Água

Foto de angela lugo

Papai Noel

Olá! Papai-Noel há muito tempo queria lhe escrever, mas somente agora com nove anos aprendi a escrever.
Todos os anos na véspera de Natal eu imaginava sua chegada aqui na minha casinha, mas infelizmente até hoje não aconteceu e agora mais um Natal se aproxima então pensei que se conseguisse lhe escrever uma carta o senhor viria me visitar, por isso me esforcei ao máximo para aprender a escrever.
Neste período em que vivi muitos sonhos foram se instalando em minha mente e a cada Natal que passou nada aconteceu espero que este seja diferente de todos os outros.
Aqui estão alguns dos pedidos para lhe fazer:
Para meus pais eu gostaria que lhe dessem uma casinha nova, porque a nossa é feita de caixas da feira, sabe, aonde vem às frutas e verduras, pois é assim mesmo que ela é feita e o papelão meu pai recolheu nas lojas que não precisavam. Minha casinha é um tormento, pois quando chove molha tudo e nem sequer temos onde dormir precisamos ficar encolhidos em baixo da mesa ou em algum cantinho para se abrigar da água da chuva, pois aqui chove tanto quanto na rua
Falei para os meus cinco irmãos que iria lhe escrever e todos estão confiantes na sua visita neste Natal.
Sabe! Contei também para meu pai e minha mãe que iria lhe escrever eles me falaram que estou louco, que jamais virá e muito menos trará qualquer presente, por favor, não me decepcione, sei que virá depois de ler a minha cartinha.
Também contei para meus amigos aqui da rua e todos riram na minha cara, zombaram dizendo que Papai Noel não existe que é uma fábula inventada, que são nossos pais quem compram os presentes e depois dizem que foi Papai Noel quem os trouxe.
Eu tenho certeza da sua existência sonho todos os anos com sua visita me trazendo uma bola, pois gostaria muito de ser um grande jogador de futebol, andar pelos parques de bicicleta, correr velozmente de patins... Mas claro que tudo isso é apenas um grande sonho meu.
Mas caso não possa vir, por favor, me avise, pois sei que é muito ocupado na noite de Natal e talvez não de tempo de chegar até a minha casinha
Mais um favor, quando estiver no alto do céu e se por acaso encontrar com Deus diga a ele que lhe agradeço muito por tudo que tenho. Ele sabe que não posso andar e por isso não vou a Igreja rezar, mas agradeço todos os dias tudo o que ele me da para muitos pode ser pouco, mas para mim é muito, pois é tudo o que tenho para sonhar a cada dia em que acordo..
Olha! Se não puder trazer muitos presentes eu não me importo, mas saiba que não posso jogar bola e muito menos correr se não me trouxer uma cadeira de rodas.
Já estou muito cansado esta é a primeira carta que escrevo e levei a noite toda para escrevê-la, já é quase dia, estou com muito sono, vou dormir agora.
Quando o senhor vier na véspera de Natal gostaria muito de lhe conhecer, mas se eu não agüentar esperar pode deixar o meu presente ao meu lado saberei que esteve aqui que não foi sonho e sim realidade.
Estas histórias de que Papai Noel não existe é tudo mentira sei que virá e trará os presentes que lhe pedi aí então eu poderei andar pelas ruas, correr pelos parques, ver os amigos que riram da minha cara e mostrar-lhes a minha cadeira de rodas.
Ah! Mais uma coisa não esqueça os presentes para meus irmãos, eles sim podem ganhar bolas, bicicletas, patins porque eles podem correr... Jogar... Brincar... E eu... Eu graças a Deus posso olhar e ver a felicidade na minha casa reinar.
Um beijo Papai Noel

Foto de Marta Peres

Sem Tempo

Sem Tempo

Sem tempo procuro fazer poesia
Com o canto que vem do rio
Não é só água, é vento, é mágoa,
É lamento, é peixe pego no anzól
Do barranco ou no desvario da areia.
Fazendo poesia, ouço meu rio
No suave cantar, não é canto
É sofrimento, saudade de alguém
Para amar.
Sem tempo, inda gosto de sonhar!

Marta Peres

Foto de Daemon Moanir

As vidas

Deixando para trás um misto de loucura e frustração
Típicos de dias cheios de emoção,
Tento encontrar os cacos que de mim sobraram,
Para deles me levantar outra vez
E a verdade que só a mim interessa buscar.

