Existência

Foto de João Victor Tavares Sampaio

O Desapaixonado

Existem pessoas no mundo que passam a vida inteira sem ter uma paixão sequer. Se este for seu caso, vá procurar coisa melhor que se faça, ou caso contrário vai se entediar com a história que contarei agora. Citado aqui como homem, masculinamente, o Desapaixonado sempre fazia questão de gabar-se dessa condição. Era assim o modo com que se relacionava com as pessoas a sua volta, ou o imaginava.

O Desapaixonado vivia emoções fortes, gostava delas, talvez pelo fato de nunca tido experimentado uma paixão de verdade, fosse por gente, coisa, ou animal. Gostava de encarar riscos. Não era do tipo sentimental. Mesmo assim tinha lá os seus momentos de alguma fraqueza. Um dia, um tanto distraído, pensou até em chorar. Em outro, mais deprimente ainda, até em sorrir.

- Eu tenho coisa melhor pra fazer! – pensou alto, já entretido por um desses afazeres mundanos que se esquecem rápido.

O Desapaixonado era heterossexual no sentido sexual da palavra. Ele achava que mulher tinha um gosto bom, que era um produto liso e macio. Quem sabe, poderia amar uma por usucapião. Gostava também da sua família, que nunca havia lhe deixado passar por necessidades, ou, pelo menos, nunca o deixara tomar-se conta do mesmo. A perda dos pais doía por ser desvantajosa no sentido financeiro da palavra. Mas por outro lado, o Desapaixonado tinha bom discernimento, sentindo algumas vezes saudades daqueles velhos ingênuos, babacas. Até que não tinham sido tão ruins para dois pobres coitados. Os outros parentes, irmãos, tios, primos, já não o interessavam, como parte de um passado inglório que devia ser esquecido.

Mas, como era de se esperar, certa vez o Desapaixonado passou por um grande apuro. Quase morreu, mas diriam os mais íntimos que vaso ruim não quebra. O homem, então seguro das suas certezas, viu-se estremecido pelas veias que carregam seu sangue pelo corpo que tinha ganhado ao nascer. Sentia-se enfim vulnerável. Sentia-se enfim vivo! O medo que antes atrapalhava seus planos, agora os atormentava, os colocava em choque com sua liberdade. As amarras eram seu motivo para buscar a redenção. Então veio o arrependimento.

O Desapaixonado, na sua razão solitária, nunca havia enxergado de verdade o que se tem de bom nas suas limitações, que esses seriam os cordões da sua catapulta, arremesso ao real, que é triste sim, mas mordaz. Viu que se não amassem aqueles no seu entorno, não os considerasse, tudo o que havia feito na sua existência não teria sentido. E, com a vertigem de um grego, pulou no precipício de se alcançar a felicidade. Desnecessário dizer que quebrou a cara no chão, mas com um sorriso provocador de quem sabe o porquê dos sacrifícios.

Foto de janie

SOU O QUE SOU!

Eu sou o que sou...bem assim...
Insanidade dos mortais!
Loucura penetrando nas entranhas!
...Nem protótipo, nem banal!

...Se a minha insensatez
Encontrasse na inspiração... lucidez!
Que eu procuro além da intermitência!
...Desatino da minha existência!

Sou assim... Sem explicação!
Máquina complexa!
Intelecto vivo e inquieto!

Foto de Riva

DESEJO EM ABERTO

DESEJO EM ABERTO

Soporífera pertinácia a mim friamente verberas,
Pelo indiviso fato de nunca mais te querer amar,
Assesto do desalento por sentir tantas partidas,
Arfante coração meu, sobreleve este meu penar!

Das muitas paixões inclementemente fui vexado,
Por mulheres que jamais me souberam agradar,
Alinhadas ao ensejo de me ver muito magoado,
Escarravam-me o rosto ao avesso em me beijar.

Nos prazeres do amor não fui sequer premiado,
Somente agruras nesta existência sem desejar,
Corrume merencório que percorre um obstinado,
No extremado anélito de a felicidade conquistar.

Ambula por entre as hostes este mero retirado,
Prezando desta vida seu lídimo amor encontrar.

Rivadávia Leite

Foto de Carmen Vervloet

Um Lindo Exemplo

Na alegria, na tristeza,
na saúde, na doença,
este casal com certeza
cumpriu do matrimônio a sentença.

No meio das hortênsias,
no canto das aves,
na rica existência,
na instabilidade da nave!

