Pratos

Foto de Carmen Vervloet

OLHOS QUE VEEM, CORAÇÃO QUE SENTE

No meu coração, gravada em felicidade, a fazenda Três Meninas! O casarão caiado em branco, portas e janelas pintadas em ocre, a varandinha, como mamãe chamava, com jardineiras repletas de gerânios coloridos e camaradinhas que caiam até o chão. Em frente à casa, estonteante jardim, onde borboletas faziam seu ritual diário, beijando com amor a cada exuberante flor, cena que meu coração menino guardou para sempre. As cercas todas cobertas por buguenvílias num festival de cores. Em seguida ao jardim, o pomar com gigantescas fruteiras (olhos de criança, enxergam tudo maior), mangueiras, abacateiros, laranjeiras, goiabeiras e tantas outras que não se conseguiria enumerar, onde com a agilidade da idade subia, não só para colher e saborear os frutos maduros, mas, para ver de perto os ninhos de passarinhos, que papai com sua profunda sabedoria, já me ensinava a preservar. Passava horas sobre os galhos das minhas fruteiras prediletas, principalmente goiabeira, que era só minha, ficava ao lado do riacho, onde também costumava pescar. Lá do alto, no meu galho preferido, junto aos pássaros, voava em meus sonhos de criança feliz!
Nos meus devaneios, fui mãe (das minhas bonecas), fui anjo (nas coroações de Nossa Senhora), viajei pelo mundo (sempre que via um avião passar), fui menina-moça (sonhando o primeiro amor). Na vida real fui criança feliz, cercada pelo amor e carinho de minha doce mãe, de meu sensível e amigo pai (ah! Que saudade eu sinto de você, pai), de minhas duas irmãs mais velhas que faziam de mim sua boneca mais querida, colocando-me sobre uma pilha de travesseiros, num altar improvisado sobre a cama de meus pais, onde eu era o anjo, na coroação que faziam de Nossa Senhora. Nesta época eu tinha apenas dois anos e se o sono chegava, a cabecinha pendia para o lado, logo me acordavam, pois não podiam parar a importante brincadeira.
Já maior, menina destemida, levei carreira de vaca brava, só porque me embrenhei na pasto, reduto das vacas com suas crias, para colher deliciosa jaca, que degustara com o prazer dos glutões. O cheiro da jaca sempre me reporta às boas lembranças da Fazenda Três Meninas... Até hoje tenho uma pequena cicatriz na perna, que preservo com carinho, sinal de uma infância livre e feliz. Desci morros em folhas de coqueiros, cavalguei cavalos bravos, pesquei com peneira em rio caudaloso! Ah! Tempo bom que não volta mais!...
Mês de dezembro. Tempo de expectativas e alegrias. Logo no começo era a espera do meu aniversário, da minha festa, do vestido novo, do meu presente, o bolo, a mesa de doces com os deliciosos quindins feitos por mamãe. Depois a expectativa do Natal, a escolha do pinheiro, do lugar estratégico para montar a imensa árvore, os enfeites coloridos, estrelas, anjinhos, bolas que eu ajudava mamãe a pendurar, um a um, com delicadeza e carinho, junto à certeza da chegada do bom velhinho, em quem eu acreditava piamente, com todos os presentes que havia pedido por carta que mamãe me ajudava a escrever. O envelope subscritado com os dizeres: Para Papai Noel – Céu
E depois era esperar a chegada do grande dia. Era o coração batendo em ansiedade, era a aflição de ser merecedora ou não da atenção do bom velhinho. Quando chegava o dia 24, sentia o tempo lento, as horas se arrastando, o sapatinho, o mais novo, sob a árvore, desde muito cedo, o coração batendo acelerado. Mal anoitecia, já deixava a porta entreaberta para a entrada de Papai Noel e corria para minha cama tentando dormir, sempre abraçada a minha boneca preferida, para acalmar as batidas do meu coração. O ouvido apurado para tentar ouvir qualquer ruído diferente. Era sempre uma noite muito, muito longa! Os olhos bem abertos até que o cansaço e o sono me venciam!
No dia seguinte, cedo pulava da cama. Que grande felicidade, todos os meus presentes lá estavam sob a árvore. Era uma festa só! Espalhava os presentes pela casa toda, na vitrola disco LP tocando canções natalinas, função de papai que adorava música... (Ah! Papai quanta coisa boa aprendi com você). Lembro-me bem de um fogãozinho, panelinhas, pratos, talheres que levei logo para o meu cantinho, onde brincava de casinha. Lembro-me também de uma boneca bebê e seu berço que conservei por muitos e muitos anos.
Todas essas lembranças continuam vivas dentro de mim, como se o tempo realmente tivesse parado nestes momentos de paz e felicidade. Os almoços natalinos na casa de meus avós paternos onde toda a imensa família se reunia em torno de uma enorme mesa. Vovô na cabeceira, vovó sentada a sua direita, tios, tias, primos e mais presentes para as crianças, comidas deliciosas, sobremesas dos deuses, bons vinhos que eu via os adultos degustarem, (depois do almoço, escondida de todos, eu ia bebericando o restinho de cada copo), arranjos de frutas colhidas no pomar, flores por toda a casa e depois minhas tias revezando-se ao piano, já na sala de visita, onde os adultos tomavam cafezinho e licores. A criançada correndo pelo quintal, pelo jardim, pelo pomar... Tantos momentos felizes incontáveis como as estrelas do firmamento! Momentos que eternizei no meu coração.
Hoje o tempo é outro, a vida está diferente. Muitos se foram... Outros chegaram... Os espaços estão reduzidos, as moradias se verticalizaram, as janelas têm grades por causa da violência, as crianças já não acreditam em Papai Noel, desapareceu o espírito cristão do Natal para dar lugar a sua comercialização, as ceias tomaram o lugar dos grandes almoços em família, da missa do galo...
Mas a vida é dinâmica e temos que acompanhá-la. Os grandes encontros de família são raros. As famílias foram loteadas, junto aos espaços, junto a outras famílias, junto à necessidade de subsistência.
Nada mais é como antes, mas mesmo assim continuamos comemorando o nascimento do Menino Deus, em outros padrões é verdade, mas com o mesmo desejo de que haja paz, comida e felicidade em todos os lares.
Feliz daquele que tem tatuado nas entranhas da alma os venturosos natais de outrora vistos por olhos que vêem, olhos atentos de criança, sentidos com a pureza do coração!
Olhos da alma, sentimentos eternizados!...

Carmen Vervloet
Vitória, 23/12/2008
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À AUTORA

Foto de gisele torress

amor verdadeiro.

------------------------amor verdadeiro.----------------------------------------------------

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d'água neste momento, perceba:
existe algo mágico entre vocês.
Se os corpos se atraírem loucamente, se a química da pele permanecer antes, durante e depois de fazerem amor ..."UAUUUU..." , acredite: vocês são almas afins.
Se fazer amor for muito mais do que fazer sexo, se o prazer não for só um momento e se depois vocês dormirem abraçados, entrelaçados até amanhecer o dia, aceite: algo de muito importante está acontecendo na sua vida...
Se acordar no meio da noite e sentir vontade de observar a pessoa dormindo, sentir a respiraçao, tentar adivinhar o que ela está sonhando e, neste momento, sentir vontade de beijá-la com carinho, e essa pessoa, mesmo dormindo, retribuir, assim, meio
inconsciente, fique feliz: vocês já são um do outro, inteiramente...
Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente divino - o amor.
Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por algum motivo e em troca receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram feitos um pro outro...
Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida...
Se você não consegue dirigir com as duas mãos, porque não pode deixar de tocar a outra pessoa nem por um instante, que incrível: vocês estão correndo perigo e nem se dão conta disso ...
Simplesmente não conseguem se desgrudar...
Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da pessoa como se ela estivesse ali do outro lado...
Se você conseguir adivinhar o que ela comeu no jantar, mesmo sabendo que ela tem dez pratos preferidos...
Se você conseguir saber o que está incomodando a pessoa, mesmo que aparentemente esteja tudo bem...
Se você souber exatamente o momento do filme em que ela vai estar chorando, mesmo sem olhar pra ela...
Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados...
Se você não consegue andar pelas ruas, sem deixar
de segurar a mão da outra, mesmo que um poste atravesse os dois ao meio...
Se você consegue ficar somente 15 minutos aborrecido depois de uma briga e terminar tudo somente por meia hora...
Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...
Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...
Se você tiver a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela.
Se você preferir morrer, antes de ver a outra partindo: É o amor que chegou na sua vida. É um presente de Deus. É uma dádiva.
Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro.
Ou às vezes encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam o amor passar, sem
deixá-lo acontecer verdadeiramente.
É o livre-arbítrio.
Por isso, preste atenção nos sinais
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: o AMOR ...

Foto de Rosinéri

QUANDO O AMOR ACONTECE

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração
parar de funcionar por alguns segundos,
preste atenção:
pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta:
pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d'água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se os corpos se atraírem loucamente, se a química da pele permanecer antes, durante e depois de fazerem amor, acredite:
vocês são almas afins.
Se fazer amor for muito mais do que fazer sexo, se o prazer não for só um momento e se depois vocês dormirem abraçados, entrelaçados até amanhecer o dia, aceite:
algo de muito importante está acontecendo na sua vida...
Se acordar no meio da noite e sentir vontade de observar a pessoa dormindo, sentir a respiração, tentar adivinhar o que ela está sonhando e, neste momento, sentir vontade de beijá-la com carinho, e essa pessoa, mesmo dormindo, retribuir , assim, meio inconsciente, fique feliz:
vocês já são um do outro, inteiramente...

Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa,
se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração , agradeça:
Deus mandou-lhe um presente divino - o amor.
Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por algum motivo e em troca, vier um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos
e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se:
vocês foram feitos um pro outro...
Se por algum motivo você estiver triste, se a vida deu-lhe uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa:
você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida...
Se você não consegue dirigir com as duas mãos, porque não pode deixar de tocar a outra pessoa nem por um instante, que incrível:
vocês estão correndo perigo e nem se dão conta disso...
Simplesmente não conseguem se desgrudar... Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da pessoa como se ela estivesse ali do seu lado...
Se você conseguir adivinhar o que ela comeu no jantar, mesmo sabendo que ela tem dez pratos preferidos...
Se você conseguir saber o que está incomodando a pessoa, mesmo que aparentemente esteja tudo bem...
Se você souber exatamente o momento do filme em que ela vai estar chorando, mesmo sem olhar pra ela...
Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados...

Se você não consegue andar pelas ruas, sem deixar de segurar a mão da outra, mesmo que um poste atravesse os dois ao meio...
Se você consegue ficar somente 15 minutos aborrecido depois de uma briga (daquelas em que tudo termina somente por meia hora)...
Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...
Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...
Se você tiver a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela...
Se você preferir morrer, antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida.
É um presente de Deus. É uma dádiva.
Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Ou às vezes encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam o amor passar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.
É o livre-arbítrio.
Por isso, preste atenção nos sinais!
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o ceguem para a melhor coisa da vida:
o amor.