Reflicto e minto a jura,
Que de amor já não sou feito
Mas, por agora, os dias vão passando pesados,
Por entre o Sol e a chuva estão os meus fardos
Que não me deixam sentir calor nem sequer a água pura.

Tenho de descobrir significados
Pera a falta de alma que há em mim
E, assim, poderei procurar o que sou.
As vidas sem verdades tornam-se básicas banalidades.
Fúteis e sôfregas a uns,
Alegres e vivas a outros.
Tudo depende da brutalidade que temos
Para dizer ao mundo, p'ra que nós existamos.
Da quente vontade de felicidade eterna
Busco, para satisfazer a incólume gruta desabitada
Amor, aceitação, conforto e paixão.
E sempre suspiro.

Foto de Minnie Sevla

Flores

Flores, todas murchas.
Sem sol,
Sem luz,
Sem calor,
Sem amor.

Flores, todas tristes.
Sem lar,
Sem paz,
Sem ais,
Sem respirar.

Flores, todas secas.
Sem água,
Sem cor,
Sem dor,
Sem mágoa.

Flores, sem sentido.
Sem beleza,
Sem poesia,
Sem dança,
Sem música,
Sem alegria...

Minnie Sevla

Foto de Sirlei Passolongo

Depois da Chuva...

Depois da chuva
o sol brilha novamente
as gaivotas anunciam a manhã
a lágrima secou na alma
vai como a fria neblina
o sorriso desponta manso
vem como a aurora boreal
a cobrir o céu com beleza sem igual...
Quero brincar feito criança
na água que desce a ladeira
brincar na enxurrada
como se um banho
de esperança
da terra molhada sentir
o cheiro... Sorrir como o sol
fuleiro e iluminar o mundo
inteiro.

(Sirlei L. Passolongo)

Foto de Civana

Elementos

Terra, chão, sertão
Seca, pobreza, seca
Adão, perversão, solidão
Terra, sofrida encerra.

Fogo, amor, paixão
Sentimentos, vontade, clarão
Vida, morte, vida
Fogo, amo, morro.

Água, chuva, leve
Clara, pura, neve
Mata, alaga, fere
Água, serviu, serve

Ar, pureza, certeza
Parar, sentir, sofrer
Pesar, ventar, incerteza
Ar, puro ar.

(Civana)

Foto de Maria Flor e Rabiscos

Coloca uma rosa vermelha...

Se passar junto ao mar…
Coloca nele uma rosa vermelha.
.
O mar vai falar de mim…
.
Vai ouvir palavras de amor eterno,
Abrace-o como me abraçavas,
Dança com ele, como dançavas comigo…
.
Dê a magia do teu amor como só você sabe fazer,
Aperte-o juntinho a ti como se fosse eu...
.
Nada mais importa, apenas sinta a minha alma.
.
Olhe o mar de frente, vai ver os meus olhos,
Mergulha nele os teus lábios,
sinta o sabor do meu beijo…
.
Sinta o meu abraço,
no calor da água fria.
.
Coloca uma rosa vermelha,
Se passares junto ao mar…

Maria Flor!

Foto de Sonia Delsin

TE DOU O CÉU...

TE DOU O CÉU...

Te dou o céu.
Se me pedires.
Mas não pedes.
Na tua mudez te fechas cada vez mais.
Tem horas assim que penso.
Por que alguém se fecha tanto?
Por que alguém prefere se esconder num canto?
Por que será que nem o céu desejas?
Ou desejas e eu nem sei?
Ah, já não sei...
Dirás que já comecei...
A falar... a dizer bobagens...
Que posso dizer de alguém que vive isolado?
No seu mundo fechado...
Dirão todos...
É um pobre coitado.
Deixa a vida passar.
Pensa que o tempo fica estagnado.
São pensamentos meus...
Não sei dos teus...
Posso ser uma sonhadora, uma voadora...
Mas te garanto...
Nos meus voares é que me encontro.
Encontro tanta resposta nas minhas viagens.
Sei de tantas passagens.
Ó, meu bem... sei que deixas a vida passar... igual água debaixo da ponte.
Ela vai pelos leitos do rio a deslizar.
O tempo passado não vai mais voltar.
Será que um dia vais pensar? Teve alguém que o paraíso queria me mostrar...

Foto de Anandini

Elemento:Água

Dentro de mim
corre um líquido.
Que lava meu coração.
Quente como a lava,
borbulhante em meu vulcão.

Dentro de mim penetra,desfila
em via de contramão
ora densa,ora fina
toma conta de cada vão.

Gelada se esparrama,
com gosto de baunilha
colorida...um arco-íris
tingido de anilina.