No espaço circundado todos
contemplam o milagre da união
e se perguntam:
- Quanto já sofreu cada coração?

Em cada par de olhos
vê-se rios antigos
por onde o outro viajou
deixando rastros de ternura e carinho.

O quanto cada um suportou?
Bobagem, não importa!
O que importa é que o amor floresceu
e perfumou tudo ao redor!

Foto de betimartins

Selaste-me os meus lábios!

Selaste-me os meus lábios!

Com um simples beijo, um beijo de amor
Selaste-me os meus lábios sedentos, carnudos
De desejo, cheio de segredos e calor...

Com um simples beijo, tu levaste-me ao céu
Onde as nuvens eram nosso leito de amor
E as rosas apenas desabrochavam de nós...

Com um simples beijo, tu, arrancaste-me
Cada pétala da minha, rosa vermelha do amor
Deixando petrificada e tonta no teu amor...

Com um simples beijo, tiraste-me o chão
A minha razão da existência, a minha vida
Deixou de ser livre e solta e apenas aprisionada...

E com esse simples beijo que selaste em mim
Ondas eternas de promessas e no teu leito de amor
Selaste o meu pobre coração vencido pelo teu...

Foto de betimartins

Disfarce!

Disfarce!

Quis-te mostrar o que já não via
Calar a boca da minha, real, existência
Despir-me de todos os preconceitos
Ignorar todos os meus, sentidos sentimentos
Apenas por ti e para ti, por causa de ti...
Quando eu me vi em ti, só em ti
Descobri que era a tua alma, parte de ti
Apenas, parte de tua luz que encandeia
Momentos de ternura, amor e partilha
Sonhos vividos e deveras tão sonhados
Neste meu corpo por si, já tão cansado
Neste meu véu, estilhaçado e purificado!
Olho-me e me vejo através do tempo
Espelhos que não enganam e não perdoam
Deixo as minhas rugas, sobressair e sorrirem
Minhas mãos que até não são calejadas
Apenas! São suaves, delicadas e enrugadas
Pelas palavras, que por ela foram transportadas
Meus olhos, espelhos de alma aflita
Que já não brilham com estrelas no infinito
Apenas é memória, pedacinhos de minha alma
Do que eles já te olharam, sentiram e tocaram
Mas! Eu coloco permanente a minha mascara
Disfarço-me de uma jovem e linda fada
Dando verdadeiro uso à varinha mágica
Para que ainda as minhas forças não falhem
Apenas por ti Aqui e agora sejam renovadas...
Neste meu disfarce! Apenas o meu disfarce...

Foto de betimartins

Sentimentos!

Sentimentos!

Vi aquele ser lindo, tão pequeninho, delicado
Um ser nascido, pedaços de amor, aveludados
No mais belo céu da minha real e vil existência
Peguei em ti, senti a tua pela macia, imaculada!

Olhar-te era como o nascer do sol, iluminando
Toda a minha vida, todo o meu bem querer
Voltando a ser a criança que existe em mim
Deixando fluir toda a vida em forma bruta!

Eu renasci, sorri, descobri a paz dentro de mim
No rosto belo da mais bela criança nascida aqui
Que nem a beleza do beija-flor alcança e comove
Nem, os sonhos e imensidão do mar acalmam meu ser...

Olhei-te distraidamente, saboreei sabiamente
Cada segundo, cada palavra, cada teu respirar
Que a vida, a bela vida, nos dá a cada momento...

Momentos inesquecíveis, implacáveis no amor
Que minhas mãos segurarão, aclamaram e trataram...

Hoje a saudade impera nos meus sentidos aguçados
Entre a lágrima que rola dos meus olhos já cansados...

Ontem! Tu eras um ser tão pequeninho, tão puro e casto
Cresceste, aprendeste, amas-te sabiamente ou talvez não...

Eu apenas te criei para o mundo, não me pertences, não
És filho da vida e filho de Deus e eu apenas sou a estrada...

Estrada que construí, para que tu caminhasses, meu amor
E caminhas-te e construíste o teu templo e tua historia...

Eu apenas estou no teu álbum numa foto, numa estante
Que um dia alguém perguntará quem eu fui realmente para ti...

Eu apenas te amo, sem te culpar de nada, pois sei que és de Deus
Apenas minha alma envelhece na mais triste saudade de ti...

