Pele

Foto de Lou Poulit

A MONTANHA E O PINTASSILGO (CONTO)

A MONTANHA E O PINTASSILGO
(Parte 5)

A novamente recolhida em si, a montanha não se conformava. Como podia ser aquilo? Um pintassilgo tão lépido e inteligente tinha obrigação de encontrar a saída providencial. Será que a velhice roubara a sua visão? Claro que não, para outras coisas não! Medo de vento ele sempre tivera, mas ante a possibilidade fortuita de recuperar a sua sagrada liberdade, não poderia titubear em optar pelo vento que, diga-se de passagem, não seria mais perigoso fora do que dentro da gaiola, onde já havia entrado. Não, tinha que haver uma outra razão plausível.

De repente, ela se recordou de um detalhe que lhe pareceu importante: durante o imenso minuto em que tudo aconteceu, em nenhum momento o pintassilgo lhe dirigiu sequer um único pensamento. Foi como se ele não ouvisse os seus apelos agoniados, para que fugisse pela portinhola entreaberta, antes que fosse tarde demais. Por que tal comportamento? Será que não mais considerava valiosa a especial e já manifestada amizade de uma montanha? Ora, não havia dado a ele nenhum motivo para tamanho desprezo, muito pelo contrário.

Sua indignação contudo ainda se transformaria em perplexidade: algum tempo depois a montanha foi arrebatada das suas reflexões pelo canto, agora de fato inconfundível, do seu pintassilgo. Lá estava ele novamente. A gaiola fora reposta no mesmo arvoredo, reabastecida de sementes e água, parecendo que nada havia acontecido ao passarinho. Até se poderia deduzir que estava mais feliz do que antes da ventania. Coisa mais absurda ― disse ela a si mesma. Porém, era evidente, nenhum pintassilgo deprimido poderia cantar tanto nem com tamanho virtuosismo, nem dar cambalhotas no ar e fazer outras piruetas. Até um banhinho ele tomava. Sucinto, como são os banhos dos passarinhos, que não têm muita intimidade com líquidos e nem muito o que lavar. Mas bem diante dos arregalados olhares da montanha, o bichinho espirrava água para todos os lados, enquanto, literalmente, mostrava ser também um entusiasmado cantor de banheiro.

Quando a tarde já se preparava para anunciar a sua partida, uma cena insólita mais uma vez surpreendeu a montanha. Vieram os dois caçadores na direção do arvoredo. O velho, ensimesmado, apertando as pálpebras como que por impaciência, não respondia uma só palavra, ao passo que o jovem, mostrava-se inconformado. Alguma coisa o levava a gesticular muito e a despejar no vento repetidos argumentos, tão atropelados que era difícil entender o mínimo. Até mesmo interpor-se no caminho do outro o jovem tentou, inutilmente. Para espanto até do pintassilgo, não apenas o caçador mais velho retirou a gaiola do galho em que estava pendurada, como ainda meteu a mão pela portinhola, apanhou o bicho apavorado entre os dedos, grosseiros mas cuidadosos, e em seguida simplesmente abriu a mão e esperou que ele voasse. O passarinho atônito demorou a entender, porém depois de poucos e longos segundos, mais assustado do que feliz, lançou-se no vazio, seu natural quase esquecido pelos anos de cativeiro. Com um sorriso contido no rosto também marcado pelo tempo, o homem ficou olhando onde ele pousaria. Por seu lado, aborrecido, o jovem virou-lhe as costas e com as mãos na cabeça, numa expressão de perda, foi-se embora a passos duros na direção do vale.

O pintassilgo não chegou muito longe em seu primeiro vôo. Não mais reconhecia a liberdade, suas possibilidades e perigos. Logo percebeu que praticamente nada estava tão perto e disponível, e que necessário se fazia agora dosar o esforço de se deslocar. A satisfação das necessidades dependeria de ser capaz de reconhecer seus limites. E aí estava uma coisa que não lhe parecera importante durante muito tempo: teria que olhar para dentro de si, em vez de conhecer, por dentro, apenas a gaiola. Mas a prática de todas essas coisas teria que ficar para o dia seguinte, pois já estava completamente escuro. A noite, fora da gaiola, era terrivelmente assustadora, até porque, embora estivesse acomodado em um lugar bem seguro contra predadores, ele não sabia disso. Perdera as referências para avaliar a sua segurança e, desse modo, tudo parecia potencialmente perigoso. Os múltiplos sons da noite, assim mais se assemelhavam a uma sinfonia macabra. Fora das paredes da casa do velho caçador, o mundo se tornara quase desconhecido. Não havia mais o acolhedor teto de sapê seco. Não havia ali, na verdade, nenhum teto e o sereno já se mostrava ameaçador. Em compensação não havia nenhuma ventania (Céus! Uma ventania no meio dessa escuridão seria morte certa e dolorosa!), contudo a aragem natural e constante da noite, resultante do resfriamento, tornava difícil manter uma camada de ar, aquecido pela temperatura do corpo, entre as penas e a pele delicada. Apesar de ser pessoa de intelecto muito simples, o caçador sabia que os passarinhos dependem disso para sobreviver e tivera sempre o cuidado de manter a gaiola em algum lugar bem protegido.