Foto de Rosinéri

QUANDO O AMOR ACONTECE

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração
parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção
pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta:
pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d'água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se os corpos se atraírem loucamente, se a química da pele permanecer antes, durante e depois de fazerem amor, acredite:
vocês são almas afins.
Se fazer amor for muito mais do que fazer sexo, se o prazer não for só um momento e se depois vocês dormirem abraçados, entrelaçados até amanhecer o dia, aceite:
algo de muito importante está acontecendo na sua vida...
Se acordar no meio da noite e sentir vontade de observar a pessoa dormindo, sentir a respiração, tentar adivinhar o que ela está sonhando e, neste momento, sentir vontade de beijá-la com carinho, e essa pessoa, mesmo dormindo, retribuir , assim, meio inconsciente, fique feliz:
vocês já são um do outro, inteiramente...
Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa,
se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração , agradeça:
Deus mandou-lhe um presente divino - o amor
Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por algum motivo e em troca, vier um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos
e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se:
vocês foram feitos um pro outro...
Se por algum motivo você estiver triste, se a vida deu-lhe uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa:
você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida...
Se você não consegue dirigir com as duas mãos, porque não pode deixar de tocar a outra pessoa nem por um instante, que incrível:
ocês estão correndo perigo e nem se dão conta disso...
Simplesmente não conseguem se desgrudar... Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da pessoa como se ela estivesse ali do seu lado... Se você conseguir adivinhar o que ela comeu no jantar, mesmo sabendo que ela tem dez pratos preferidos...
Se você conseguir saber o que está incomodando a pessoa, mesmo que aparentemente esteja tudo bem...
Se você souber exatamente o momento do filme em que ela vai estar chorando, mesmo sem olhar pra ela...
Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados...
Se você não consegue andar pelas ruas, sem deixar de segurar a mão da outra, mesmo que um poste atravesse os dois ao meio...
Se você consegue ficar somente 15 minutos aborrecido depois de uma briga (daquelas em que tudo termina somente por meia hora)...
Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...
Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...
Se você tiver a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela...
Se você preferir morrer, antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida.
É um presente de Deus. É uma dádiva.
Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Ou às vezes encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam o amor passar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.
É o livre-arbítrio.
Por isso, preste atenção nos sinais!
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o ceguem para a melhor coisa da vida:
o amor.

Foto de Sonia Delsin

OS DOIS PRATOS DA BALANÇA

OS DOIS PRATOS DA BALANÇA

Adoro o silêncio. Minha alma com ele se delicia.
Adoro ficar quietinha observando o vôo de um colibri.
Adoro adentrar nas matas silenciosas.
Quando uma ave interrompe o silêncio de forma prazerosa sinto grande alegria. Como se eu fosse parte integrante do ecossistema.
Gosto das minhas horas quietas, quando medito, quando fico simplesmente a olhar uma estrela que desponta.
Amo observar o sol nascendo, se pondo.
Como gosto de ficar à beira de um lago olhando a água. E as cachoeiras então! E o mar!
Já contei tantas vezes que sou apaixonada pela lua. Que adoro andar pelas ruas. Tudo olhando, tudo observando.
Procuro lugares quietos quando minha alma pede silêncio. Mas também há horas que precisamos do barulho. Gosto de rock, mas tudo a seu tempo, sua hora. Gosto muito de dançar e estar numa danceteria ouvindo belas músicas.
Penso que quando ficamos em silêncio temos um encontro conosco e quando estamos em meio ao burburinho temos um encontro com o mundo.
Precisamos de ambos para estarmos equilibrados.

Foto de banshee

Sobre Mim...

Já escondi um AMOR com medo de perdê-lo, já perdi um AMOR por escondê-lo... Já segurei nas mãos de alguém por medo, já tive tanto medo, ao ponto de nem sentir minhas mãos... Já expulsei pessoas que amava de minha vida, já me arrependi por isso... Já passei noites a chorar até conseguir adormecer, já fui dormir tão feliz, ao ponto de nem conseguir fechar os olhos... Já acreditei em amores perfeitos, já descobri que eles não existem... Já amei pessoas que me decepcionaram, já decepcionei pessoas que me amaram... Já passei horas na frente do espelho a tentar descobrir quem sou, já tive tanta certeza de mim, ao ponto de querer desaparecer... Já menti e me arrependi depois, já falei a verdade e também me arrependi... Já fingi não dar importância às pessoas que amava, para mais tarde chorar quieta em meu canto... Já sorri a chorar lágrimas de tristeza, já chorei de tanto rir... Já acreditei em pessoas que não valiam a pena, já deixei de acreditar nas que realmente valiam... Já tive crises de riso quando não podia... Já quebrei pratos, copos e vasos, de raiva... Já senti muita falta de alguém, mas nunca lhe disse...
Já gritei quando deveria calar-me, já me calei quando deveria gritar... Muitas vezes deixei de falar o que penso para agradar uns, outras vezes falei o que não pensava para magoar outros... Já fingi ser o que não sou para agradar uns, já fingi ser o que não sou para desagradar outros... Já cai inúmeras vezes achando que não iria me reerguer, já me reergui inúmeras vezes pensando que não cairia mais... Já liguei para quem não queria apenas para não ligar para quem realmente queria... Já chamei pessoas próximas de "amigo" e descobri que não eram... Algumas pessoas nunca precisei chamar de nada e sempre foram e serão especiais para mim... Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre... Não me mostrem o q esperam de mim, porque vou seguir meu coração!... Não me façam ser o que não sou, não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente!... Não sei amar pela metade, não sei viver de mentiras, não sei voar com os pés no chão... Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra SEMPRE!
banshee

Foto de jorgealbuquerque

Comer só

Adoro comer só
Máxima liberdade do egoísmo
Comer o que quiser... Quanto quiser... Como quiser...
O cardápio é seu, assim como o tempo
Um mini-mundo ao seu controle
E, se você voltar mais de uma vez
Juro que param de olhar...

"Aceita o último pedaço?"
O outro sempre aceita
Mesmo quando você queria
A voz de sua mãe espreita

Colegas de trabalho são os piores
Vinte pessoas num mesa (sempre uma churascaria)
Jung diz que aproxima o grupo
Max diz que mistura a conta

Ao invés, as vezes almoço sushi
Self-service no supermecado
Badejinha de isopor, tudo em 20 segundos
Emagrece e não enche o saco

Odeio lavar pratos
Sempre janto na tupperware
Abro a tampa,
ligo o microondas
e pego um garfo.
Sempre na frente da TV
com 2 litros coca-cola (recentemente coca-zero)
E sem copos

A pizza, então, é perfeita
Sempre sobram ao menos 4 pedaços
Que ficam muito melhores frios
Perfeitos para o café
Perfeitos na noite seguinte

Mas o destino é irreverente
Estou em vias de casar
E adoro cozinhar para ela
Assisto ao Oliver (o ingles) e ao Olivier (o frances)

Me divirto muito preparando,
comendo a dois
e até lavando...

[esse é um pouco antigo, mas estou trazendo ao blog por uma nova questão de contexto... ]

Foto de cafezambeze

O GRANDE DIA - POR GRAZIELA VIEIRA

O Grande Dia

20 de Julho 1953.

Ás quatro da madrugada, quando a pálida luz d’aurora ainda mal fazia a sua aparição, já minha mãe me arrancava aos braços de “Morfeu” onde eu na véspera, prometera a pés juntos não mergulhar.

Chegara enfim o grande dia. O dia do acontecimento mais relevante dos meus franzinos dez anos. Ia, enfim, fazer o meu exame da 4ª classe a Mirandela.

Mirandela!!!!!!!! Uma Vila que eu só conhecia em sonhos, ou de ouvir falar. A azáfama dos últimos preparativos e conselhos dos familiares orgulhosos, as últimas recomendações da senhora D. Ermelinda Rafael, minha professora e irmã do ilustre médico Dr. Mário Rafael, tinham feito com que adormecesse mais tarde e àquela hora, francamente, não me apetecia nada levantar.

- Anda filha que são horas: já tens o caldo na malga. Põe-te a dormir e depois come do sono. Olha que o exame não espera por ti e temos muito que palmilhar. Se tínhamos! É que dos Avidagos, minha terra, até Mirandela são cerca de 24 km os quais tínhamos que fazer a pé:

-Porquê? Pela simples razão de não haver dinheiro para a Camioneta, ida e volta, para a chita do vestido novo que a minha tia Mariana me fez, para os sapatos comprados para a ocasião, para pagar a Pensão onde teria que ficar, etc. Os meus pais para suprir as despesas mais prementes, tiveram que segar manual e prematuramente duas jeiras de trigo e vender o grão ao senhor Regedor.

O sacrifício foi enorme, mas o orgulho de ter uma filha que ia fazer o exame da 4ª classe quando ainda não era obrigatório, compensava-os plenamente.

Engoli o caldo á pressa e pusemo-nos a caminho eu e minha mãe. As nossas socas brochadas faziam barulho nas pedras do caminho quebrando o silêncio matinal. De vez em quando sacudia uma ruga, imaginária, do vestido novo. Por vezes, levava a mão á cabeça a ver se a fita cor-de-rosa que a minha avó materna me oferecera para a ocasião, ainda lá estava. Querida avó! Tinha vindo das Varges aos Avidagos a pé só para me presentear com a fita. Ela queria que a sua neta, fosse a mais bonita de todas. Não estou bem certa, mas penso que a distancia por ela percorrida por caminhos tortuosos, devia rondar os nove ou dez quilómetros, senão mais.

Comecei a tomar noção da responsabilidade em não defraudar, com um chumbo, as expectativas e esperanças que os familiares em mim depositavam.

-Ó mãe ainda falta muito?

-Não, é já ali.

Relógio? Que é dele. Isso era um luxo dos ricos, mas pelas minhas contas, havia mais de duas horas que a minha mãe dizia, é já ali. Eu nunca antes tinha feito uma caminhada daquela envergadura. As minhas fracas pernas, começavam já a acusar o cansaço. Sem querer, invejava os meus cinco irmãos mais novos que haviam ficado no aconchego da cama. O sol começava a despontar no horizonte cobrindo as já louras searas de trigo e centeio que ondulavam com a fresca brisa matinal como se fosse um mar gigantesco de ouro salpicado de papoilas vermelhas mais fulgurantes que rubis. As cotovias, melros, rolas e picanços, saudavam o astro-rei com os seus melodiosos gorjeios, num agradecimento á mãe natureza o fausto banquete que esta pusera á sua disposição e das respectivas proles. De vez em quando, uma lagartixa espreitava por entre as pedras do caminho, curiosa com o sincronizado das nossas socas, trepa que trepa. Ao longe, um ou outro rancho de segadores começava o seu árduo trabalho com os rins dobrados sobre as searas que as seitouras iam dizimando. De repente um frémito de alegria percorreu o meu já cansado corpito ao avistar uma povoação. Aligeirei o passo e pergunte

-Ó mãe, ali já é Mirandela?

-Daqui lá não me doa a mim a barriga, respondeu a minha mãe já agastada de tantas vezes responder, á contínua pergunta de, ainda falta muito?

-Ali são as Lamas, falta quase outro tanto para chegar a Mirandela e temos que andar mais depressa para estar lá ás nove horas senão, não fazes o exame.

Prossegui calada deitando um olhar de esguelha á saquita que a minha mãe levava á cabeça onde a par dos livros e da merenda, iam os sapatos novos que só calçaria á entrada da Vila para fazer jus ao rifão. Menina da aldeia, á entrada da Vila calça a meia A malga do caldo de cebola? Onde é que ela já ia.

Reparando nas minhas espiadelas á saquita e como caminhássemos ao longo de uma parede que circundava uma horta, a minha mãe disse:

- Sentemo-nos só um cibinho para comer que depois já temos força para andar mais depressa. Ó que mágicas palavras para os meus ouvidos. Levantei o vestido quase até á cabeça para não o sujar ou enrugar na parede de xisto, e á fatia de pão centeio, que minha mãe cozera na véspera, e ao punhado de figos secos, foi um ar que lhe deu.

Reconfortada com a frugal refeição e com cinco minutos de descanso, pusemo-nos novamente a caminho. De súbito ouvi o trotar de uma cavalgadura atrás de nós. Voltei-me devagar e disse:

-Ó mãe, vem ali o ti João Vinhais com o filho a cavalo no macho. Na verdade, não era meu tio, mas na minha aldeia, os mais novos tratavam os mais velhos por tios e tias.

-Bom dia senhora Adelina! Madrugaram!

-Bom dia senhor João, que remédio!

