Nasci para fazer com que o meu irmao sobreviva.
Ele tem uma coisa má dentro dele que o vai matando todos os dias e os médicos dizem que so o meu sangue pode fazer com que a coisa má nao o destrua mais depressa.
Ninguem me explica nada, vivo trancada nas paredes da casa, do quarto.
Vivo com o olhar perdido a olhar atravéz da janela trancada do meu quarto, onde posso ver a chuva a cair, e o vento a passar nas arvores, mas nao os posso sentir. Vivo a imaginar o que será sentir o sol a abraçar-me com os seus raios.
As pessoas com quem falo sao todas grandes, e nunca me dao atenção.
Será que todas as crianças vivem assim?
Sei que nasci apenas para prelongar a vida do meu irmao, para lhe dar sempre mais esperança, e mais uns segundos, minutos, horas, anos de vida...
Mas começo a ficar cada vez mais cançada, cada vez mais fraca. Os ataques dele cada vez acontecem com mais frequência, e é retirado cada vez mais sangue de mim.
O sangue que lhe corre nas veias é o meu. A vida que ele tem é a vida que ele rouba de mim, aos poucos.
Os pais nao se importam.
A mae está sempre em viagem, fica apenas as horas suficientes para fazer um novo par de malas cheio de roupa para se voltar a ir embora.
O pai esté sempre em reuniões. Diz que nao pode falar porque tem trabalho, mas traz sempre gente ca para casa para trabalharem com ele, ou melhor, converçarem.
Quando se vai deitar já é tao cedo, que o despertador toca logo depois de enfiar os pés debaixo dos cobertores. Acho que é isso que o faz andar sempre tao mal disposto, porque a mim ele diz-me para eu dormir muito para acordar mais bem disposta e como ele nao dorme, acho que é isso que o deixa sempre mal disposto.
Ele tambem nunca me dirige mais de 5 palavras juntas. Nunca olha para mim, e nunca me deu um abraço como aqueles que o mano me dá depois de lhe salvar a vida.
Será que eu sou uma má menina?
Gostava de respirar um bocadinho que fosse o ar lá fora... mas o pai discute sempre comigo quando lhe pesso isso. Acho que é por isso que ele nao gosta de mim.
O mano pode sair sempre que quer, as horas que quer, e ele está doente, mas eu nao posso, porque o pai diz que os remédios nao podem andar a passear na rua, e eu sou o remédio do meu irmao, logo, nao posso andar a passear.
E se eu nao quiser ser um remédio?
O pai baixa a cabeça, levanta-me a mao, e lagrimas rolam pela face dele abaixo.
Depois ouço berros do pai a dizer que eu nao tenho escolha e que fui criada para salvar o filho dele.
Eu nao sou filha dele? Serei eu mesmo apenas um remédio? Criada para dar vida a quem a perdeu um dia, e agora anda a tentar recupera-la?
Tenho 8 anos, e o pai trata-me como se nao existisse, fala-me como se fosse uma das empregadas da casa, e passa por mim como se eu fosse um objecto.
Nao quero ver o meu irmao deitado numa cama, num quarto fechado, mas tambem nao quero que ele me roube toda a vida que tenho.
Nao podemos viver os dois? nao podemos partilhar os dois a vida que temos, e sermos como irmãos?
Irmaos como aqueles que sao retratados nas historias, que vivem juntos e unidos, que se ajudam mutuamente.
Vivo à 8 anos presa numa casa, num quarto cheio de nada. Repleto de coisas cáras que nao têm valor.
Será que dar a vida a alguem que desconheciamos quando nascemos tem valor?
Serei eu apenas um remédio que usam e deitam fora e que serve para chatiar as outras pessoas?
Gostava de ser alguem.
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( continua brevemente )