Engenho

Foto de Maria silvania dos santos

A vida me cobro um preço, e este veio do berço.

A vida me cobro um preço, e este veio do berço.

_ Hoje me lembro da minha vida na
roça. Mas não tenho saudade.
Talvez seja bom que o tempo passado
não volta mais, mas há se as lembranças ruins pudessem apagar também!
Pois não tenho saudade da minha
infância, isto é, se eu tive infância.
Lembro-me que ao cinco anos
de idade, eu já tinha que dar o duro que a vida nos prepara, aos oito anos já
tinha que cuidar da casa, e dos irmãos e ate ir para o fogão a lenha, e ai se
não das se conta, a surra seria certa, Carinho eu não conhecia, eu vivia como
um bicho do mato. Aos oito anos eu já teria que ser uma adulta, mesmo que seja na cabeça de meus pais.
Mas tudo bem eu tive eles, pra me
ensinar que a vida não é tão simples, e preparar para o futuro, e atravez deles
estou aqui. Eu agradeço.
Na idade de oito anos ate aos
descêsseis anos teve anos que diariamente tive que cuidar, de mais cinco irmãos fora a mim, tinha que cuidar dia e noite.

Na verdade não sei se era eu que
cuidava se era eu deles ou ele de mim, porque ele sempre me colocava para
corre, se não eu deles teria que tomar surras.
À noite eu não teria paz, etas
irmão que chorava, eles sempre deitava primeiro do que eu.
EU sempre seria a ultima a deitar.
MAS quando eu me deitava, um dos
cinco chamava dizendo, quero água, eu me levantava para dar, eu me deitava minutos depois outro me dizia quero mamadeira,
minutos depois, outro dizia quero fazer xixi e assim a noite passava, minha mãe
não cuidava , dizia estar cansada e que no outro dia teria que trabalhar mais.
Eu não lembro de ter passado pelo
menos uma semana sem tomar uma surra, ou melhor, pelo menos um dia, porque se
não era dos meus pais era dos irmãos.
Meus pais eram muito violentos,
batia muito e sempre em mim era mais.
Por ser a mais velha tudo sobrava
para mim, menos uma gotinha de carinho.
Estudar não pôde, eles me deram em
todo o tempo um ano de escola.
Eu às vezes chorava para ir para
aula, mas ele dizia tem que fazer tal serviço que ta passando da hora.
E ai se existisse, a surra seria
garantida.
Eu não tive nem a liberdade
de ter uma coleginha, eu as vezes chorava sozinha, acordava a noite em lágrimas, em meio tanta gente eu mas me sentia sozinha ou melhor pior que sozinha, porque pelo menos quando estava sozinha naquele momento eu não tomava surra.
Meus pais não tinham boas condições financeiras, muitas vezes tinha somente feijão e abóbora com fubá torrado, porque não tinha outra coisa para comer, mas fome eles nunca nos deixo passar.
O impressionante que com toda dignidade deles e mesmo sem condições, se um ficasse doente, ele se virava, mas o remédio aparecia.
Mas isto não foi suficiente, com tanto sofrimento passei ter medo da chegada deles em casa no fim do dia.
Alegria eu não tinha, então criei uma triste fantasia.
Imaginei que se eu fugisse dali, minha vida melhorava.
Mas não sabia o que me esperava.
Até que aos meus dezesseis anos num dia, em uma longa madrugada eu fugi não que eu não os amasse, porque eu sempre amei e amo com toda força, mas não agüentava mais aquela vida.
Coro todos os dias, parecia um filme de terror.
Fugi sem ter noção de onde ir, ate mesmo arriscando podendo dormi pelas.
Ruas, mas DEUS nunca desampara ninguém, eu não passei nem um minuto de fome, assim que cheguei na cidade , fiquei a procura de lugar, DEUS coloco confiança no coração de um dono de restaurante, e ali me deram emprego.
Eu não sabia fazer o suficiente, porque na roça o serviço é diferente, mas eu tinha dignidade, coragem e boa vontade para enfrentar, pois isto meus pais me deram.
Mas ali fiquei nove dias e minha mãe ali chego chorando e pedindo para voltar, QUE eles não ia mais me bater e que eu estava fazendo muita falta para eles.
Sentindo muito dó de minha mãe, o medo foi menor, eu voltei , mas a promessa não duro por muito tempo, mas não reclamo do serviço e sim dos maus tratos, porque lá todos pegava no pesado.
Eles davam duros de um lado e eu do outro.
Eu pelas quatro da manha, ai que sono meu DEUS, mas eu teria que me levantar, pois teria que ir para engenho a
mão tirar o caldo da cana para o café da
manhã. Também descascar o arroz no pilão porque era para o almoço às nove da manhã.
Limpa e torra o café, porque estava
acabando ou talvez já nem tivesse mais ele torrado.
Isto sempre foi assim,
desde quando lembro que existo, mas fico feliz, pois deles recebi dignidade, humildade ,coragem para lutar.
Mas como os maus tratos continuaram
eu não agüentei, mas eu entendia que eles me maltratava não porque não me
amava, e sim porque eles era bem rígidos e queria me ver alguém, digno e que enfrentasse a vida.
Mas resumindo minha historia, que é muito longa , eu digo que não agüentei
tanto sofrimento e aos dezenove anos sair de casa novamente.
Com uma amiga vim para Belo
Horizonte, com poucos dias ela já quis me bater e dizia que ali eu teria que
agüentar tudo porque se eu saísse na rua eu me perdia.
Mas um dia acabei correndo e com
ajuda fui ate a delegacia, e com pessoas de arrumei um outro lugar.
Mas como minha avó morava e ainda
mora em Ribeirão das neves eu quis ir para casa dela ate que eu arrumasse um
emprego.