Porém, todas essas perdas decorrentes do cativeiro prolongado pareciam secundárias, do ponto de vista de alguém que não poderia caber em gaiola nenhuma. A montanha passara as últimas e desesperadas horas tentando se comunicar com o pintassilgo. E assim foi, ainda por outras horas. Era alta madrugada, ela resolveu que devia armar-se de mais paciência. Decepcionada, viu afinal que as tais perdas tinham uma magnitude bem maior. O seu velho amigo passarinho perdera grande parte da percepção do seu meio natural e exterior, porém, perdera também parte da percepção interior. Que triste era isso.

(Segue)

Foto de Enise

Sob o fio da navalha

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Poeta finge ser caçador
Um palhaço invertido
Um catador de sonhos
Arranca presumido
Os estilhaços de sua dor

Pele apertada na alma
Explora as letras
Fluídas como cometas
Ao sair de suas mãos...

Rega dores
Fala dos falsos amores
Abaixo de um sol cego.
Cintila uma lua surda
Destila suas mágoas
Num oceano de escuridão...

Na magra inspiração
O céu fecha-se em solidão
Procura no som das águas
Um vinco lúcido da razão.

É dualista
Poeta...realista
Profeta em cada nova imersão.
Laico, itinerante
Tão brilhante
Como um mosaico de emoção...

Na textura das suas palavras
Aponta como as nuvens fugiram
Quais caminhos o vento seguiu
Atrás de quais carinhos...

Como o porte
Entre o romântico e o sensual
Surgiram
No tênue corte
Da poesia que entalha
Sob o suave fio da sua navalha...

Enise

Foto de Henrique Fernandes

ACORDAR NO TEU OLHAR

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A alvorada desperta-me desejos adormecidos
Na noite onde o silencio ama a solidão
Desperto sonhando acordar no teu olhar
Em voz doce e meiga que me chama para o amor
Embalo no sorriso carente de um beijo que rasga
Momentos exaltados de excitação
Atingindo o infinito de uma emoção
Selado de paz na alma quero teu cheiro de mulher
Sobre um lençol aromatizado
Pelo teu abundante lado feminino
E esquecer o tempo de te sentir longe
No tão perto que te possuo
No espírito de ser gente que sente, que ama
E exibe o ser de ser teu
E de não ser eu, mas o meu intimo que pede
Ao meu corpo um pouco do teu corpo
E o calor que o sol me entranha
Na pele não disfarça o teu quente
Prazer que se fulmina no teu olhar
Que me incendeia no corpo chamas de vida
Louvando fogueiras rosadas de desejos
Que me elevam a alma em labaredas de carinho
As coisas belas que rodeiam o meu horizonte
Não se fazem confundir com a tua presença
És um á parte que sinto e vejo
Espolio das constelações ainda virgens
Onde quero encalhar a poesia que navega em mim
Abro o coração com velas ao vento
E vou ao descobrimento do teu rosto

Foto de Sonia Delsin

TATUASTE

TATUASTE

Tatuaste meu corpo.
Foi com teu olhar de fogo.
Ele andou lentamente.
Imagens na minha pele foi criando
Tatuaste minha alma.
Foi com tuas palavras.
Elas foram penetrando.
Penetrando.
Como raízes, se aprofundando.
Hoje eu me vejo assim.
Meio mulher, meio cipreste.
Quanta alegria e quanta dor tu me deste.

Foto de pétala rosa

VELA VERMELHA

VELA VERMELHA

A nudez das palavras
te assusta.
A minha liberdade fechou a tua prepotência.
Resta um mistério dolorido, e o
meu corpo dessarumado.
Mas, no fascínio deste tango que
não dançámos, ouvirás os acordes duma paixão
soltando-se na noite dos infieis.
Serei eu a DEUSA a descansar
na folhagem da tua sombra, e nos teus
abraços vazios de paixão.