Deixei de ouvir o resto dos cumprimentos e concentrei-me no Francisco Vinhais, um rapaz da minha idade e que todo janota em cima do anafado macho também ia fazer exame. Eu bem me saracoteava para ver se o Xico olhava para o meu vestido novo e para o laço que me prendia os curtos cabelos mas o Xico não reparava e eu saltitando, quase me punha á frente do macho. Ó! Vaidade feminina, que tão precocemente te manifestas em futilidades. O ti João vendo os olhares constantes que eu deitava aos cavaleiros e atribuindo-o ao meu cansaço, apeou-se e disse:

-Monta no macho enquanto vou um bocado a pé para esticar as pernas.

-Obrigada senhor João, disse minha mãe: Ela só já ia a ganir que lhe doíam as pernas

-E tem razão, com o estiraço que já fizeram não é para admirar.

Ele mesmo, pegou nos meus vinte e cinco quilos e pô-los em cima do macho. Nunca lhe agradeci o gesto nobre e bondoso que tomou naquela ocasião. Hoje ainda me pergunto se chegaria a tempo do bendito exame sem a sua intervenção. De vez em quando eu, com pouca vontade, ainda lhe dizia:

Ó ti João, quer montar que eu desço?

-Deixa-te ir que vais bem.

O Xico repontava; ó pai, ela não vai quieta com os ovos daqui a pouco caímos os dois.

O que o Xico nunca soube, é que para não amarrotar o vestido, eu estava sempre a puxa-lo debaixo do assento desequilibrando-me.

Por fim, chegamos á entrada da ponte. Já se avistava a Vila de onde sobressaía a então famosa Casa Verde. Depois de deixar o macho entregue a uma pessoa conhecida, o ti João cheio de paciência, esperou que eu calçasse os meus sapatos novos, dois números acima do tamanho indicado para me servirem daí a muito tempo, e começamos a atravessar a ponte, a caminho da escola onde iam ter lugar os exames.

-Ó mãe, deixe-me ir ali a Senhora do Amparo fazer uma promessa para eu ficar bem no exame

-A promessa, dou-ta eu. Se ficares mal, á vinda para cá atiro-te da Ponte abaixo.

-Ó senhora Adelina!.......Disse o ti João apaziguador: Não diga isso á rapariga, que ela pode-se enervar e fazer mal a prova.

-Eu cá sei as linhas com que me coso, isto é falar por falar.

Só alguns anos depois é que me apercebi que a minha pobre e querida mãe ia mais nervosa que eu, e que os meus pais, tinham sido criticados por fazer tantos sacrifícios para que eu pudesse fazer a 4ª classe. Se ainda fosse um rapaz, vá lá, que sempre fazia falta para arranjar um emprego! Agora uma rapariga pobre para que é que queria o exame? Melhor me mandassem ir servir para aprender a ser uma mulher como devia de ser. Isto, diziam aquelas senhorecas de meia tigela que mal sabiam assinar os próprios nomes, e que queriam quem as servisse a troco dos restos da comida que deixavam nos pratos. As “comadres” que as há em todas as aldeias e não só, essas diziam que parecia mal uma rapariga sozinha no meio de quatro rapazes propostos a exame, e outras coisas no género próprias dos meios rurais. Mas a minha ânsia de aprender aliada à boa compreensão de meus pais tudo superaram; o compreensível receio da minha mãe, era que eu ficasse reprovada e depois ter de ouvir as línguas viperinas a rirem-se de nós depois de tantos sacrifícios.

Por meu lado, estava consciente que a oportunidade se não repetiria mas tinha a certeza de estar bem preparada. Graças á minha boa Professora que sem esperar qualquer recompensa além da gratidão, depois das horas de aula oficiais, dava-nos em casa dela mais umas horas de explicações todos os dias. Nunca até essa altura, ela tivera um aluno seu reprovado; e essa era a sua gratificação interior. A meu ver, bem mais valiosa do que se recebesse algumas “luvas” coisa de que nunca houve conhecimento. Nos tempos que correm pode dizer-se que era um exemplo raro de dedicação ao ensino.

Chegamos á Escola dos exames um pouco cedo, mesmo assim já lá estavam algumas dezenas de alunos. Com olhar de lince vislumbrei a nossa Professora e dirigimo-nos para junto dela. Depois dos cumprimentos devidos, perguntei se os restantes rapazes já tinham chegado.

-Ainda os não vi e já estou a ficar preocupada. É que depois da sala de aula fechada para a prova escrita, não entra mais ninguém. De repente, o Francisco Vinhais, aqui já não era Xico, porque a Professora exigia que todos nos tratássemos pelos nomes próprios em vez das usuais alcunhas disse:

-Ali vêm eles.

De facto, o Casimiro, O Viriato, e o Luís Filipe, parecendo os três da vida airada, depressa chegaram junto de nós. Depois das últimas recomendações, e com uma disposição parecida à de quem vai para a guilhotina, entramos para dar início á Prova Escrita. Na Sala repleta de alunos de todas as Aldeias do Concelho, o silêncio era sepulcral. Só se ouvia o raspar dos aparos das canetas de pau, molhadas nos tinteiros brancos, no papel.

Ditado, Problemas, Contas, Redacção, etc., tudo seguia os seus trâmites sincronizados. Os pais ou acompanhantes, esperavam do lado de fora, quem sabe, pedindo a Deus para que nenhum dos seus fosse reprovado. Após três longas horas, abriram-se finalmente as portas e em silêncio, todos esperavam sofregamente os resultados. Ninguém arredava pé. Mais algum tempo e eis que os almejados resultados eram afixados. Começaram os empurrões, o esticar de pescoços, o por em bicos de pés a ver quem primeiro chegava junto dos resultados. A minha mãe teve que pegar-me ao colo para eu ver o meu resultado uma vez que ela não sabia ler e sendo eu tão pequenina, corria o risco de ser esmagada pelos mais matulões ou pelos adultos. Depois de muitos encontrões e pedidos de desculpas, lá chegamos aos famigerados resultados. Olhei atentamente e ao descortinar o meu nome, gritei:

-Mãe!... Fiquei bem! Ela ergueu-me bem nos braços e disse:

-Vê bem filha, não te enganes.

Tornei a olhar e confirmei. Fiquei bem, mãe, é verdade.

Quando me poisou no chão, fiquei como que petrificada ao ver rolar as lágrimas pela face de minha mãe. Intrigada, perguntei:

-Então a mãe está a chorar porque eu fiquei bem?

-Ó filha, não. Tu não sabes que também se chora de alegria? Pois o que eu sinto agora, é uma alegria enorme como há muito tempo eu não sentia. Deus te abençoe.

Entretanto os quatro rapazes, com um sorriso de orelha a orelha, davam também a boa nova. A nossa Professora que se associava á nossa alegria, lembrou.

-Agora toca a ir comer e descansar para estarem fresquinhos para a Prova Oral que é amanhã á tarde.

Não sei onde os outros se hospedaram, quanto a mim, a minha mãe levou-me a uma Pensão pequena, tipo familiar, que embora retenha o seu interior na memória, não fixei o nome da rua onde a mesma se situava. Levava vinte escudos por dia, com direito a três refeições e dormida. A minha mãe pagou o estipulado e preparou-se para o regresso a casa pelo mesmo caminho.

-Então a mãe não come aqui?

-Não, come tu que eu como o resto da merenda pelo caminho. Tenho que ir fazer o caldo para o teu pai e para os teus irmãos mas amanhã cá estarei para assistir á Prova Oral. Entretanto a senhora da Pensão já trazia para a mesa, uma fumegante travessa de batatas cozidas com congro. Lembro-me como se fosse ontem. Comi que me fartei. Á noite, fui para um grande quarto onde estavam duas camas e dois colchões no chão. A mim, calhou-me um dos últimos. Entraram depois uma senhora e duas meninas que rondavam a minha idade pelo que o motivo devia ser o mesmo. Aldeãs para exame. Apoderando-se cada qual do respectivo lugar. Em menos de um credo, já eu dormia o sono dos justos sem sentir as dores das bolhas que os sapatos me haviam feito nos calcanhares. Quando acordei na manhã seguinte, o quarto estava já vazio e arrumado. Ao dirigir-me á casa de banho, vi num relógio de parede que já eram onze horas. Depois do almoço, furtei um guardanapo da mesa, e fui para o quarto puxar o lustro aos sapatos com ele atirando-o depois para debaixo de uma cama. Pedi para me arranjarem o laço do cabelo e toda prosmeira, fui ter com a senhora dona Ermelinda que já me esperava á porta para me acompanhar ao local das Provas Orais. Reparou a Professora que eu andava devagar e com passo inseguro, como quem pisa ovos.

-Que é que tens rapariga? Vais com medo ou fizeste xixi na cama?

-Não minha Senhora, foram os sapatos que ontem me fizeram bolhas. Se calhar, vou-me descalçar.

-Nem penses, quero lá agora uma aluna minha descalça no exame. Calça as socas.

-Não as tenho cá, a minha mãe levou-as.

Ao cabo de uns minutos que me pareceram séculos devido ás dores, lá chegamos ao local. Já estava o que me parecia a mim, um mar de gente junto da Escola, para assistir ás Provas Orais. Naquela época, mesmo quem não tinha familiares a fazer exame, gostava de assistir ás Provas Orais para ver as habilidades dos alunos conhecidos e não só.

Como não descortinasse a minha mãe em parte alguma, trepei ao muro para ver melhor em todas as direcções. Que grande desilusão! Não estava em parte alguma. De certo não pode vir. Era tão longe! Ainda na véspera fizera a pé o caminho de regresso, e com certeza não aguentara outra viagem.

Envolta nos meus pensamentos, nem me dera conta de que já todos tinham entrado.

A sala estava cheia até à porta. Saltei o muro e precipitei-me para a entrada onde algumas pessoas não me queriam deixar entrar.

Que queres tu daqui? Não vês que não podes entrar? Vai brincar para a rua.

-Mas eu vou fazer exame, respondia em altos gritos. As pessoas olhavam para o meu corpo franzino, que não aparentava mais que seis anos, e riam-se.

Chô: - Cresce e aparece.

No meu desespero comecei a distribuir pontapés a torto e a direito, e furando por baixo da amálgama de pernas que vedavam a entrada da sala de Aulas, lá consegui chegar ao meu lugar. Mesmo a tempo… Estavam a chamar pelo meu nome.

Muito esbaforida, com os livros a monte dentro da saquita e toda despenteada, devido à entrada forçada, encaminhei-me para a mesa do Júri. Por instantes, esqueci a minha mãe, e concentrei-me na enorme responsabilidade do momento.

-Abre o livro de leitura.

Fiz o que me era mandado. O livro abriu-se na Lenda da Laranjeira de Santa Isabel. Li com gosto e com voz bem timbrada, era uma das minhas lições preferidas. Até ali, tudo bem

-Vamos à História.

Mentalmente, pedia a Deus que me fizessem perguntas sobre D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil que me fascinava e do qual eu sabia tudo de cor e salteado como se costuma dizer. Calhou-me em sorte D. Dinis. Parecia de propósito, era o rei de quem eu menos gostava.

-Que cognome teve el-rei D. Dinis?

Mas porque cargas de água me haviam de fazer perguntas sobre um homem, mesmo sendo Rei, que era mau para a Rainha Santa? Na minha fértil imaginação, um homem que proibia a Rainha de dar esmolas aos pobres a ponto de ela ter de invocar a protecção divina para que o pão que levava no regaço, se transformasse em rosas, não podia ser boa pessoa. Se eu mandasse, que é o que aqueles que não mandam pensam, se eu mandasse, esse Rei não entrava para a História.

Fez-se silêncio na sala. De novo a pergunta era repetida.

-Então, não sabes?

-Não sei o quê? Perguntei como se tivesse chegado de longínquas paragens.

-Que cognome tinha el-rei D. Dinis

-Sei sim minha senhora, era o Lavrador. E antes que perguntassem mais alguma coisa, comecei a desenvolver o tema ainda mais do que seria preciso. Que tinha reestruturado a agricultura, que mandara plantar o pinhal de Leiria e tudo mais que lhe dizia respeito.

-Então se sabes tudo tão bem, porque não respondias?

-Porque não gosto dele.

-E pode-se saber porquê?