Nisto meus pais vieram do interior
de muda pra cá, e como eu já não morava mais com eles, preferir seguir minha
vida.

Sofri muito na casa da amiga e
de outros, ao ponto de sentir saudade
até das surrar de meus pais.

Pois ouve época que saiu
muitas nascidas em minha costa que
fiquei muito mal.

E no lugar de remédio, no horário
que se aproximava de fazer almoço ou jantar eles já dizia. sai daqui vai pra
bem longe porque se não consigo me alimentar.

Quando nós termina te chamo e você
vem comer e arrumar as coisas.

Eu fiquei tão mal que a roupa
chegava a pregar em mim.

Até que não agüentei mais e tive a idéia de catar sucata. Mas como
era da roça, na cidade eu não sabia muito me virar e ali era desconhecido pra
mim.

e nem dinheiro sabia contar.

E assim fiz, catei sucata e
fui ate uma farmácia, toda suja ensangüentada e mostrei o

dinheiro para o farmacêutico
mostrei como eu estava e perguntei se o dinheiro dava.

Ele disse não, não da, mas vem cá,
e fez uma ejeção que com ela melhorei, e que o pai celestial o abençoa onde
quer que ele esteja.

E assim segui minha vida,
enfrentando mais muitas barreiras por muito tempo, mas venci, e hoje estou
aqui.

Casada, tenho três filhos
maravilhoso sendo um especial.

Meus pais morão perto, estão todos
na paz.

Mas uma alerta eu deixo aqui, pra
você que pensa em fazer algo parecido, não faça, pois se agente pudesse prever
o futuro, eu jamais tinha deixado meus pais.

Sofri muito, preferi mil vezes
junto aos meus pais.

Por pouco não perdi o contato com
eles.

Hoje tenho um final feliz, mas,
penso, se eles tivessem falecido?

Que seria de mim hoje?, Que tamanho
peso eu carregaria?

Sofri muito, mas hoje tenho
dignidade, e coragem para enfrentar a vida.

E foram eles quem me deu.

Hoje tenho historia triste e boas, que posso alertar aos meus filhos.

Mas minha historia mais linda é que
de recompensa pude reencontrar meus queridos pais e ainda ganhei meu três
filhos maravilhosos.

Não tenho estudo, mas é o
suficiente para eu escrever o que sinto,

E agradecer muito pela vida que
meus pais me deram e DEUS ajuda a proteger.
OBRIGADA SENHOR, OBRIGADA!

AUTORIA; M SILVANIA

Foto de Arnault L. D.

Morrer é não amar

Sangra o peito vazante ampulheta,
rubra areia esvai, o tempo a fluir...
Subtrai do existir vida e paleta.
Onde Deus compõe tons, cenário a cobrir

Bate-me um relógio, adentro a pulsar;
ponteiros regredindo a cada mover.
Som do coração, um tiquetaquear,
do engenho a meçar o que resta viver...

