Um dia a perambular pelas ruas da cidade, resolvi ir até a praça, ao centro, onde havia muito tempo que já não ia; ao chegar avistei um menino tocando flauta, com certeza na esperança de ganhar uns trocados.
No momento em que me aproximei ele me olhou firmemente, num ato solene, então entendi que era gratidão pela minha atenção.
Sentei no banco da praça e continuei a perceber-lhe; o vento soprava fortemente no rosto, as árvores balançavam adornadas de flores, cheias de vaidades; até que num olhar o menino parecia questionar-me, continuava tocando, levantei-me, prossegui meus passos a seu encontro, ele tocava e me reparava; devia ter mais ou menos uns 14 anos. O povo a passar colocava trocados em seu chapéu, ele contente a se deliciar com sua flauta, dava pra ver a alegria brilhando em seus olhos, era a sua luta diária...
Aquilo tocou profundamente minha alma, via uma grande virtude naquele menino, tinha algo de especial, tocava com alma, fazia o instrumento chorar como dizem... até uma senhora que o escutava saiu emocionada, a chorar, as lágrimas eram como diamantes em seu rosto. O povo ali ia saindo aos poucos, devagar, quando me vi só com o menino, então aproveitei para conversar; ele inocente e meigo pediu-me educadamente um trocado e riu-se, eu meio desconcertado nem mesmo percebi que me havia esquecido de dar-lhe umas moedas, que coisa!
__ Por favor, Senhor que reparas tanto! Não o conheço nem tu me conheces, com meu sorriso no rosto que é minha dádiva, superando as dificuldades para não chorar, peço-lhe gentilmente um trocado se não for precisar.
Contive nas pálpebras gotas que não eram de orvalho, que naquele momento de emoção poderiam se derramar. Parado em frente sorri, estendi-lhe a mão, dei-lhe, realmente não iria precisar. E me perguntou.
__ Desde que chegaste me olhas tanto! Algum problema?
__ Não! Na verdade eu pensei lhe conhecer, mas acho que me enganei.
__ Achas que me conheces?
__ Tive um pressentimento, mas deixamos!
Há muito tempo algo aconteceu comigo, eu havia perdido um filho que me roubaram, e já sofria há tanto tempo com a morte de minha esposa, minha linda esposa a qual nunca consegui esquecer; como ela era linda! Tão humilde e realmente mulher!
Naquele momento tinha as mãos trêmulas, entrelaçavam-se, as palavras pareciam fugir dos meus lábios, quase não conseguia falar, eu senti algo naquele menino, um pressentimento estranho, parecia que já o conhecia, e por alguns instantes imaginei ser ele do meu sangue. As lembranças do passado vieram a me perturbar, não queria tirar conclusões antes do tempo.
__ Menino, acho que se eu lhe dissesse algo a respeito, talvez não entenderia a razão.
__ Talvez entenda, Senhor! Tenho o dom de entender as pessoas __ Disse tirando o dinheiro do chapéu para guardar no bolso.
__ Seria estranho pra você, creio que não entenderia.
Mas, serenamente a me olhar disse:
__ Não custa tentar!
Como aquele olhar me trouxe segurança. Eu pude me abrir com aquele menino; nem mesmo o conhecia, mas vi sinceridade nele e parecia querer me ouvir. Não mais receoso o chamei para caminhar, ele apanhou seu instrumento e o guardou, então prosseguimos...
__ Senhor, o brilho do teu semblante parece apagar lentamente.
__ Sabe, menino, a vida deixa marcas e na velhice elas doem. Se não são boas, trazem alegria, se são ruins, trazem mágoas. De certo não deixam de doer.
__ É tão ruim assim?
__ Não, basta saber viver para que as lembranças más não venham a lhe atordoar mais tarde. E se por capricho da vida alguma coisa ruim acontecer a você, como ter que perder alguém, passe por cima; a vida tem dessas coisas...
__ Eu quando era criança perdi minha mãe e meu pai.
Quando o Menino me disse aquilo, meu coração começou a bater forte. Então expliquei a ele o motivo de minha emoção ao conversar com ele, e por quais motivos meu semblante ia-se apagado.