Expliquei as minhas razões acima citadas. Gargalhada geral na sala.

- Silêncio se fazem favor, pediu um professor que de imediato me chamou para avaliar os meus conhecimentos de Geografia.

-Ora vamos lá a apontar aqui no Mapa, o rio Douro e seus afluentes.

Depois de satisfeito com as minhas respostas, levou-me ao Mapa cor-de- rosa.

-Agora diz-me: estamos em Mirandela, queremos ir para Luanda, como fazemos?

-Resposta pronta, não podemos.

-Não podemos porquê?

Porque aqui não há mar e tínhamos que ir primeiro para o Porto ou Lisboa.

Novas gargalhadas na sala.

-Silêncio por favor, senão mando evacuar a sala.

-Então explica-me como poderemos ir para Lisboa.

- Com o dedo, lá apontei no Mapa o percurso dos Caminhos – de - Ferro que nos levaria ao cais da Capital para apanhar o barco que nos levaria a Luanda.

-No Mapa cor-de-rosa, também não me saí mal bem como em Ciências Naturais.

-Podes ir para o teu lugar, e fazer o teu trabalho manual.

Ao voltar-me, vi minha mãe ao fundo da sala, sentada numa cadeira. As mãos postas, como se estivesse rezando e com lágrimas que se assemelhavam a pérolas, deslizando pela face, precocemente enrugada devido ás agruras da vida, mais se assemelhava a uma santa de altar. Afinal, ela estivera ali desde o início, enquanto eu cá fora tentava localizá-la.

Como tivesse chegado muito cansada de tanto andar a pé, pedira para a deixarem entrar mais cedo a fim de arranjar lugar sentada. Fiquei feliz por vê-la.

Fui para o meu lugar e peguei na meia de renda de cinco agulhas. Era o meu trabalho manual. A mãe da minha professora é que me ensinara a fazer aqueles arabescos complicados, mas de um efeito espectacular.

Muito embrenhada na minha tarefa sobressaltei-me ao ouvir a voz da Professora encarregada da avaliação dos Trabalhos Manuais.

-Muito bem, mas que meias tão bonitas que estás a fazer.

-A senhora gosta?

-Gosto sim.

-Então quando as acabar, eu mando-lhas.

-Ficaria muito contente.

Nunca cumpri a promessa. Primeiro, porque não sabia a direcção da simpática Professora. Depois, parece-me que nunca cheguei a acabar as meias.

-Acabaram os exames, podem sair:

Um suspiro de alívio percorreu toda a sala. Já no recinto da Escola, encontrei minha mãe que conversava com um senhor, que ao ver-me fez sinal para me aproximar, o que fiz de imediato, embora um pouco intimidada com a elegância e a respeitabilidade que emanava daquela figura, que me parecia austera. Interroguei-o com o olhar.

-Parabéns pelo seu excelente desempenho disse: Acto contínuo, meteu-me na mão cinco escudos que desapareceram para dentro da saquita dos livros em menos tempo que o diabo esfrega um olho.

-Estava aqui a dizer á senhora sua mãe que se fosse um rapaz, eu encarregar-me-ia de lhe custear os estudos. Sendo uma menina, não poderei fazê-lo porque a responsabilidade a longo prazo, seria enorme.

-Obrigada pelo grande favor, disse mordaz, e voltei-lhe as costas com vontade de arrancar-lhe a gravata, que devia ser de seda, e fazer-lha engolir juntamente com o que acabara de dizer.

-Mãe, vamos embora.

-Não sejas mal-educada, vem pedir desculpa ao senhor doutor.

-Desculpa, porquê? De não ter nascido rapaz para lhe fazer a vontade? Sou por acaso culpada de ter nascido rapariga? Sufoquei na alma um grito de raiva e impotência, que as lágrimas não deixavam de todo esconder.

Nunca tinha sido tão humilhada. Primeiro, porque me tratou por senhora e na minha idade, isso era uma ofensa para mim. Depois, parecia que me estava a acusar por eu não ter nascido rapaz. Na boca das ignorantes “comadres”, não era de admirar o dizerem que a um rapaz nada se lhe pega e que nunca aparecia prenho em casa; agora que um senhor doutor pensasse da mesma maneira, era inadmissível.

Posteriormente, vim a saber que o senhor em questão, sendo rico e sua mulher não lhe podendo dar filhos, já havia custeado os estudos a três rapazes de poucos recursos; mas a sua filantropia e altruísmo não se estendia ao sexo feminino.

-Mãe! Vamos embora que se faz tarde e chegamos a casa já de noite.

-Trouxe as minhas socas?

-Eu não! Então não queres os sapatos? Andavas toda encha com eles!

-Pois, mas fizeram-me bolhas e não os aguento. Vou descalça.

-Tu hoje ainda ficas na Pensão que já está paga e amanhã, vais na Camioneta da Carreira até ao entroncamento, que de lá até casa são só três km e o teu irmão estará lá á tua espera. Eu é que me vou já embora a ver se ainda chego a casa antes do anoitecer. Toma lá o dinheiro para a Camioneta; agora perde-o.

Deu-me o dinheiro certo, sem fazer alusão aos cinco escudos que o tal senhor doutor me dera. Se calhar nem os viu, pensei eu.

Ainda ela mal tinha voltado as costas, já os sapatos estavam na saquita misturados com os livros. Descalça, percorri grande parte da Vila embasbacando-me diante das montras. Nunca vira coisas tão bonitas! E depois, a alegria de saber que no dia seguinte ia andar da Camioneta, era o culminar da suprema magia. Eu, como a maior parte das minhas amigas, nunca tinha-mos posto os pés dentro de um carro; quando eu lhes contasse a aventura, iam-se roer de inveja. De repente, ali perto do Mercado, estava na montra de um estabelecimento uma boneca com um vestido quase igual ao meu. Não é que ela parecia que se estava a rir para mim? Os cinco escudos dentro da saquita começaram a pesar como chumbo. Muito hesitante, e olhando para todos os lados, entrei e perguntei o preço.

-Quatro e quinhentos, respondeu a senhora atrás do balcão.

Nem me dei ao trabalho de regatear, depositei o dinheiro no balcão e esperei que a boneca viesse aos meus braços.

-Queres que embrulhe?

-Não é preciso, obrigada. Ia a sair disparada quando a senhora me chamou.

-Toma lá o troco rapariga, olha que a boneca não foge.

Saí dali direita á Pensão que parecia um foguete. Era a minha primeira boneca a sério. Sá as havia tido de trapos, confeccionadas por mim. Não mais a larguei e será escusado acrescentar que dormiu comigo.

Na Camioneta de regresso a casa, mil sensações estranhas me assaltavam. A paisagem vista de cima, parecia irreal. Era a Camioneta que estava sempre parada, ou eram as serras, árvores e casas tudo a andar para trás? Passados os primeiros minutos de novidade embriagadora, voltei a pensar no que a viagem e a boneca me fizera esquecer.

Se fosse rapaz!...Se fosse rapaz!...Se fosse rapaz!...Malditas palavras; haviam-se cravado na minha alma como uma ventosa de onde não conseguia arrancá-las. E eu que ainda fora comprar a boneca com o dinheiro de quem se me estava a tornar odioso. Se a janela estivesse aberta, atirava a boneca por ela fora. Se fosse rapaz!...Se fosse rapaz!...

Comecei a chorar. Ia sentada a meu lado uma Freira que se dirigia ao então asilo para meninas pobres de Pereira, que ficava a um km mais ou menos dos Avidagos que ao ver-me chorar perguntou:

-Tu que tens minha filha? Reprovas-te no exame?

Não Irmã.

-Então, se ficas-te bem e ganhas-te essa boneca tão bonita, porquê essas lágrimas?

Limpei as lágrimas ao lenço de cinco pontas e disse:

-É precisamente por causa da boneca. Estava quase a contar-lhe a verdade, quando “tardiamente” me lembrei do meu egoísmo. Gastei o dinheiro que tinha na compra da boneca e não me lembrei de comprar nada para os meus irmãos e fiz um ar de Madalena arrependida.

-Quantos irmãos tens?

-Cinco, e todos mais novos que eu.

A Freira, meteu a mão numa maleta e deu-me um bom punhado de rebuçados e bombons:

-Toma lá, divide p’los teus irmãos.

-Muito obrigada minha santa. Ela sorriu. Um sorriso tão angélico que não voltei a ver outro igual.

Já a pé, a caminho de casa, parei nas duas capelinhas que ficam de um e outro lado da estrada no cruzamento que vai para Pereira, um km antes dos Avidagos, para com uma pequena oração, agradecer o resultado do exame.

Quando cheguei a casa, estava reunida toda a parentela mais chegada, para me felicitar e participar numa refeição melhorada para a qual tinham sido sacrificadas duas das melhores galinhas.

Passados os primeiros momentos de euforia, a minha mãe começou a relatar toda orgulhosa, as peripécias do exame. Olhem que até os professores estavam admirados com ela. E como todas as mães, até exagerava nos elogios perante as pessoas presentes: quando acabou o exame, até um senhor Doutor, blá, blá, blá

-Era demais. Levantei-me da mesa para não ouvir novamente as palavras que me estigmatizaram ao longo da vida!...Se fosse rapaz!...Se fosse; Outra vez não, por amor de Deus.

Dei a boneca á minha irmã mais nova que delirou com o presente, impondo-lhe como condição, de que nunca brincasse com ela á minha frente senão eu queimava-lha.

Não sei se a minha mãe se apercebeu do meu drama íntimo, quero querer que sim, mas nunca mais tocou no assunto.

Já se passaram muitos anos, mas se Freud ainda vivesse, de certeza que eu desmentiria uma das suas teorias da “Mente”. É que as meninas, segundo ele, não desejam secretamente ser rapazes por no subconsciente terem inveja do pénis, mas sim, por terem inveja da liberdade que os rapazes têm.

Felizmente que as mentalidades no que respeita a sexos opostos está a mudar, ainda que a passo de caracol.

As condições de vida também melhoraram. Os alunos, já não têm que percorrer a pé vários km, sujeitos aos rigores do Inverno ou ao sol escaldante do Verão para irem para a Escola como iam os do Carvalhal, Palorca etc. que por caminhos de cabras faziam diariamente esse percurso para virem para os Avidagos. Segundo as estatísticas, o número de estudantes do sexo feminino, já ultrapassa o masculino. Fico feliz por poderem usufruir de algumas oportunidades que me foram negadas. No entanto, uma pergunta se impõe. Porquê tanto insucesso escolar? O que é que está mal? De quem é a culpa?

Por mais que me esforce, não consigo descortinar respostas adequadas, e julgo que a maioria dos portugueses também não.

Será que fazem falta, umas tantas Donas Ermelindas Rafaéis para se orgulharem de nunca terem um aluno seu reprovado? Que incutia nos alunos o gosto pelos estudos, sacrificando tantas vezes a sua vida pessoal, para se dedicar inteiramente á nobre arte de ensinar? Pode ser uma das causas, mas de certeza que não é a única. Haverá alguém que sem se escudar nos meandros políticos tenha as respostas?

Uma coisa é certa. Há que fazer algo urgentemente para mudar este estado de coisas, nem que para isso se tenham que criar prémios especiais para os mais aplicados.

Se nada for feito, corremos o risco dos homens e mulheres de amanhã, nos acusarem da incúria de hoje.

Graziela Vieira

Abril de 2000

Foto de Maria Goreti

A HISTÓRIA DE ANA E JOAQUIM – UM CONTO DE NATAL.

Chamavam-no “Lobo Mau”. Era sisudo, magro, alto, olhos negros e grandes, nariz adunco, cabelos e barba desgrenhados, unhas grandes e sujas. Gostava da solidão e tinha como único companheiro um cão imundo a quem chamavam “o Pulguento”. Ninguém sabia, ao certo, onde morava. Sabia-se apenas que ele gostava de andar à noitinha, sob o clarão da lua.