Mas, s'existe uma corda á engatilhar,
tal motriz do não ser a abastecer,
a chave desengrena ao apaixonar...

Horas remidas somam-se no estancar,
libertas, não mais correm ao fenecer.
Perde a morte; que é viva ao não se amar.

Foto de Dom Arthur Santos Rocha Pereira de Souza

Teogonia de Hesiodo

Proêmio: hino às Musas
Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar.
Elas têm grande e divino o monte Hélicon,
em volta da fonte violácea com pés suaves
dançam e do altar do bem forte filho de Crono.
Banharam a tenra pele no Permesso
ou na fonte do Cavalo ou no Olmio divino
e irrompendo com os pés fizeram coros
belos ardentes no ápice do Hélicon.
Daí precipitando-se ocultas por muita névoa
vão em renques noturnos lançando belíssima voz,
hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada de áureas sandálias,
Atena de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso Apoio, Ártemis verte-flechas,
Posídon que sustém e treme a terra,
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de áurea coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto,de curvo pensar,
Terra, o grande Oceano, a Noite negra
e o sagrado ser dos outros imortais sempre vivos.
Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto
quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.
Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas
Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:
“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.
Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,
por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso
colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado,
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por último sempre cantar.
Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra?
Eia! pelas Musas comecemos, elas a Zeus pai
hineando alegram o grande espírito no Olimpo
dizendo o presente, o futuro e o passado
vozes aliando. Infatigável flui o som
das bocas, suave. Brilha o palácio do pai
Zeus troante quando a voz lirial das Deusas
espalha-se, ecoa a cabeça do Olimpo nevado
e o palácio dos imortais. Lançando voz imperecível
o ser venerando dos Deuses primeiro gloriam no canto
dês o começo: os que a Terra e o Céu amplo geraram
e os deles nascidos Deuses doadores de bens,
depois Zeus pai dos Deuses e dos homens,
no começo e fim do canto hineiam as Deusas
o mais forte dos Deuses e o maior em poder,
e ainda o ser de homens e de poderosos Gigantes.
Hineando alegram o espírito de Zeus no Olimpo
Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide.
Na Piéria gerou-as, da união do Pai Cronida,
Memória rainha nas colinas de Eleutera,
para oblívio de males e pausa de aflições.
Nove noites teve uniões com ela o sábio Zeus
longe dos imortais subindo ao sagrado leito.
Quando girou o ano e retornaram as estações
com as minguas das luas e muitos dias findaram,
ela pariu nove moças concordes que dos cantares
têm o desvelo no peito e não-triste ânimo,
perto do ápice altíssimo do nevoso Olimpo,
aí os seus coros luzentes e belo palácio.
Junto a elas as Graças e o Desejo têm morada
nas festas, pelas bocas amável voz lançando
dançam e gloriam a partilha e hábitos nobres
de todos os imortais, voz bem amável lançando.
Elas iam ao Olimpo exultantes com a bela voz,
imperecível dança. Em torno gritava a terra negra
ao hinearem, dos pés amável ruído erguia-se
ao irem a seu pai. Ele reina no céu
tendo consigo o trovão e o raio flamante,
venceu no poder o pai Crono, e aos imortais
bem distribuiu e indicou cada honra;
isto as Musas cantavam, tendo o palácio Olímpio,
nove filhas nascidas do grande Zeus:
Glória, Alegria, Festa, Dançarina,
Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste
e Belavoz, que dentre todas vem à frente.
Ela é que acompanha os reis venerandos.
A quem honram as virgens do grande Zeus
e dentre reis sustentados por Zeus vêem nascer,
elas lhe vertem sobre a língua o doce orvalho
e palavras de mel fluem de sua boca. Todas
as gentes o olham decidir as sentenças
com reta justiça e ele firme falando na ágora
logo à grande discórdia cônscio põe fim,
pois os reis têm prudência quando às gentes
violadas na ágora perfazem as reparações
facilmente, a persuadir com brandas palavras.
Indo à assembléia, como a um Deus o propiciam
pelo doce honor e nas reuniões se distingue.