Foto de Fadlo

M Ã E

M Ã E

Ah, quanto já se escreveu e, quanto já se fez em homenagem ao anjo tutelar que nos trouxe à vida neste planeta. Que nos abrigou em seu ventre durante nosso período de formação e, que desde o alvorecer de nossos dias, até o findar de sua própria existência, nos tem a conta de infantes queridos ao seu coração abnegado, não medindo esforços ao nosso bem, nos conduzindo com amor através de alegrias, sempre ocultando seus sofrimentos, rindo nos nossos risos e chorando nos nossos prantos. Sempre orando por seus filhos ao Senhor da Vida, sempre perdoando nossos erros e nossas faltas e, sempre a nos chamar carinhosamente ao abrigo de suas asas protetoras.
Mãe, tu és esse anjo abnegado, por cuja missão sublime nos encontramos aqui e, a quem num preito de gratidão, genuflexos a teus pés, osculamos respeitosamente tuas mãos queridas e tua face, encanecida pelo passar dos anos, a retratar contudo, a vitória conquistada no desempenho da missão maternal, a ti carinhosamente confiada pelo Senhor da Vida.
Mãe, és digna de admiração e louvor, e em ti homenageamos todas as mulheres do mundo, neste dia a ti dedicado, embora teus, sejam todos os dias de todos os anos.
Todos os dias sois mãe, pois todos os dias nascem os teus filhos, quer nas mansardas suntuosas onde a vida flui no luxo e na opulência, quer nos barracos eivados da mais abjeta miséria. E sempre mãe, não te importa a condição social, pois és mãe, e a ti importa apenas o bem estar de teus rebentos, a quem outorgas todos os teus sacrifícios e teu amor incondicional.

Admiro-te mãe pequena, quando nos primeiros albores de tua vida, albergavas carinhosamente em teu pequenino seio aquela boneca de pano, inconsciente de que neste gesto eras sutilmente preparada para o glorioso porvir de tua existência, quando um dia, apertarás em teus braços o fruto de tuas entranhas, cujos vagidos serão música para teus ouvido, cujo riso lenitivo para tuas dores, e a quem orgulhosamente chamarás: meu filho.

Admiro-te, oh mãe, quando em festiva alegria, percebes que o primeiro balbucio de teu filho é a palavra mãe, muito embora, colocando-se em segundo plano, ensinava-o a dizer papai.

Admiro-te, oh mãe, nos momentos de abnegação quando a doença rondava teu pequenino filho, e insone te quedavas a cabeceira de seu berço em cuidadoso desvelo, a cuidar de seu restabelecimento, sem que de ti se ouvisse a mínima queixa.

Admiro-te, oh mãe, quando te desvelas a ensinar à teus filhos as primeiras letras, e te alegras como se fosse tua primeira vitória, o som da voz de teu filho a identificar as letras do alfabeto.

Admiro-te, oh mãe, quando ao despontar da estrela vespertina, e tangerem os sinos das igrejas, anunciando a hora do angelus, momento de melancolia e reflexão, em que carinhosamente juntas as mãozinhas de teu filho, e com ele oras a Ave Maria.

Admiro-te, oh mãe na tua sabedoria e humildade, quando em todos os momentos da vida de teus filhos, buscas orienta-los à uma vida correta e digna, nunca os abandonando mesmo quando, ao resvalar pelos escabrosos caminhos da marginalidade, tornam-se detentos nas penitenciárias, em cujas portas, muitas vezes te encontramos em prantos, a velar, sempre temerosa de que algo pior possa acontecer ao filho prisioneiro.

Admiro-te, oh mãe, quando não tendo frutos de tua própria carne, acalentas ao seio os filhos do abandono, dando-lhes carinho e proteção, como se de ti tivessem nascido.

Admiro-te, oh mãe, quando de coração partido, eras mãe em Esparta, e enviavas teus filhos à guerra em defesa da pátria, mesmo sabendo que não mais os tornaria a ver; ou quando em Cartago, cortavas os próprios cabelos à confeccionar arcos, para defender teus filhos do assédio da soldadesca romana.

Mas, onde mais te admiro, oh mãe, foi quando, Maria de Nazaré, conduziste teu divino filho ao sacrifício do calvário. Entre lágrimas e tendo o coração partido pelo sofrimento, aceitaste a missão de ser a mãe da humanidade, e te tornaste exemplo para todas as gerações, da mãe, cujo amor transcendeu os acanhados limites do egoismo humano, perdoando aos algozes do próprio filho, e se tornando na terra, operosa serva de Deus, a difundir os princípios básicos da nascente doutrina cristã.

A todas as mães, nosso preito de gratidão, e nossas felicitações por este dia tão seu.