Ana, uma pobre viúva, e sua filha Maria não o conheciam, mas tinham muito medo das estórias que contavam a respeito daquele homem.

Num belo dia de sol, estava Ana a lavar roupas à beira do riacho. Maria brincava com sua boneca. Eis que, de repente, ouviu-se um estrondo. O céu encobriu-se de nuvens escuras. O dia, antes claro, tornou-se negro como a noite. Raios cortavam o céu. Ana tomou Maria pela mão e correu em direção à sua casa. Maria, no entanto, fazia força para o lado oposto. Queria resgatar a boneca que ficara no chão. Tanto forçou que se soltou da mão de Ana e foi arrastada pela enxurrada para dentro do riacho. Desesperada, Ana lança-se nas águas na vã esperança de salvar a filha. Seu vestido ficara preso a um galho de árvore e ela escapara, milagrosamente, da fúria das águas. Desolada, decidiu voltar para casa, mas antes parou na igreja. Ajoelhou-se e implorou a Deus que lhe tirasse a vida, já que não teria coragem de fazê-lo, por si. Vencida pelo cansaço adormeceu e só acordou ao amanhecer. Ana olhou em derredor e viu a imagem do Cristo pregado na cruz. Logo abaixo, ao pé do altar, estava montado um presépio. Observou a representação da Sagrada Família: Maria, José e o Menino Jesus. Pensou na família que um dia tivera e que não mais existia. Olhou para o Menino no presépio e depois tornou a olhar para o Cristo crucificado. Pensou no sofrimento de Maria, Mãe de Jesus, ao ver seu filho na cruz. Ana pediu perdão a Deus e prometeu não mais chorar. Ela não estava triste, sentia-se morta. Sim, morta em vida.

Voltou à beira do riacho. Não encontrou a filha, mas a boneca estava lá, coberta de lama. Ana desenterrou-a, tomou-a em suas mãos e ali mesmo, no riacho, lavou-a. Depois seguiu para casa com a boneca na mão. Haveria de guardá-la para sempre como lembrança de sua pequena Maria.

Ao chegar em casa Ana encontrou a porta entreaberta. Na sala, deitado sobre o tapete, havia um cão. Sentado no sofá um homem magro, alto, olhos negros e grandes, nariz adunco, cabelos e barba longos e lisos, unhas grandes. Ana assustou-se, afinal, quem era aquele homem sentado no sofá de sua sala? Como ele conseguira entrar ali?

Era um homem sério, porém simpático e falante. Foi logo se apresentando.

- Bom dia, dona Ana! Chamo-me Joaquim, mas as pessoas chamam-me “Lobo Mau”. Mas não tema. Sou apenas um homem solitário. Sou viúvo. Minha mulher, com quem tive dois filhos, Clara e Francisco, morreu há dez anos e os meninos... Seus olhos encheram-se de lágrimas. Este cão é o meu único amigo.

Ana, muito abatida, limitou-se a ouvir o que aquele homem dizia. Ele prosseguiu:

- Há muito tempo venho observando a senhora e o zelo com que cuida de sua menina.

Ao ouvir falar na filha, os olhos de Ana encheram-se de lágrimas. Lembrou-se da promessa que fizera antes de sair da igreja e não chorou; apenas abraçou a boneca com força. Joaquim continuou seu discurso:

- Ontem eu estava escondido observando-as perto do riacho, quando começou o temporal. Presenciei o ocorrido. Vi quando a senhora atirou-se na água, mas eu estava do outro lado, distante demais para detê-la. Também não sei se conseguiria. Pude sentir a presença divina naquele galho de árvore na beira do riacho. Quis segui-la, mas seria mais um a nadar contra a correnteza. Assim que cessou a tempestade vim para cá, porém não a encontrei. Queria lhe dizer o quanto estou orgulhoso da senhora e trazer-lhe o meu presente de Natal!

Ana ergueu os olhos e comentou:

- Prometi ao Senhor, meu Deus, não mais chorar. Mas o Natal... Não sei... Não gosto do Natal. Por duas vezes passei pela mesma situação. Por duas vezes perdi pessoas amadas, nesta mesma data.

Joaquim retrucou:

- Senhora, a menina está viva! Ela está lá dentro, no quarto. Estava muito assustada. Só há pouco consegui fazê-la dormir. Ela é o presente que lhe trago no dia de hoje.

Ana correu para o quarto, ajoelhou-se aos pés da cama de Maria, pôs-se em oração. Agradeceu a Deus aquele milagre de Natal. Colocou a boneca ao lado de sua filhinha e voltou para a sala. O homem não estava mais lá.

Um carro parou na porta da casa de Ana. Marta, sua irmã, chegou acompanhada de um jovem casal – Clara e Francisco, de quinze e treze anos, respectivamente. Alheios ao acontecido na véspera, traziam presentes e alguns pratos prontos para a ceia.

Ana saiu para recebê-los e viu o homem se afastando. Chamou-o pelo nome.

- Joaquim, espera. Venha cear conosco esta noite. Dá-nos mais esta alegria.

Joaquim não respondeu e se foi.

Quando veio a noite o céu estava estrelado, a lua brilhava como nunca!
Ana, Marta, Clara e Francisco foram à igreja. Ao retornarem a porta estava entreaberta. No sofá da sala um homem alto, magro, olhos negros e grandes, nariz adunco, sorridente, cabelos curtos e barba bem feita, unhas aparadas e limpas. Não gostava da solidão e trazia consigo um companheiro - um cão branquinho, limpo, chamado Noel.
Antes que Ana pudesse dizer alguma coisa ele disse:

- Aceitei o convite e vim participar da ceia e comemorar o Natal em família. Há muitos anos não sei o que é ter família.

Com os olhos marejados, Joaquim começou a contar a sua história.

- Eram 23 de dezembro. Minha mulher e eu saímos para comprar brinquedos para colocarmos aos pés da árvore de Natal. As crianças ficaram em casa. Ao voltarmos não as encontramos. Buscamos por todos os lugares. Passados dois dias meu cachorro encontrou suas roupinhas à beira do riacho. Minha mulher ficou doente. Morreu de paixão. A partir do acontecido, volto ao riacho diariamente para rezar por minhas crianças. Ontem, mais um 23 de dezembro, vi sua menina cair no riacho e, logo depois, a senhora. Fiquei desesperado. Mais uma vez meu “Pulguento” estava lá. E foi com sua ajuda que consegui tirar sua filhinha da água e trazê-la para cá.

Clara e Francisco se olharam, olharam para Marta e para Ana. Deram-se as mãos enquanto observavam o desconhecido.

- Joaquim, ouça, disse-lhe Ana. Há dez anos, meu marido e eu estávamos sentados à beira do riacho. Eu estava grávida de Maria. Eu estava com os pés dentro d’água e ele estava deitado com a cabeça em meu colo. De repente ouvimos um barulho, seguido de outro. Meu marido levantou-se e viu duas crianças sendo levadas pela correnteza. Ele conseguiu salvá-las, mas não conseguiu salvar a si. Entrei em estado de choque. Fiquei sabendo, mais tarde, do que havia acontecido por intermédio de minha irmã, que mora na cidade. Foi ela quem cuidou das crianças. Não sabíamos quem eram, nem quem eram os seus pais.

Aproximando-se, apresentou Marta e os dois jovens a Joaquim.

- Joaquim! Esta é Marta, minha irmã. Estes, Clara e Francisco.

Ana e Joaquim olharam-se profundamente. Não havia mais nada a ser dito. Seus olhos brilhavam de surpresa e contentamento.

Maria brincava com sua boneca e com seu novo amiguinho Noel. E todos cantaram a canção “Noite Feliz”, tendo como orquestra o som do riacho e o canto dos grilos e sapos.

Joaquim, Ana e Maria formaram uma nova família. Clara e Francisco voltaram com Marta para cidade por causa dos estudos, mas sempre que podiam vinham visitar o pai.
Joaquim reconquistara sua fama de homem de bem.

O povo da região nunca mais ouviu falar do “Lobo Mau” e do seu cachorro “Pulguento”.

Autor: Maria Goreti Rocha
Vila Velha/ES – 23/12/07

Foto de Lou Poulit

O PORCO-ESPINHO DE ESTIMAÇÃO

CONTO: O PORCO-ESPINHO DE ESTIMAÇÃO

Plac, plac, plac... plac-plac... O relógio antigo pendurado na parede encardida do escritório sequer fazia o tic-tac comum e implacável, com o que qualquer relógio de corda tenta destruir os nervos dos ansiosos. No entanto muito pior, era a impressão de que ele movia o ponteiro mais lentamente, à medida que se aproximava a hora de ir embora.

Plac, plac, plac... plac-plac... Era sexta-feira e fim de mês, mas o salário, que já estava no bolso do Filé, não pagaria as dívidas, nem mesmo todas as despesas normais do mês. Por que então não gastar uma parte, para se divertir um pouco? Depois de um mês inteiro catando milho naquela máquina, datilografando guias carbonadas nas quais era proibido haver uma rasura sequer, isso parecia muito justo. Só que era preciso esperar o maldito relógio apontar a hora de parar.

O Filé, como era amigavelmente tratado no trabalho, era um homem infeliz porque pensava não ter expectativas para a sua vida. Pegar o trem de volta para casa era uma alternativa absurdamente sem graça. Fizera isso o mês inteiro. O cardápio seria o mesmo, assim como as cobranças do senhorio e da mercearia. E da sua mulher, com o sorriso escasseado pela vida dura e fartos depósitos de gordura pelo corpo, ele não poderia esperar nem um lapso de desejo, felizmente. Naquela sexta-feira, pensar em fazer sexo com sua mulher era impensavelmente proibido. Durante o mês inteiro ela o proibira disso e daquilo. Agora era a sua vez de mostrar que também tinha o poder de proibir. Ao menos isso.

Não. Não e não. Naquela noite, assim que o miserável relógio se dignasse a apontar o fim do expediente, ele sairia sem rumo e sem destino. Queria ser o que todo mundo parecia se orgulhar de ser: um cidadão comum, numa cidade comum, sob regime capitalista comum, sem que tivesse que fazer para isso algum esforço incomum. Ora, só queria ter a impressão de que as notas no seu bolso, faziam dele alguém importante, ou pelo menos alguma coisa. Ansiava por julgar justificada a tortura diária de fazer aquele mesmo serviço durante o mês todo. Filé tinha sempre a sensação de ser consumido, agora queria consumir um pouquinho, ser servido, assediado para comprar algo e ter o inusitado prazer de dizer que “não, muito obrigado”, mas não por dissimulada incapacidade. Queria dizer não porque não, e pronto, já que passara o mês dizendo sim. Estava assim determinado a fazer apenas algumas das coisas que todo mundo faz naturalmente. E só poderia fazer isso naquela sexta-feira pois no sábado estaria de novo nas mãos da mesmice.

O Filé sentiu um friozinho na espinha quando o chefe passou pelas suas costas e com um tapinha no ombro autorizou o fim do serviço, segundos antes do relógio. Enfim, ali renascia o rapaz viçoso por cujo sorriso, noutros tempos completo e carnudo, a mulherada perdia a compostura. Não era rico, longe disso, mas se vestia bem e usava algumas pulseiras douradas, além de um grosso cordão, onde se via sempre uma medalha com o triângulo maçônico, cujo significado Alfredo desconhecia por completo, mas tudo fantasia. Sua aparência, somada ao sorriso de quem não tinha dívidas ou qualquer outra preocupação, era o suficiente para que conseguisse a maioria das coisas que desejava. O que na verdade não era muito, porque seus desejos tendiam a uma certa proporcionalidade, em relação à sua, digamos, sintética compreensão do mundo. Alfredo era um rapaz feliz, ironicamente, porque não tinha grandes expectativas.