As vezes está tão clara
brilhante tão cristalina...
outras vezes,escurece tudo
pondo medo em minha menina.

Invade minha barriga
Faz cócegas em meu nariz
e molha minha pupila,
transformando-se n'uma lágrima
me deixando infeliz...

Me dá prazer, me alivia
quando desce pela garganta
matando a minha sede
faz-me forte,me agiganta

A água que tenho em mim
me deixa calma, me faz feliz.
"Sou Peixes"preciso dela
para chorar; para sorrir.

Sem ela me torno um nada,
sem ela quero morrer
dentro de mim corre essa água,
faz parte desse meu ser.

Sou água
sou sossegada
apaziguada
por uma lágrima
sem essa água
não sei
viver...
(22/02 Peixes- Asc.Peixes elemento: Água)

Foto de Lou Poulit

TROVÃO E O SABIÁ SERENO

CONTO: TROVÃO E O SABIÁ SERENO
AUTOR: LOU POULIT

Sentada sob o alpendre da mansão colonial, sua fortaleza de toda a vida, Sinhá havia se perdido em seus pensamentos. O dia havia se despedido há pouco, com a apoteose fugaz de um céu prestante de cores e texturas, que de tudo o que pode tentou fazer para merecer a atenção da moça. Nem a sinfonia da passarada fez efeito. Tudo em vão, restaram as estrelas que nem sequer se aventuraram. A passarada se calou para dar a vez aos grilos, sapos e outros barulhentos notívagos. Sinhá revirava mecanicamente os fartos rendados da saia à sua volta, pois em espírito não estava de fato ali.
Então, passos arrastados vindos de dentro precipitaram-na do etéreo em que vagava, de volta ao corpinho magoado pela posição pouco cômoda. De tão surpresa e assustada, não teve coragem de se virar. E esperou apenas, assim como seu coraçãozinho, que esperava dentro do peito prestes a lhe saltar pela boca. Aos poucos uma luz tênue, mas capaz de expulsar soberanamente a escuridão, se aproximou. A moça temeu que se aproximasse ainda mais e explodiu em gritos nervosos: Saia já daqui! O que quer de mim, demônio? Eu não lhe chamei aqui!
A pouca distância estava parado um caboclo mulato de aspecto impressionante. Pele muito morena e os olhos claríssimos de uma onça enterrados no rosto embrutecido, como pequenas gemas raras no emboço úmido da terra, adubada pelos séculos. O velho Sereno segurava a candeia, tentando compreender, tão próxima, a moça que à distância vira crescer, como flor única naquelas glebas. Durante algum tempo Sinhá não conseguiu balbuciar mais uma palavra. Tentava decifrar como aquela figura estranha havia invadido seu silêncio, que significado poderia haver nele e se seria perigoso para as coisas ricas que guardava no segredo das suas lembranças. Porém, achando em seguida que o silêncio era ainda mais  insuportável, a moça voltou à carga: Quem lhe deu o direito de estar aqui?... Ele tentou explicar: Vim só alumiá o negrume da noite pra vosmicê, Sinhazinha... Carecia de se assustá não... Não tenho medo de nada... — Ela empinou orgulhosamente a própria fragilidade. Como poderia temer um empregado dentro da casa do senhor meu pai? Ademais, estava aqui com meus pensamentos...
O homem olhava com segurança os olhos escorridos de lágrimas da moça, cheios de brilhos amarelados pela chama da candeia. Sentia pena dela, mas sabia pelas décadas de convívio, que não se devia manifestar piedade para com os senhores. Sereno sabe que está triste, Sinhá. Ma num pode fazê nada não... — Disse ele abaixando os olhos. Mas como pode saber disso? Não lhe dou esse direito. De onde você saiu?... Ainda com os olhos baixos, ele respondeu: Sempre estive aqui, Sinhazinha. Vim pra essas terras do senhor seu pai na barriga da minha mãe, que se foi embora amarrada naquele pé-de-jurema-branca, bem ali na direção onde a lua vai nascer não demora nada. Eu era desse tamanhinho quando ela descansou, cabia no cesto onde os cavalos comiam o mio que ela dava com gosto. Naquele tempo o capataz era um homenzinho muito do ruim... Ela só queria alimentar a sua cria...