E no florir de mais um dia, passo por ti
sem te olhar, e dos teus olhos cairá uma lágrima
que vai chorar por dentro dessa pele fria
e da tua existência dum amor ausente.

Os gestos vazios de sentindo serão a
companhia nas tuas noites nos lençóis brancos
e das paredes que falam da
minha nudez.
Não te conheço mais no espelho da minha
imagem, não sinto mais o ritual dum orgasmo sem nome...

Apaga a vela vermelha, o filme acabou...

Amália LOPES

Foto de Karyne .angel Saber.

Lágirmas

Ventos fortes sopravam naquele instante
Alvo era aquele rosto
No meio de tanta escuridão
Pele ríspida e macia,
Rosto de quem sofria

Sozinha ela se via
Trilhando pelo desconhecido
E ela tremia, de dor!
E de seu rosto uma lágrima descia

Medo, sentimento tão puro
Algo que ela conhecia
Amor, sentimento de dor
Que em sua vida existia

E o que ela fazia?
Escrevia! Com tudo que sentia
Linhas vazias aquecia,
Em uma noite vazia!

Como tudo que sabia
E que no seu mundo existia
Sabia fazer de cada lamento
Seu próprio ensinamento

E os dias se passavam
E nesse ritmo ela ia!
E as lágrimas que desciam
Em seu rosto não transparecia
E uma lição ela aprendia
Lágrimas de esperança
No rosto de uma criança
Que não sabe o que dizer
Como amor e esperança
Que nascem em uma criança
Que não quer mais sofrer.

Foto de Sonia Delsin

POEIRA CÓSMICA

POEIRA CÓSMICA

A barba dele alcançava a ponta do externo.
Já nem era mais branca de tão encardida.
Ele tinha uns olhos guardados numa caixinha de rugas como nunca vi igual na vida.
Tão plissada a pele que quase nem se via mais o negro da íris.
Mas existia e eu via.
Algumas verrugas no rosto e braços.
Ele trazia na boca um riso que nascera e morrera ali.
Era mais uma contração.
Mas eu queria acreditar que era um leve sorriso estagnado em sua face incinerada pelo sol ardente.
As cestas de lixo que se distribuíam pela pracinha ele não deixava de observar uma sequer.
O que encontrava comia.
Eu o vi certa vez a comer um restinho de iogurte com colher.
Ele remexia, comia.
Restinhos de refrigerante bebia.
Depois se sentava num banco qualquer.
Arrotava como se tivesse se deliciado com uma bela refeição.
Vi isto em cima deste chão.
E embaixo deste céu de meu Deus.
Que somos? Poeira cósmica?
Somos pó?
Tento encontrar o fio da meada e encontro um nó.
A refletir me coloco.
Me desloco.
Que somos perante o Universo?
O que somos nós?

Foto de Sonia Delsin

ME PERCO EM TI

ME PERCO EM TI

Me perco quando te abraço.
Quanto teu pescoço enlaço.
Me embaraço.
Desembaraço.
É por amor tudo que faço.
Me perco em ti.
Na tua boca macia.
Na tua pele.
No teu cheiro.
Tem horas que me dá um desespero.
Quando penso que vou partir.
Mas logo em seguida consigo me consolar.
Eu vou voltar.
E tu sempre e sempre vai me esperar.

Foto de Anjinhainlove

Primavera

Caminho por estas ruas sozinha
E piso as folhas verdes que, por descuido, caíram,
Sabendo, agora, que alguém me espera do outro lado do muro.
Recordo naquela cor o frio que já passou
Fortalecendo cada árvore para a retoma do ciclo.
Começo a sentir o calor da estação
Que me aquece o coração
E sei que, mesmo no frio, alguém segurará um cobertor para me confortar.
Tudo muda, menos tu.
Continuas o mesmo, só os meus olhos mudaram
E agora conseguem ver a tua alma para além da tua pele.
E a Primavera está sempre presente no meu coração.
Ofereço-te um nascer do sol todo o dia,
Um florescer, duas crianças no parque,
Um cachorrinho a correr e melros a cantar,
Em troca dessa Primavera que tu me deste.
Agora, mesmo caminhando sozinha,
Piso folhas verdes que, por descuido, caíram
E sei que, para dar, temos também de receber
Para que não fiquemos vazios.
E do outro lado do muro, encontro a Primavera,
Qual caixa de embrulho com um lacinho...
Obrigada pelo presente!

Foto de cathy correia

Eternidade

Eternidade
A carícia
Do teu carinho
Na minha pele!
Um tempo
Encontrado num beijo
Que se derrama
Da tua boca!

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