entendimento, vã.
Onde tudo vai, onde passa
A esboroada forma da graça
Empunha. Ah! Que seja sã.

Ah! Nas Noutes, nos luares,
Nas formas, na calmaria,
Na felicidade, na melancolia,
No medonho, no degredo de ares.

Na reza embutida de quimera,
Quiméricas palavras sofridas.
Sofrimento d'enganações lidas.
Ilusões bonitas, do que não era.

Evangélicas ubérrimas d'opaco,
Labutas da religião fedorenta,
Oh! Oh! Imaginação lazarenta
D'áurea combinação. Ataco!

Atacante da crença, o tuteles
Da negridão, de idéia suspirada
Por ditas idéias conspiradas.
Assim como eu, tu, Mefistófeles.

Abastados da burrice mórbida.
'Inda gerados da fatuidade;
Maldade, maldade, maldade.
Quanta desagregação, hórrida.

Quando no préstito andar torto,
Defuntos, fantasmas e caveiras
Nela terão fé, na traiçoeira
De tudo que está vivo, morto!

________________________
¹- s. f.
²- s. m.
³- fig.

Foto de Jorgejb

Crónicas de Monoamor.

Por uma última vez, não volto a perguntar se me queres. Ponto final e não ponto de interrogação.
Arre, que um homem tem uma dignidade, tem uma espinha. Parece que quando te sinto, é mais fácil mentir. É na solidão que me desatino, é na tua ausência que passo ao contra ataque a mim próprio. Porra, os sentimentos são tão parvos, tão ao contrário do que quero. Parece que há gente que nunca tem destes problemas. Afinal, quem vive melhor?
Sinto a forma como desvias o olhar, nem sei o que queres dizer. Pareces fugir, ao mesmo tempo como se te desgostasses de não quereres exactamente o querias querer.
Chatice das palavras. E se falássemos por telepatia? - e se nos entendêssemos sem ser preciso falar?
Que tal inventar uma comunicação mental. Bem, isso não era bom, não podia guardar segredos, seríamos nus a todo o instante.
É de tanto te querer que me calo, que emudeço e paro. Uma vez perguntaste se desisti. Nunca, porque não posso, não porque não queira. Que pode fazer alguém se ama? Não se inventou ainda um chá de desamor, que me tire deste todo, dum corpo pegado a um olhar, dum desejo sereno, às vezes louco. É como uma dor que não sai, mesmo que me queira distrair.
É de tanto querer que me dói o teu não? – Não, não é. É mais, de não encostar o teu não na beira da estrada e seguir. É de me embrulhar nesse teu corpo, lindo, desejado, desse teu rosto, desses teus olhos. Nem me lembro se é lindo, porque não existe onde me apoiar, onde comparar.
Sais de mim, com uma simples frase, o teu movimento é um não movimento, as tuas mãos fecham-se escondidas no meio dos teus braços, encostadas nesse teu peito que queria alcançar e sentir.
Tens as mãos nuas, envergonhadas – olho-me no vazio, na estranha sensação do ridículo, nessa tua expressão vazia de quem nada tem para me oferecer.
Olho o teu rosto – não quero o teu beijo prolongado, não quero estar aí, quando te despedires na lembrança de um adeus, cruel.
A minha esperança são os poemas, o acreditares que vou ter sempre essa pequena luz se quiseres regressar – ao menos terei sempre a esperança que voltes, e tu porque a luz brilhará, mesmo fosca, o convite para te deitares, cansada, gasta de procurar quem te ame mais, ao lado desta pobre paixão inacabada.
Há um ar fresco de fim de Verão que se recalca no final das tardes. O Sol esgueira-se, tu permaneces, cercada da soma dos olhares onde nunca mais dançarás a roda, eu por aqui fico falando ao destino destas histórias. O destino aborrecido, diz que sim, pois é, pois é, complacente, cheio – afinal não há nada de novo nesta história..

Foto de Hisalena

Cartas de Amor

Há uma música que diz que todas as cartas de amor são ridículas ou não seriam cartas de amor... talvez seja verdade, mas também é verdade que não me importava de Ter uma gaveta cheia delas.
Afinal o que há de ridículo nas cartas de amor? Se alguma vez tivesse recebido alguma talvez soubesse responder...mas assim...
O certo é que na era dos e-mails, dos sms e mms as cartas já são vistas como uma espécie de dinossauro da comunicação, será justo supor que desse ponto de vista as cartas de amor sejam realmente ridículas.
Mas bem vistas as coisas uma carta é uma carta...tem corpo, tem forma, tem alma, tem cheiro, tem força e tem uma magia muito especial... será deste ponto de vista justo deduzir que uma carta de amor é um tesouro... raro, afinal só quem teve um grande e verdadeiro amor deve Ter no seu baú de recordações um envelope amarelecido pelo tempo dentro do qual repousam eternamente as mais belas palavras que um coração apaixonado poderá Ter dito...
Ridículas? Talvez... mas que me importava a mim que me chamassem ridícula...se por um momento pudesse sentir essa catadupa de sensações que uma carta de amor provoca...suponho eu...
Afinal e a bem da verdade somos todos progressistas, pró-modernistas a favor do desenvolvimento e das novas formas de comunicação mas no fundo, no fundo quem não gostava de receber uma carta de amor? Mesmo dessas ridículas de que toda a gente fala...
Ah! Eu não me importava de ser uma romântica ridícula e receber cartas de amor ridículas...
E vocês... digam lá a verdade, não gostavam de receber uma carta de amor?

Foto de Flower Medeiros

Pra quê?

Pra quê? Viver numa ilusão,
Nesta fantasia,
Na qual tu apegaste.

Neste sonho tão ridículo, a ponto de virar teu mundo,
De cabeça para baixo,
E pra quê?
Se ele não te ama,
Se ele não te quer,
Se tudo que tu quiseste, foi apenas ama-lo.

Amou-o tanto que esqueceu de si mesma.
Esqueceu que tu és mulher,
Cheia de vida e que tem muito a oferecer.

Então, pra quê?

Aquele homem nunca merecerá uma lágrima tua,
Um sorriso enternecido,
Um aceno emocionado,
Um beijo apaixonado.
Nunca merecerá,
Tua pele, Tua boca,
Teus sonhos, Teus desejos.

E mesmo sabendo de tudo isso
Tu ainda o amas, ainda o quer,
Sempre!
Eis me aqui, tua consciência,
Mostrando-lhe a realidade, da qual não queres ver.

Autora: Flower Medeiros.

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