A moça ficou perplexa. Mas se refez da letargia porque lembrou-se do seu alazão, tornando a gritar: Não me fale do meu alazão. Eu amava o Trovão como se fosse uma pessoa! Ninguém montava nele além de mim! E acabaram de trazê-lo num arrasto de pau-de-mangue... Ele estava morto! Eu vou matar quem fez isso com ele... E a chorar convulsivamente ela recostou-se no portal, até sentar-se de novo no degrau do alpendre. Sereno continuou calado, imóvel, com os olhos cravados nas lajes do chão. Como se sua alma cansada procurasse uma brecha para um imenso arrependimento.
Tentando descobrir em seu próprio silêncio o que poderia fazer naquela situação triste e constrangedora, o velho caboclo foi lentamente até a arandela pendurar a candeia. Não sabia o que fazer a mais. Durante quase vinte anos quisera ajudá-la em muitas situações de perigo, mas sempre chegava alguém antes. Sereno trabalhara sempre na plantação, por vezes tratando dos cavalos doentes e por outras como mateiro. Amava a menina, antecipava os riscos que ela corria, mas haviam outros mais próximos dela. Agora o mesmo sentimento de proteção lhe parecia palpável de tão denso. E ironicamente, embora estivessem ali apenas os dois, simplesmente não sabia o que fazer.
Passados alguns poucos e imensos minutos, a moça quebrou o silêncio, mais calma, porém sem perder a altivez da voz: Como se chama?... Sereno, Sinhazinha — Disse ele. E porque está aqui, nunca lhe vi dentro de casa?... O velho empurrou a aba do chapéu para trás e coçou a calva rala da carapinha branca, como sempre fazia quando se sentia inseguro. Demorou um pouquinho mas respondeu: Eu vim de pés lá de trás da serra dos pastos... O senhor seu pai mandou que me alimentasse e ficasse por aqui até amanhecer. Ela insistiu: Mas por que veio de pés? Ah, Sinhazinha, parei no meio da mata para ouvir o sabiá-da-mata, tava cantando bem em cima de mim. Desde menino adoro os sabiás, num gaio da mangueira, por cima da minha palhoça tem um que fez ninho agora. Quando passo o café da tarde ele ta arrebentando os peitos, de tanto chamá uma fêmea pro seu ninho novinho e arrumadinho. Mas me distraí, meu cavalo assustou-se com a onça e saiu desembestado, nem sei pra onde. Mas vou lá buscar, pro seu pai meu senhor num ficá num prejuízo maió. Não é um bicho caro, é até meio capenga. Mas é um bom companheiro, num sabe?... Vendo a perplexidade dela, ele perguntou: Que foi Sinhá, com essa boca aberta, quem nem peixe morto?... A moça sussurrou: Onça? Que onça é essa, Sereno?
O velho respirou profundamente. Não haveria mais de esconder. Ela que soubesse a verdade e que fizesse o que achasse justo. Disse a ela com segurança: A mesma que pegou o Trovão... Aquele sangue todo foi porque quando cheguei ela já tinha garrado no pescoço dele... — Disse o caboclo, limpando instintivamente as mãos grosseiras nas calças. A moça mostrou-se inconformada: E você não fez nada para ajudar o coitado? Não tinha uma arma, Sereno? Sinhazinha, ele caiu por cima da bicha, esperneava como um porco endemoninhado... Endemoninhado é você, miserável! Ele era o alazão mais valente que conheci. Só que havia uma onça mordendo o seu pescoço. E um homem medroso e inútil assistindo a sua morte desesperada! Que queria que o Trovão fizesse?... Sereno, se calou constrangido e ela quis saber mais: E depois, Sereno?... Sinhazinha, num é nada fácil chegar perto de dois bichos grandes e raivosos... E eu só tinha mesmo o meu facão de mato e não queria ferir ainda mais o Trovão... Sim, mas o que você fez?... — Ela estava implacável. Eu nada, Sinhazinha, a onça é que resolveu desaparecer. Onça é um bicho covarde. Só pega pelas costas, sangra e espera morrer. Mas se sentindo insegura, ela larga e fica de longe só espiando. Esperando a hora de comer sossegada. E o outro, que também é bicho, sabe que vai morrer e que ela vai vir lhe rasgar as tripas. É só uma questão de tempo. O mundo dos bichos é assim mesmo, Sinhá. Ninguém muda não. Vosmicê ta triste e eu também. Mas o Trovão ta não... Ah, não... Ta não. Só ta esperando os primeiros lampejos do dia, pra correr por essas terras sem fim, pelos campos e pelas matas fechadas, num tem mais nada que lhe impeça... Vai conhecer todos os lugares onde nunca tinha ido, vai beber água do rio grande e vai saltar nas ondas da praia. Enquanto isso nós vai ficar aqui chorando de tristeza, porque num pensa que ele ta livre como nunca foi. É que como nós só sente o sentimento da gente, só pensa com a cabeça da gente, então acha que o Trovão ta sentindo e pensando a mesma coisa que a gente, Sinhazinha... Não tenha raiva não... Que ele não pode aparecer pra vosmicê e lhe contá como que é lá, pronde ele foi. Ele vai ficar triste por causa da sua tristeza, Sinhá...