__ Hoje tenho 40 anos, se estivesse com meu filho, talvez ele estaria com a sua idade.
O menino escutava atento, suspirava.
__Eu estaria mais feliz junto a ele e minha esposa que perdi há alguns anos atrás.
__ O que aconteceu com ela? O senhor deve sofrer muito não é?
__ É, dá pra suportar. Minha esposa morreu no parto, 4 horas depois do nascimento de Emmanuel, meu filho. A escrava que eu tinha, cuidou de tudo pra mim, inclusive dele. Eu não tinha forças para nada, não conseguia comer nem dormir; tremenda era a dor que sentia. Depois de alguns meses tive que me conformar com a morte dela. Esabelle, uma linda mulher!
__ E Teu filho, onde está?
__ Juro que não sei, o perdi também.
__ Ele fugiu?
__ Não, a escrava o roubou de mim logo após lhe dar sua alforria. Tentei de tudo para encontrá-la, mas se escondeu muito bem de mim. Outra perda que tive de aceitar. Oh, Deus, tu sabes o quanto sofri! Aquela escrava... Confiava tanto nela! Mas imagino o motivo por qual partiu, apesar de achar que mesmo livre continuaria comigo.
__ E qual seria o motivo, Senhor? A propósito, qual é mesmo teu nome?
__ Eu não tinha coragem de olhar pro meu filho, não que eu não gostasse dele, é que não imaginava como iria criá-lo sem uma mãe, pensava se seria um bom pai, se ele se acostumaria... Uma série de pensamentos me invadia, acabei por entrar em depressão. Talvez a escrava Alice por gostar tanto de mim o levou para que eu não sofresse; não foi uma boa idéia, e durante anos a procurei e nada. Ah, Desculpe, havia perguntado meu nome, sim, é Antônio.
(...)
__ Senhor, queira me perdoar, não consigo conter as lágrimas.
Olhei para aquele menino, percebi o quanto chorava, fiquei espantado.
__ O que foi? Não chores assim, não se comova tanto, é uma dor que não quero que sintas, esqueça.
__ Não diga isso, Senhor! Choro, pois tenho uma história parecida com a sua. A minha mãe Alice, a preta que me cria, disse que mamãe Esabelle morreu no parto, que meu pai um grande fazendeiro se chamava Antônio, e por motivo que nunca quis falar me criou longe, na cidade grande; só agora é que retornamos aqui para o vilarejo Filadélfia. Ela muito doente já sem condições de trabalhar veio descansar aqui onde me disse que tudo começou. Eu com poucas expectativas nunca imaginei que pudesse te encontrar, achei que tinha me abandonado, por fim é muito divino ver a história circundando assim, oh, meu pai! Diga que és? Agora entendo porque preta Alice me trouxe de volta, para te encontrar de novo. Oh, Deus, que alegria! Como eu quis tanto te ver! Te conhecer!
Não acreditava no que via nem no que ouvia. Meu filho estava diante de mim. Parecia um sonho, era um sonho. Comecei a dizer alto: É um sonho!
Ele me dizia: __ Não pai é realidade, não é sonho, sou eu, Emmanuel!
E me Abraçava fortemente; choramos juntos. Contemplando-lhe beijei-lhe a face, dizia: __ Finalmente, oh, Deus! Finalmente.
Ajoelhado agradeci a Deus pelo inesperado reencontro. E ele todo eufórico me pegou pelo braço e me puxava.
___ Vamos, vamos que Preta Alice tem que te ver. Vamos, vamos, ela vai querer te ver, eu sinto isso.
___ Vamos sim, meu filho, vamosssss...
E ali meu semblante se acendeu, a vida devolvia-me a vida mais uma vez. Eu vi a felicidade e a razão de viver me abrangendo o ser. Sentia-me no paraíso. Saímos correndo pelas ruas e meus pés junto aos passos dele pareciam flutuar. Correndo olhei para o céu em ato de reverência, e vi nas nuvens a imagem de Esabelle sorrindo para mim. Senti que naquele momento nossas almas atormentadas se acalmaram para sempre.