Fadlo Dualibi Neto.

Foto de João Victor Tavares Sampaio

Super Humano

Abre-se o gibi. A primeira página está colorida por tons fantásticos, criaturas flamejantes saltavam aos olhos sem sair do papel. Um herói, na sua superioridade, resguardava seus poderes das identificações em um segredo. Voava feito pássaro ou avião, era forte como uma manada inteira, via o que só as máquinas perfeitas tinham alcance.

Nos mais recentes dias da sua jornada, lutando contra os piores tipos de adversários maléficos, rasgando os céus da metrópole recebendo aplausos da população em peso, o herói de ritmo automático persistia em manter a justiça na cidade que amava. Não havia tempo hábil sequer para pensar. A velocidade lhe empurrava ao próximo desafio.

Mal reparava no que rodeava sua existência magnífica. Os pais de família se apertando nas conduções, as mães solteiras entregando panfletos nos faróis, os avós vigiando os netos. Não havia reparado que na prática a importância de uma pessoa não se determina pelo seu cargo, mas pela sua dedicação. A embriaguez de seus poderes o induziria à tragédia.

Desta vez, o que se abria era a primeira página do jornal da trama. Os cidadãos se apinhavam para ler as fofocas do incrível astro. Incompleto nas conquistas afundava no existencialismo frívolo e no doce dos ópios. Sua cabeça não suportava mais a consciência, pesada pelas derrotas nas quais falhava. Seu ideal era a perfeição.

Mas, a mais humilde das pessoas lhe ensinaria a lição mais valiosa. Era um chefe de família. Ele, que sempre observara com certo desdém quem estava nessa posição, que parecia não aproveitar o que a vida tem de bom, viu em um ato de heroísmo que só um pai faria o sentido que faltava ao seu preciosismo, sua coragem inabalável.

O heroísmo aqui citado chama-se sacrifício. É o ato de levantar-se cedo, trabalhar, ser honesto em um mundo repleto de trapaça, continuar humano, aliás, nunca deixar de ser humano, e do mesmo jeito ter ações extraordinárias. Sacrifício de ser de verdade em um mundo de mentiras. O herói, humano na sua essência, era humano também no seu heroísmo.

Enfim, a superioridade dos poderes deu lugar à simplicidade dos afazeres, e o herói finalmente decidiu sê-lo na realidade. O herói, agora um também um patriarca, sabia que a felicidade é como uma plantação, que se semeia na menor dos grãos e se colhe na maior das árvores. Esse foi o seu alimento, a fé dos que acreditam que o bem resolve os problemas.

Foto de João Victor Tavares Sampaio

O Crítico, o Cínico, e o Cristão

Três sinos badalam a meia-noite.

Cantam três galos.

O primeiro é o crítico.

O crítico se posta ereto ao pé da serra, pois acha melhor observar a paisagem de cima. Ele cisca para sair toda a areia dos seus pés, sem perceber que levanta o pó na altura do pescoço quando bate suas pequenas patas. O crítico vê as coisas de fora, nunca se envolve com a situação, deixando as raposas roubarem os ovos enquanto suas fêmeas lutam desesperadas. O crítico, apesar de rude, se finge de manso.

O segundo é o cínico.

O cínico entrega seus colegas por trinta moedas de milho. O cínico é o que canta mais alto, pois é o que mais tenta esconder que é brigador, ao invés do frango que oculta debaixo de suas penas. O cínico sequer reconhece quem é, demonstrando felicidade no lugar de tristeza, certeza no lugar de dúvida, consternação no lugar de indignação. O cínico, por sua natureza, mente naquilo que bem acredita.

O terceiro é o cristão.

O cristão canta com amor, pois sabe que pode morrer no final do dia. O cristão carrega a responsabilidade de manter seus filhotes protegidos, seu ninho organizado, sua paz equilibrada. O cristão sabe que não pode expor à si e a sua prole ao desígnios da sorte. Sabe que deve construir uma união entre seus pares para aumentar suas chances de sobrevivência. O cristão, como galo ou como homem, deve zelar pela vida que tem.

Por mais que as parábolas mostrem o caminho que temos a seguir, precisamos ter inteligência suficiente para diferenciar o que é essencial do que é superficial. Por isso, devemos amar uns aos outros. Só dessa forma há a possibilidade do mundo permanecer vivo, apenas mantendo a porta aberta, apenas criando ao invés de matar. Assim se mantém a fé além da existência de um Deus normativo.

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