Filé passou pelas portas do escritório e da entrada do prédio sem deixar de cumprimentar uma única pessoa. Já na rua, passou a se comportar como um respeitável senhor. Não quis entrar em nenhuma condução. Como ainda não sabia para onde estava indo, o melhor era andar pelas calçadas, assim poderia parar em frente às vitrines, e esperar que alguma atendente jovem e gostosa viesse lhe oferecer o seu melhor sorriso. Durante todos os demais dias do mês isso não aconteceria, a menos que estivesse no caminho de alguma daquelas evangélicas, que saem em grupo pelas ruas vendendo revistas de igreja e oferecendo a salvação das almas, ou o inverso, como acreditava o Filé. Logo uma vendedora veio de dentro da loja. Não lhe pareceu tão bonita quanto esperava, mas era razoável. A noite estava começando.

Satisfeito por não ter cedido à tentação das vendedoras que encontrou pelo caminho, que até pediram cartão de visitas e número de telefones para futuras compras, depois de percorrer quatro quarteirões encontrou uma boate do lado oposto da rua. Chegou a parar para atravessar dali mesmo, porém viu entrar e sair da casa pequenos grupos de homossexuais e decidiu que devia aplicar melhor seu rico dinheiro, tão arduamente conseguido. Voltou às vitrines. Ainda era cedo para ele, mas a maioria das lojas já estava fechando as portas. Sem problemas, disse a si mesmo, de qualquer forma não pretendia comprar coisa nenhuma. Mas se não teria mais belas e jovens atendentes para lhe sorrir na porta das lojas, então teria que procurá-las noutros lugares. Não haveria de ser tão difícil. Nos quarteirões próximos decerto as encontraria.

Logo adiante, Alfredo passou por uma bela moça, que parecia esperar pelo namorado, encostada num poste de luz. Não... Pensando bem, não podia ser isso. A mulher parecia uma vitrine ambulante. Estava vestida e postada de modo a oferecer partes suas que, pelo jeito, julgava mais ao gosto popular, e só faltava mesmo uma plaquinha em algum lugar, para indicar o que houvesse ali a preço promocional. Além do mais, estava lhe sorrindo com o mesmo ar de sem-decepções que acabara de ver nos rostos das vendedoras nas lojas. Ah, então ela está a fim de um programinha... É bonita demais – pensou – é perfeita. Nem sua mulher, quando era novinha, era tão perfeita. Ora, por que fora se lembrar dela justo agora? Era como se a lembrança da mulher, de tão concreta, lhe empurrasse pelas costas em direção à garota. Mas assim, tão bonita, com certeza lhe custaria os olhos da cara.

Ei, gostei de você... – Filé falou de mal jeito, pois já nem se lembrava direito como se fazia isso. Ela fez que não o ouviu, e ele remendou perguntando: Quanto custa o chorinho?... Para alguém que pergunta como um extra-terreno é bem mais barato – Respondeu a mulher simpaticamente, fazendo graça... Mais barato quanto?... Depende do que você quiser fazer... Como assim? Tem algum tipo de tabela de preços? – Tentando repetir seu velho e irrecusável sorriso – Tem alguma coisa em promoção?... A mulher não gostou muito, clientes que pedem promoção no início da noite são, no mínimo, idiotas. Entretanto, ela resolveu propor um preço intermediário. Derrubaria esse cliente rapidamente, pensou ela, e depois arrumaria mais dinheiro com outro. Mas como mesmo aquele preço mais barato era inviável para o Filé, ele lamentou com muita sinceridade. Quando virou as costas, ela propôs outro menor e logo um outro ainda mais barato, todos recusados. Filé a ouviu dizer a certa distância que fosse à merda, mas nem se importou. Estava dividido. Dessa vez não tinha sentido prazer em dizer que não. Aquela mulher era realmente muito bonita e ele seria capaz de uma verdadeira loucura, se fosse para tê-la só para si... Quem disse que ela aceitaria? Paciência – confortou-se – a noite é uma criança...

Filé prosseguiu em sua caminhada. Mais uma última vez olhou para trás e ela ainda estava lá, na mesma posição, no mesmo poste de luz. E para se recolocar no lugar de quem decide ele disse à meia-voz: É apenas uma puta... Havia muitas na região em que estava, uma espécie de centro com muitas casas de diversão para homens que tivessem algum dinheiro. Uma cerveja! Sim, para matar a sede que já se fazia sentir. Atravessou a rua e passou por uma vitrine redonda, engastada na parede, onde haviam fotos de streepers. Poderia entrar naquela. Eram todas mais ou menos a mesma coisa.

CAPÍTULO II

De início, o ambiente era escuro demais para que o Filé pudesse identificar o que havia dentro da boate. Mas dava pra ver onde era o balcão do bar e lá ele resolver ficar um pouco, até que sua visão se adaptasse à brusca mudança de luz. Pediu um caneco de cerveja com o tom de uma ordem, foi prontamente servido e bebeu o primeiro todo de uma só vez. Estava com sede por causa da caminhada, mas também queria impressionar. Sabia que durante alguns minutos, embora ele não pudesse observar as pessoas com muita clareza, estaria sendo observado pelas mulheres que já se encontrassem lá desde antes, à espera de um cliente. O espaço era pequeno e o condicionador de ar mantinha a temperatura mais baixa do que ele gostaria. Apontou para uma marca de conhaque que conhecia e, servido, percebeu que já era possível enxergar algumas mesas vazias. Tomou a bebida e levou outra dose para uma daquelas mesas, escolhendo a que estava mais ao canto.

Em alguns minutos já havia desprezado vários olhares. Havia ali mulheres de vários tipos, para muitos gostos, sendo naquela casa a maioria composta de mulatas bundudas. Uma das mulheres lhe chamava mais a atenção, uma loira alta e carnuda, porém ela sequer olhava pra ele. Irritado com o que lhe parecia uma falta de consideração da tal mulher, o Filé chamou uma das meninas e mandou que levasse um recado seu. Precisou esperar por longos minutos, mas enfim a mulher levantou-se e veio ao seu encontro, sentando-se no lado oposto da mesa sem cerimônias. Ao chegar trouxera o mesmo sorriso de sem-decepções e, antes que ele o perguntasse, foi logo adiantando o seu preço para o serviço mais rápido, um boquete à queima-roupa. Ele balançou a cabeça positivamente, mas começou uma conversa qualquer. Queria beber mais e ganhar tempo para criar algum clima. Ela preferiu cerveja e Filé mandou que trouxessem para si próprio a garrafa de conhaque.

Dizendo se chamar Paula e mantendo uma aparência de interesse profissional, a mulher aceitou a tal conversa qualquer, mas a partir de certo ponto encurtou a distância e começou a tocá-lo, pegando em sua mão. Ela tinha um hálito forte de bala sabor eucalipto e palavras doces que, entretanto, não dissimulavam o timbre de voz surpreendente, encorpado demais para uma mulher tão bela. O Filé, que se sentia o dono da situação e mantinha um ritmo de goles acima do hábito, tinha a sua capacidade de avaliação já comprometida. Estranhou apenas que ela o tocasse com força e, depois, que suas mãos eram de fato grandes e fortes. Começou então a pensar, que aquela também não era a mulher ideal. Ela bebia muito pouco e, a julgar pelo tamanho do corpo e pela robustez das mãos, caso tivesse que pegá-la à força teria muita dificuldade. Contudo, como já estava mesmo gastando o seu parco dinheiro, era preferível que não fosse em vão.

Com o andar da conversa Filé foi se sentindo cada vez mais pressionado. A doçura inicial cedera lugar a palavras sempre mais impositivas e isso dava a ele a frustrante impressão de que ela estava no comando das ações. Em contra-partida, as suas coxas eram irrecusáveis e ele não resistiu à tentação de pegar nelas ali mesmo. Podiam estar melhor depiladas, porém ele estava perto demais do que pretendia, e não quis recuar. E foi chegando a mão, até que ela o interrompeu e decidiu: Vamos subir, tem um quarto lá em cima esperando por nós. O homem olhou para a escada, que lhe pareceu muito longa, mas normal para uma casa de sobrado como era aquela, e concordou.

Passaram por um corredor escuro, estreito e curto, no alto da escada, e depois por outro maior. De ambos os lados, vários espaços, separados por placas prensadas à guisa de biombos, eram destinados aos amantes com um mínimo de estética e conforto, e sem janelas. Impaciente com a lerdeza etílica dele, Paula o puxava pela mão. Filé parou de repente, se esforçando para conter aquele trem, e perguntou para onde estavam indo. Tenho um quartinho logo ali, só para clientes especiais – ela explicou. Ele achou razoável, pois uma mulher com tanto comprimento não caberia mesmo num daqueles cubículos. Subiram mais dois lances curtos de escada, numa passagem de penumbra que cheirava a forro de telhado, e finalmente Paula abriu a porta do tal quarto. Era apenas um pouco maior que os demais. Como ventilação, o que poderia fornecer um basculante de dois palmos, uma cama e um criado-mudo, uma mesa de bar com duas cadeiras, pregos nas paredes serviam de cabide e uma lâmpada pequenina, a mesma que iluminava uma pequena imagem de Santa Joana D’Arc, colocada no alto, acima da cabeceira da cama.

A sós com aquele mulherão, o Filé devia estar feliz. Tão perto dos seus atrativos, devia estar muito excitado. Prestes a consumar o seu plano, devia jogá-la na cama e obrigá-la a fazer todas as suas vontades, sem avisos ou ponderações, e com todas as concessões. Entretanto, ficou ali mesmo, parado como um bichinho indefeso esperando o bote do predador á sua frente. A mulher desistiu de esperar pela iniciativa dele e foi para cima. Empurrou o Filé para a cama e começou a lhe tirar a camisa, com pouca ou nenhuma delicadeza. Aceitando o pega aqui e espreme ali, o homem chegou rapidamente a duas conclusões pouco desejáveis: primeiro que ela era musculosa e dura demais, o extremo oposto da mulher passiva à qual estava acostumado, e segundo, que estava por demais armada entre as pernas!...

Que isso, mulher... Isso é um assalto? – Perguntou ele com o seu sorriso mais tímido... Não, meu amor, é só uma brincadeira que nós vamos fazer... Que brincadeira?... Meinha, amor... Que estória é essa de meinha?... Assim ó, primeiro você, pode até esculachar que eu topo, mas depois será a minha vez... Pode parar que eu sou macho – garantiu o Filé, tentando parecer bravo e definitivo... Mas Paula ajoelhou-se na cama e, muito convincentemente, arrancou de um só golpe o próprio vestido. Depois disse com inacreditável doçura: E daí, meu amor? Eu também sou, olha aqui ó... Não senhor! Então você quer me comer, seu viadão?... Não amor, só o seu pintinho medroso...

O que se seguiu foi um verdadeiro pandemônio, um arranca-rabo que não poderia caber num espaço tão exíguo, com o fundo sonoro dos gemidos do estrado e das juntas da cama. Sobretudo, não havia espaço para escapar! Pequeno, magrelo e bêbado, o Filé esperneava e dava coices, suas mordidas pareciam inúteis. Pensou em gritar por socorro, talvez alguém o escutasse, mas achou que isso seria vergonhoso demais para um macho com passado glorioso. Para aumentar seu desespero, embora procurasse não conseguia saber exatamente onde estava a porta, cuja face interna era pintada com a mesma tinta da parede. Com tanto pega, estica e puxa, veio enfim o cansaço, o esgotamento precipitado pelo álcool, e uma grande e desesperadora perda de esperança. O homem era muito mais forte e o Filé sentiu os olhos embaçarem, eram as suas lágrimas, que não podia mais conter. Sentiu-se bruscamente levantado pela cintura e posto de quatro na cama. Esperou o golpe de misericórdia. Mas este não veio.

Inexplicavelmente, a imagem da incólume Santa Joana D’Arc havia despencado do seu dossel. Surpreso, Paula a pegou com desesperado carinho, e depois sentou na cama com tal desgosto, que o estrado já alquebrado não suportou e desabou, levando os três para o chão. O Filé já não estava mais tão bêbado que não pudesse entender a raríssima oportunidade que estava tendo. Lembrou-se ainda de pegar a sua camisa, e para escapou daquela bicha enorme, esparramada no que sobrou da cama, achou a maldita porta camuflada e foi-se embora, escorregando nos degraus escuros, segurando as calças à meia-bunda. Aos trancos e barrancos, passou pelos largos homens da segurança e ganhou afinal a rua. Estava ofegante, mas aliviado. Poucas vezes na vida sentira um tamanho alívio.