A moça relutava, porém se esforçava para aceitar aquela sabedoria estranha que quase desdenhava os seus mais puros sentimentos. Embora não tivesse coragem de dizê-lo, até que gostava muito de imaginar seu querido Trovão suando da correria que tanto amava, brilhando ao sol e ao luar. Ele amava o vazio dos espaços, os obstáculos que vencia, amava o vento revirando as suas crinas, enchendo-lhe os pulmões no peito enorme e musculoso, e depois expirava com força fazendo seu próprio vento, era quase um deus da natureza. Ah, como ele gostava disso... — Pensou consigo. Alagada da própria ternura, disse então ao velho: Ele lutou até o último instante não foi, Sereno?
Ele era valente demais, eu o conhecia desde que era um potrinho muito abusado, sinhá... Já mais calma, finalmente ela tornou-se amigável: Sou lhe muito grata, quero que fique, se alimente bem e descanse bastante. E depois vá buscar o pangaré, antes que essa onça o coma, já que não comeu o Trovão, pois que os homens foram buscá-lo antes disso... Sereno sentia-se mais à vontade agora, já sentado também, mas no degrau de baixo como lhe convinha. E completou: Vou Sinhazinha, antes de clariá vou atrás dele. E ai dela que se meta, pois vou levar um trabuco... Faça isso por mim, Sereno... — Ela pediu ainda com raiva.
Não posso prometer, Sinhazinha... Não Sereno, não se arrisque... E se ela lhe pegar pelo pescoço, como fez com o Trovão?... Vosmicê num fique triste não, Sinhá... Também sou meio bicho, já fiz muita coisa nesse mundo de meu Deus... Já matei oito onças, seu pai meu senhor pode lhe dizer... Uma delas ia morder era o pescoço dele... É que de uns anos pra cá elas estavam sumidas, que os cachorros farejam a catinga delas de longe... Gato tem raiva de cachorro e vice-versa, num sabe?
Eu prometo, Sereno. Vou contar para os meus netinhos essa estória. E vou me lembrar de dizer que você foi um herói, que não pode salvar o Trovão, mas veio de pés buscar homens, para que ele tivesse um enterro digno. Meus netinhos vão aprender a odiar todas as onças, porque essa matou o Trovão... Mas eis que tais palavras indignaram o velho filho-do-mato, e ele quis ser exato: Não, Sinhazinha. Isso não é certo, não é verdade não... Como, Sereno? Se ela não matou o meu alazão, então quem foi?... Fui eu mesmo, Sinhazinha... A moça de um pinote ficou de pé, com o dedo em riste, e novamente enfurecida lhe disse: Seu traidor! Vá embora, suma daqui! Nunca mais quero ver sua cara! Não vou lhe perdoar jamais! Vá logo. Antes que eu grite por alguém para lhe surrar no pé-de-jurema, desgraçado! Naufragados novamente em profunda tristeza, ambos se foram. Ela se foi para chorar na cama e ele no mato. Mas nenhum dos dois conseguiu dormir.
A moça rolou na cama, sobre o lençol úmido das suas lágrimas, até que lhe viessem chamar para o almoço no dia seguinte. À tarde, na hora da refeição também não quis sair do quarto, deixando a todos apavorados. Seu pai começou a preocupar-se, vendo que as mucamas não paravam de cochichar pelos cantos. Resolveu-se a sacudi-la. Entrou no quarto como um furacão para intimidá-la e foi querendo saber o porque daquele drama. Sabia o porque, também sentia muito pelo alazão, sabia o valor que tinha, mas não queria perder também a filha. Sinhá estava desolada e não apenas pelo seu Trovão. As horas lentas da madrugada lhe convenceram de que havia sido injusta com o Sereno. Estava agora claro que quisera apenas poupar o animal de mais sofrimento. Não podia carregá-lo nas costas e com certeza não quis que o alazão assistisse a desgraçada da onça comer-lhe as carnes ainda vivas. Ela estava soterrada de remorso e com muito jeito fez o velho concordar em mandar buscá-lo quando voltasse do mato. Assim também concordou em levantar-se.