CAPÍTULO III

Depois de andar mais alguns quarteirões, sempre olhando para trás porque havia saído sem ter pago a ninguém, a garganta novamente secou e o Filé escolheu um bar qualquer para beber alguma coisa. Entrou sob os olhares desconfiados dos que estavam bebendo no balcão, e teve de passar por todos eles, porque o bar era comprido e estreito, só havendo uma vaga no final. Lá também haviam várias mulheres, mas àquela altura todas lhe pareciam suspeitas.

Ali foi bebendo, sem prestar atenção às conversas dos outros que, entretanto, queriam que participasse e volta-e-meia perguntavam sua opinião sobre uma coisa qualquer. Eles não sabiam, mas o Filé ainda não se recuperara do susto e sua falta de sorte podia estar teimando, querendo mais. Além do que, nesse bar não havia nem um calendário com a figura de Santa Joana D’Arc! Junto à caixa registradora, até havia um calendário, mas o Filé não sabia de que santo era. E disse a si mesmo que se ele não conhecia o santo, com certeza a recíproca era verdadeira. Como se não bastasse, aquele santo, em vez de estar num dossel, estava num pregador metálico dos grandes. Não dava pra acreditar que o tal santo fizesse tamanho esforço por um desconhecido.

Na verdade, o pessoal do balcão queria trazê-lo para a conversa porque a conta já estava alta. E tanto fizeram, que o Filé sentiu-se à vontade para dar uma curta opinião a respeito da questão em pauta: um jogo de futebol. Foi o suficiente, já estava dentro. Assim, pediram mais bebida e algum tira-gosto. Agora já gostavam do Filé, que soltava cada vez mais. Achavam que ele entendia tudo de futebol e não economizava palavras, empolgava-se e seus argumentos deixavam a todos convencidos. Porém, de repente, o assunto mudou para mulheres boas de cama. Então a performance do Filé mudou, não queria falar sobre isso. Falou apenas para defender a sua opção sexual, posta em dúvida por brincadeira e tão infeliz coincidência. No mais se calava, comia e bebia, mais dedicado aos seus próprios pensamentos do que à conversa.

Lá pelas tantas, alguém sugeriu um jogo de palitos para decidir quem pagaria a conta. Filé gostou da idéia, pois na purrinha ele se garantia. Contudo a idéia foi derrubada pela maioria. O bar era de um velho senhor, que entregava toda a responsabilidade a seu filho adotivo. Tinha plena confiança nele, havia tirado o negrinho da rua. Ele sabia que tinha sido abandonado à própria sorte pelos pai e era de devotada gratidão ao velho. Porém não era mais o moleque franzino que vivia de esmolas e pequenos furtos. O negro agora era um homem grande e falava grosso, para quem quisesse ouvir.

Olha aí, pessoal, deu só isso aí. Já dividi e a cota de cada um está no avesso. Mas vocês já sabem que aqui não vale cartão, quero grana, dinheiro vivo... Num pedaço de papel, rasgado de algum pacote de cigarros, estava uma discriminação incompreensível do total. O Filé resolveu protestar, pediu que o negro explicasse a conta e o homem torceu o beiço: Mas tu é marrento, heim... Todos ali sabiam que o Filé tinha a sua razão, mas o negro tinha fama de encrenqueiro e ninguém queria passar a noite na delegacia. A maior parte deles concordou, sem saber se a conta estava certa, e o Filé teve que se conformar. O dinheiro que tinha dava para pagar a sua cota, mas faria diferença mais na frente, ainda queria andar para achar uma mulher que valesse à pena.

Esgotadas as escaramuças, todos meteram a mão nos seus bolsos sob o olhar satisfeito do negro. Em princípio ninguém percebeu, porém o Filé não estava nem ali, ou preferia não estar. Sua mente vasculhava desesperadamente a memória recente, em busca de uma pista. Por eliminação de todas as possibilidades restantes, a dedução parecia certa: Aquele viado da boate, bateu a minha carteira! Eu devia ter imaginado, lógico, por isso me deixaram escapar e nem vieram atrás de mim. E agora? Sem a grana da cota da despesa e sem santinha... Achou que tivera mais sorte antes, pois lá seria apenas um! Só de olhar para o negão, já dava vontade de sair correndo. Era o que queria fazer, mas com toda aquela gente entupindo o corredor do balcão... Lembrou-se do mictório, talvez lá houvesse um basculante por onde pudesse escapar. Foi até o fundo do bar, mas logo viu-se frustrado. Era apenas um cubículo. Além de não haver nele nenhuma passagem além da porta, sentiu-se mal ali. Era inseguro demais, muito menor que o quartinho da boate. Estreito como um curral de matadouro, era o lugar ideal para o negão demonstrar a sua imensa generosidade.

Não havia outra esperança, teria muito o que correr, se conseguisse chegar até a calçada. Como esperava, ao abrir a porta do mictório para sair, deu de cara com um olhar terrivelmente coletivo. Feita e refeita a soma do pagamento, faltava exatamente uma cota e só podia ser do cotista ausente. Eu já sei que vocês não vão querer acreditar, mas roubaram a minha carteira... – O Filé optou por ser sincero. O mais velho dos cotistas, tentando ajudar, sugeriu que ficasse para limpar pratos e copos. Porém o negro tinha uma outra alternativa: Não... Tenho aqui uma coisa pra ele deixar bem limpinha...

Prevendo o que estava para acontecer, uma senhora levantou-se de uma das mesas enfileiradas junto à parede e pediu que deixassem o pobre-coitado, e que ela pagaria a parte dele. Ninguém quis acreditar, muito menos o Filé. Ele olhou a negra velhinha de cima a baixo e pensou em recusar a ajuda, mas depois se lembrou de que não tinha alternativa, e ficou olhando, procurando entender o que estava acontecendo. Era uma mulher idosa e mal vestida, tinha ao lado um despencado carrinho de feira e nele amarradas, com barbantes e tiras de trapos, várias bugingangas sem valor. A negra cheirava mal e estava bebendo cachaça, mas em uma caneca feita de lata de salsicha. Ora, era uma mendiga. Como poderia ter dinheiro para pagar a sua cota? Acanhado, o Filé se aproximou para agradecer e foi então que reparou em algo embaraçoso. Pendurada em seu pescoço, ruço por falta de banho, havia uma medalha enzinabrada, onde ainda se podia ver a imagem de santo, o mesmo santo do calendário, que protegia a caixa registradora do bar.

A mulher resolveu acabar com todo aquele descrédito. Meteu a mão na sua sacola de perna de calça jeans, tirou uma nota de cinqüenta, entregou ao negro e ainda lhe disse que não precisava fazer troco, porque da próxima vez que viesse tomaria umas doses por conta. Passado o aperto, os demais foram tomando cada um o seu caminho, uns fazendo piada, e outros perguntas, cujas respostas explicassem aquilo. O Filé convenceu-se de que a mendiga era louca, coitada, e sentou na outra cadeira da mesa, só para não ir embora assim, sem demonstrar uma gratidão mais verdadeira. Para ter o que falar, ele perguntou a ela que santo era aquele, gravado na medalha. A velha disse que não sabia, mas era de muita estimação. O Filé torceu o beiço, em sinal de dúvida. Qual é o problema? Você nunca teve nada de estimação?... – Disse ela desconfiada...Problema nenhum, mas eu nunca tive não. Não gosto de bichos de estimação, nem de me sentir preso a nada. Aliás, já tenho a encrenca da minha mulher pra me prender... Porém a mendiga não achou a graça que ele esperava. Torceu, agora ela, os beiços largos e úmidos de cachaça, como sinal de desaprovação, e lhe disse que tratasse de não fazer mais tantas perguntas. E que voltasse para o seu caminho, com a proteção do santinho, qualquer que fosse o nome. Sem jeito, o Filé foi mesmo embora.

CAPÍTULO IV

A maré estava mais baixa do que o normal. O mar havia recuado vários metros. Diversas traineiras e canoas, de todos os tamanhos, ficaram tombadas no fundo de areia e lodo da praia, normalmente submerso, e que agora exibia uma insuspeita diversidade de coisas, umas naturais e outras bastante estranhas. Dentro de uma canoa enorme e antiga, das que eram talhadas de um único e imenso tronco de árvore, um grupo de mendigos, desinteressados do fundo do mar e dos latidos distantes e furiosos de um vira-latas, dormia profundamente, bem próximo da parede de pedras cimentadas que descia da calçada para a praia. Apesar da miséria, sentiam-se felizes e seguros, no lugar que escolheram para passar a noite, aproveitando a baixa-mar tão pronunciada. A canoa mais parecia um grande balaio-de-gatos, grandes e pequenos, sendo impossível saber-se onde começava e terminava a mesma pessoa. Salvo no caso dos casais que haviam feito sexo antes de dormir, porque estes ainda estavam cobertos pelos seus panos, que haviam usado como se isso diminuísse a intimidade generalizada.

Os seus sonhos nada rasos, entretanto, foram bruscamente interrompidos. Alguém viera correndo pela calçada, que ficava bem acima do nível da praia e, para escapar da perseguição do vira-latas zangado, bem perto dos seus calcanhares, havia saltado para a areia, sem ter tempo de medir onde cairia. Pois caiu estrondosamente, justo na proa da canoa onde estavam os mendigos. Com o susto, foi mendigo para todo lado. Uns ainda se lembraram de catar por instinto alguns pertences seus, enquanto outros, com dificuldade para suspender as próprias calças, não tiveram tempo nem mãos livres para isso. Algumas crianças de colo berravam, abandonadas que foram, mas ninguém ali sabia ainda o que estava acontecendo, tão pouco imaginava para onde estava indo.

Todo dolorido, o Filé se levantou para ver se o seu perseguidor também havia pulado da calçada para baixo, e viu que felizmente ficara no alto da parede. Dois dos mendigos se aproximaram dispostos a mostrar sua raiva, porém foram surpreendidos pela ira do intruso. Mas não contra eles. O Filé estava furioso porque só agora estava vendo que o tal cão, que ainda latia para ele do beiral da calçada, não era de meter medo nem a um gatinho faminto. Muito pequeno e magro, se não houvesse corrido poderia tê-lo pego pelo pescoço e arremessado longe. Em vez disso, quase quebrara o próprio pescoço, ou o de alguém inocente, naquela queda estúpida.

Compreendendo que não se tratava da polícia, nem de alguma das ameaças comuns à vida de rua, e vendo que o homem não conseguia se aprumar direito dentro da canoa, alguns mendigos mais piedosos foram lhe ajudar. Um deles, o mais velhinho, lhe ofereceu da sua própria cachaça, insistindo para que tomasse ao menos um gole, sob uma duvidosa alegação: É pra não inflamar. Constrangido pela boa fé do velhote, o Filé acabou tomando um gole. Depois outro e logo mais um. Acabaram achando que o intruso era apenas atabalhoado, ou azarado, mas que não era tão diferente assim, afinal, também gostava de cachaça. Tudo foi virando uma galhofada, na medida em que foram aparecendo outras garrafas.

O Filé acabou contando a sua estória, desde que saíra do escritório. Sobre a corrida e o salto desesperado, conseguiu uma gargalhada geral dos mendigos, contando que aquele vira-latas só podia ter pensado, que ele ia pegar o frango que estava num despacho na encruzilhada. Essas madames ficam trazendo comida pros cachorros de rua, o bicho, que não sabe o que é despacho, pensa que é santo e não quer dividir com ninguém... Tava só esperando a vela apagar... – Remendou o mais velho... Também, você nem pra pedir licença... – Outro fez graça... Eu? Que pedir licença? Eu só passei por perto porque me desequilibrei... Não chegava a ser uma estória surpreendente, cada um ali tinha a sua própria, no mais das vezes bem pior e mais prolongada. Ademais, se ele não tinha grana, de que poderia lhes servir? Era somente mais um e dos mais mentirosos. Onde já se viu, uma mendiga pagar a conta de alguém que sequer conhece? A cachaça acabou e os mendigos foram se acomodando novamente na canoa.