Alguns dias depois estava novamente sentada no alpendre, mas dessa vez assistiu a obra da natureza, que se comprazia em dispor da sua atenção. O dia terminou. Escureceu por completo. Ela se lembrou da noite em que se assustou com Sereno. Dessa vez queria imensamente que ele lhe trouxesse a candeia. Havia preparado algumas palavras para lhe pedir que perdoasse a grosseria. Ninguém lhe dissera uma palavra durante esses dias, tinha a impressão cada vez mais densa de que não lhe queriam falar a respeito. Uma luz veio de dentro, mas pelo andar sem botas não poderia ser Sereno. Era uma mucama, que foi dispensada. Sinhá só queria a luz do velho caboclo, como naquela noite. Agora queria gostar dele, da sua sabedoria e da sua paz. A lua começou a aflorar, derramando seu prateado pelas colinas, que abraçavam em segurança a mansão. De repente, algo se mexeu nas folhas do pé-de-jurema-branca, que pareciam lhe acenar variando o reflexo do luar.
Então, para sua imensa surpresa ouviu com nitidez o canto mavioso de um sabiá. Mas como? Sabiá cantando há essa hora? Não pode ser, já é noite... Não queria aceitar o que seu próprio silêncio lhe dizia, lutava contra com todas as suas forças. Então ouviu de novo, logo ouviu outra vez e de novo tornou a ouvir. As defesas que havia erguido em si própria foram ruindo a cada canto, como se fossem rojões de poderosos canhões. Até que não pode mais sustentar a própria razão. O sabiá só podia estar feliz. Tão feliz que nem se importava com a noite, não queria esperar o amanhecer! Se quisesse vê-lo sempre feliz, devia afastar a tristeza. Libertá-lo do próprio peito para que fosse completamente livre, para que cantasse onde quisesse e quando quisesse. E ainda voar sobre as matas e as ondas do mar. Seu canto não era triste como o de outros, mas sim vigoroso e doce como o de uma flauta da natureza.
A mucama voltou com um semblante pávido, porque viera lhe dar uma notícia. Mas quedou-se quando à luz da candeia viu que o de sua Sinhazinha sorria para a lua, já em seu esplendor. A mucama lhe disse: Sinhazinha, o seu pai mandou meu irmão e meu primo buscar o Sereno. Mas eles não querem falar, estão com medo. Medo de que? Diga logo... Não fica brava comigo não Sinhazinha... Fala de uma vez, mulher... É que a onça pegou o Sereno também, Sinhazinha...
Completamente perplexa, a mucama ouviu a Sinhá lhe dizer com doçura: Não fique assim tão triste. Há essa hora ele deve estar bem assobiando por aí... Por onde, Sinhazinha?... Pela natureza, pelo céu, pelo rio grande, ou se lavando nas ondas do mar... A pobre mucama não conseguia atinar com aquelas palavras surpreendentes e Sinhá completou: Anda, pode deixar a candeia na arandela e vá pra dentro. Se precisar eu lhe chamo, agora vá. Quando mais tarde seu pai veio lhe buscar para dentro, aliviado pelas falas da mucama, encontrou-a bem disposta, quase feliz para aquelas circunstâncias. Sinhá aproveitara o tempo para fazer uma prece emocionada, repleta de gratidão e amizade, pela alma do velho Sereno. Durante toda vida estivera bem ali e nem o havia notado. Mas havia sido de grande valia justo no momento que mais precisou. Se estava feliz a ponto de assobiar no galho do pé-de-jurema àquelas horas, então deviam estar todos felizes: O Sereno, sua pobre mãe e também o Trovão. Não, não queria mais pensar em tristezas.
Foi quando seu orgulhoso pai, sentindo necessidade de participar daquele momento lhe disse: Deixe estar, querida... Aquela maldita onça não irá longe... Eu me encarregarei disso pessoalmente.
 

Páginas

Subscrever Água

anadolu yakası escort

bursa escort görükle escort bayan

bursa escort görükle escort

güvenilir bahis siteleri canlı bahis siteleri kaçak iddaa siteleri kaçak iddaa kaçak bahis siteleri perabet

görükle escort bursa eskort bayanlar bursa eskort bursa vip escort bursa elit escort escort vip escort alanya escort bayan antalya escort bayan bodrum escort

alanya transfer
alanya transfer
bursa kanalizasyon açma