Já era madrugada quando o Filé resolveu retomar o seu caminho, por mais desafortunado que ele fosse. Uma idéia não lhe saía da cabeça, agora enfeitada por um galo doído: ainda faltava uma mulher. Estava decidido, era então uma questão de honra. Não voltaria para casa sem antes pegar uma mulher. Procurou em vão aquele maldito vira-latas, que já devia estar dormindo também, e com o caminho livre pôs-se novamente a andar a esmo. Em razão do esforço de continuar, suas escoriações incomodavam, a visão embaçava, transpirava por todos os poros e tinha a impressão de estar ficando febril. Mas pensou que só podia ser efeito de tanta cachaça.

Depois de algum tempo, tropeçando aqui e ali, vinha-lhe à mente o corpo pesadíssimo da sua mulher. Ele era esteticamente feio, mas estava lá à sua disposição, bastando entrar em uma condução e voltar para casa. Poderia então se esparramar sobre ele, servir-se do que quisesse e depois dormir ali mesmo, como se fosse um colchão macio. Ela não se importaria, nessas horas sempre fora muda e obediente. Alfredo sempre fora a sua única ambição de consumo. Agora ela não tinha mais nenhuma. Mas não... Não, não e não! O homem se aprumava e seguia adiante. Depois de passar por tantos sufocos, ter os seus documentos roubados junto com o dinheiro do mês... Escapar, por um segundo milagre na mesma noite, de apanhar e ser literalmente encurralado no mictório do bar. Por pouco não quebrou o pescoço e ainda foi acolhido, pelo grupo de miseráveis sobre cujos pescoços havia acabado de cair! Definitivamente, não. Ou encontrava uma mulher para se vingar do azar, ou não voltava para casa.

Mais à frente, o Filé estava atravessando um parque público, com grama e jardins, cujos postes de iluminação incandescente por entre arvoredos espalhavam sombras sobre os canteiros. Viu então adiante um vulto estranho, que fazia movimentos pequenos mas ritmados. Da distância em que estava e com os olhos embaçados não conseguia distinguir o que era. Mais próximo, achou que eram duas e não apenas uma pessoa. Tentando não fazer barulho chegou mais perto. Estava agora certo de que era um casal de namorados e quis ver o que estavam fazendo. Ora, o que um casal de namorados poderia estar fazendo, em uma posição incômoda, entre as sombras de um parque lá pelas tantas da madrugada? Devia ser bom de se fazer. Pelo menos, de se ver.

De modo a não ser percebido, deu a volta num dos canteiros para chegar em uma outra posição, de onde certamente poderia ser um expectador privilegiado. Porém, assim que chegou onde pretendia, ouviu latidos próximos. Caramba, uma mulher que late enquanto faz sexo! Isso era muito mais do que estava procurando. Mas por entre as plantas do canteiro, enfim conseguiu ver que se tratava apenas de mais um mendigo e, deitado ao seu lado, o seu cachorro de estimação. Não... Outro cachorro?... Com base em sua memória recente, estava em perigo. Droga, por que os cachorros gostam tanto de mendigos? Não tem nenhum despacho por perto e aquele cão está latindo pra mim... Filé não entendia mesmo nada de cachorros. Novamente ele correu e de novo foi perseguido. O animal só parou depois que ouviu o assobio do seu dono. E o Filé gastou em mais essa corrida as últimas energias de que dispunha.

CAPÍTULO V

Sentado em um banco de ripas de madeira, O Filé sentia-se esgotado, mas descansaria ali um pouco e depois prosseguiria. Quando as suas pálpebras começaram a pesar, para não adormecer ele respirou fundo e pôs-se a caminho de novo. Seguindo na sua obstinada peregrinação, ele encontrou o que fora, por pouco tempo, um outro despacho. Esse havia sido maior e mais variado, coisa de madame. Porém já não restava quase nada, aquele cão com certeza chegara antes. O Filé chegou perto para espiar. Por um instante achou que pudesse adivinhar o que o cão havia encontrado para o jantar. Não seria uma tarefa fácil, mas uma coisa era certa: ali havia uma galinha, pois haviam penas por todo lado. Uma coisa o intrigou. Por que motivo o cão havia deixado as vísceras onde devia estar a galinha inteira? Com certeza ele fizera um trato com o santo, do tipo “eu como só a galinha e deixo as tripas pro senhor”. Ora, será que ele achou que quando eu chegasse ia lamber o fundo do alguidar? – Perguntou a si mesmo. O homem se divertiu por algum tempo consigo próprio, mas logo o seu sarcasmo perdeu a graça e ele retomou os seus passos de filigranas, não estava mais interessado em despachos.

Ao passar pelo último canteiro do parque, Filé sentiu um aroma no ar que lhe despertou a fome. Lembrou-se então de que não havia comido quase nada, desde a hora do almoço. Então percebeu que do meio do canteiro subia uma fumaça tênue e ficou curioso por saber do que se tratava. Tendo ouvido que alguém se aproximava, de dentro do canteiro, que tinha forma circular, uma velha mendiga interrompeu os preparativos do seu jantar. Sentada na grama e protegida pela cerca-viva do canteiro, ela tinha entre as pernas quase todos os principais ingredientes para isso, retirados do despacho que haviam deixado no parque. Por entre os galhos, o Filé via apenas o seu vulto.

Desconfiada do intruso, que devia ser um mendigo covarde disposto a lhe tomar a refeição, ela pegou a galinha, virou de cabeça para baixo e, pelo buraco aberto por ela no ventre para retirar as vísceras que não comeria, ela foi despejando o que havia em volta. E assim foram para dentro o dendê, a farinha e a pimenta malagueta. Na pressa, ainda foram indevidamente para dentro do buraco alguns cigarros e muitos palitos de dente. Com mais pressa ainda retirou da sua sacola uma latinha de condimentos, ia destampá-la, mas achou que não haveria mais tempo. Pensou que, caso colocasse a galinha na água de cozimento, que já fervia, o pilantra logo a encontraria, então a negra empurrou a galinha para o lugar que lhe parecia mais seguro, onde ninguém nunca queria mexer: debaixo da saia, entre as suas pernas. Depois, imaginando que ainda não estivesse segura o bastante, por via das dúvidas, empurrou ainda mais para dentro das pernas, até senti-lo em segurança, junto da sua genitália.

Bem, não se tratava exatamente de um mendigo. Tão pouco o homem tinha a galinha por prioridade. Todavia, ela não o sabia. A mendiga não pode imaginar que ele tivesse uma única coisa em mente, que por isso ele seria capaz de qualquer coisa, e ainda que, vendo-o depois dele passar pelas plantas do canteiro, reconheceria nele o pobre coitado, cuja conta havia pago quando estavam no bar. Ué, você de novo?... – Ela logo perguntou com surpresa e simpatia. Achando que não havia motivo para toda aquela sua preocupação e que o perigo havia passado, ela começou a reclamar com ele, porque havia lhe dado um susto dos diabos, nem pudera temperar direito o seu jantar. Contudo o Filé, que não a reconhecia do bar, sequer a estava ouvindo.

Na verdade, ele estava diante de uma decisão muito difícil. Se perdesse aquela oportunidade, com certeza não encontraria outra mulher para saciar seu desejo imperativo. Aquela velha mendiga, esmulambada demais para ser despida, suja demais para ser pega e fedorenta demais para se chegar perto, era a sua única alternativa. Por uma mísera fração de segundo, ele julgou que os fartos depósitos de gordura da sua mulher eram preferíveis, porém todos os sofrimentos que juntos lotavam sua memória, faziam da velha magrela uma alternativa válida. Afinal, ela estava logo ali, tão disponível e com um inesquecível sorriso de três dentes na cara. Como ele se mantinha mudo, a mendiga já não sabia se a sua galinha estava de fato em segurança. E preferiu deixá-la onde estava, para não despertar atenção dele.

No que você tava remexendo quando eu cheguei? – Quis saber ele. Deduzindo pela pergunta que ele não sabia da sua galinha, ela arriscou uma mentira por garantia: O que? Eu? Ah... Era a minha coelhinha de estimação... O que o Filé pensava saber existir entre as pernas dela, não era o que ele chamaria de coelhinha de estimação, mas lhe pareceu que aquela expressão devia ser uma espécie de convite. Ou melhor, uma gentil concessão. Ora, naquelas alturas dos acontecimentos fosse uma coelhinha ou uma porquinha, que diferença poderia fazer o nome do bicho?

O homem tirou do bolso um pedaço de papel. Sem tirar os olhos dela, rasgou e enrolou fazendo dois tampões, que meteu nas narinas. Ah... – Ela arriscou de novo – To vendo que você também gosta de um pozinho, eu também, mas tem um tempão... Antes que a mulher pudesse terminar o que ia dizendo, o Filé atirou-se em cima dela como um doido. Com o impacto do corpo dele ela caiu para trás, e sentindo sua mão a lhe levantar os panos ela gritava: Não! Deixa a minha galinha aí!... Não! A minha galinha não!... Ela pensava que gritando alguém poderia vir lhe socorrer, contudo, nem o Filé e nem ninguém podia acreditar que existisse alguma galinha por ali. O homem ensandecido meteu uma perna sua entre as delas, depois a outra perna, abriu as coxas da velha e aplicou o seu golpe de misericórdia. Logo de início achou que era bem melhor do que pudera imaginar. Estava bom – pensava ele – doía um pouco e ardia muito, mas estava bom! Tanto que até se demorou. Já a velha não parecia estar gostando. Resmungava e fazia careta de nojo, dizia que parasse com aquela porcaria e prometia nunca mais pagar a sua conta no bar, com o dinheiro emprestado pelo santo.

Só então ele se deu à razão. A mendiga era a mesma do bar e, em vez de lhe ajudar, havia lhe repassado a sua dívida com o tal santo! O homem de um só pulo ficou de pé. Quer dizer que a senhora pagou a minha cota na despesa lá do bar, com o dinheiro que roubou da macumba?... Pera lá, mocinho. “Roubei” não, que isso é muito feio pra uma senhora da minha idade. Na verdade eu pedi emprestado... E agora eu é que devo ao santo?... Não senhor, não era santo não, agora você deve ao diabo, que era o dono do despacho... Eeeuuu?!... Você, sim. Quem mais poderia ser? Mas não se desespere, nem precisa pagar tudo de uma vez só não. Pague como eu pagaria, em suaves prestações. Ele não vai se importar. O que ele quer mesmo é a sua alma – disse ela com voz grossa, para aterrorizá-lo... E como eu faço pra pagar?... Quando você tiver a grana me procura, que eu te explico tudo bem direitinho...

O Filé refletiu por três segundos e depois protestou: Não senhora, você me enganou, mentiu pra mim... Eu não, mocinho. Fique sabendo que eu não sou mulher de mentiras. Você foi quem veio pulando em cima de mim como um cão esfomeado, e eu uma pobre e indefesa velhinha... Furioso, o Filé virou as costas para ir embora e a mendiga ficou reclamando com a galinha na mão, porque teria que lavá-la para refazer o tempero. Mas de repente ele se voltou e ela meteu de novo a galinha entre as pernas. Você mentiu pra mim sim, me disse que tinha uma coelhinha de estimação – ele se lembrou... Ah é, mas porque antes você também mentiu pra mim... Você ta louca. Eu? Quando?... Mentiu, quando me disse que nunca teve bicho de estimação... E é a verdade, nunca tive mesmo – o Filé reafirmou com convicção... Ah, não?... Não!... Então de quem é esse porco-espinho aí, todo colorido, saindo pela sua braguilha afora?

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