Tal das Musas o sagrado dom aos homens.
Pelas Musas e pelo golpeante Apoio
há cantores e citaristas sobre a terra,
e por Zeus, reis. Feliz é quem as Musas
amam, doce de sua boca flui a voz.
Se com angústia no ânimo recém-ferido
alguém aflito mirra o coração e se o cantor
servo das Musas hineia a glória dos antigos
e os venturosos Deuses que têm o Olimpo,
logo esquece os pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os desviaram os dons das Deusas
Alegrai, filhas de Zeus, dai ardente canto,
gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos,
os que nasceram da Terra e do Céu constelado,
os da Noite trevosa, os que o salgado Mar criou.
Dizei como no começo Deuses e Terra nasceram,
os Rios, o Mar infinito impetuoso de ondas,
os Astros brilhantes e o Céu amplo em cima.
Os deles nascidos Deuses doadores de bens
como dividiram a opulência e repartiram as honras
e como no começo tiveram o rugoso Olimpo.
Dizei-me isto, Musas que tendes o palácio Olímpio,
dês o começo e quem dentre eles primeiro nasceu.
Os Deuses primordiais
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.
Terra primeiro pariu igual a si mesma
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre.
Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas
ninfas que moram nas montanhas frondosas.
E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas
o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu
do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos
e Coios e Crios e Hipérion e Jápeto
e Teia e Réia e Têmis e Memória
e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa.
E após com ótimas armas Crono de curvo pensar,
filho o mais terrível: detestou o florescente pai.
Pariu ainda os Ciclopes de soberbo coração:
Trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo
que a Zeus deram o trovão e forjaram o raio.
Eles no mais eram comparáveis aos Deuses,
único olho bem no meio repousava na fronte.
Ciclopes denominava-os o nome, porque neles
circular olho sozinho repousava na fronte.
Vigor, violência e engenho possuíam na ação.
Outros ainda da Terra e do Céu nasceram,
três filhos enormes, violentos, não nomeáveis.
Cotos, Briareu e Giges, assombrosos filhos.
Deles, eram cem braços que saltavam dos ombros,
improximáveis; cabeças de cada um cinqüenta
brotavam dos ombros, sobre os grossos membros.
Vigor sem limite, poderoso na enorme forma
História do Céu e de Crono
Quantos da Terra e do Céu nasceram,
filhos os mais temíveis, detestava-os o pai
dês o começo: tão logo cada um deles nascia
a todos ocultava, à luz não os permitindo,
na cova da Terra. Alegrava-se na maligna obra
o Céu. Por dentro gemia a Terra prodigiosa
atulhada, e urdiu dolosa e maligna arte.
Rápida criou o gênero do grisalho aço,
forjou grande podão e indicou aos filhos.
Disse com ousadia, ofendida no coração:
“Filhos meus e do pai estólido, se quiserdes
ter-me fé, puniremos o maligno ultraje de vosso
pai, pois ele tramou antes obras indignas”.
Assim falou e a todos reteve o terror, ninguém
vozeou. Ousado o grande Crono de curvo pensar
devolveu logo as palavras à mãe cuidadosa:
“Mãe, isto eu prometo e cumprirei
a obra, porque nefando não me importa o nosso
pai, pois ele tramou antes obras indignas”.
Assim falou. Exultou nas entranhas Terra prodigiosa,
colocou-o oculto em tocaia, pôs-lhe nas mãos
a foice dentada e inculcou-lhe todo o ardil.
Veio com a noite o grande Céu, ao redor da Terra
desejando amor sobrepairou e estendeu-se
a tudo. Da tocaia o filho alcançou com a mão
esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice
longa e dentada. E do pai o pênis
ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo
para trás. Mas nada inerte escapou da mão:
quantos salpicos respingaram sanguíneos
a todos recebeu-os a Terra; com o girar do ano
gerou as Erínias duras, os grandes Gigantes
rútilos nas armas, com longas lanças nas mãos,
e Ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita.
O pênis, tão logo cortando-o com o aço
atirou do continente no undoso mar,
aí muito boiou na planície, ao redor branca
espuma da imortal carne ejaculava-se, dela
uma virgem criou-se. Primeiro Citera divina
atingiu, depois foi à circunfluída Chipre
e saiu veneranda bela Deusa, ao redor relva
crescia sob esbeltos pés. A ela. Afrodite
Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citeréia
apelidam homens e Deuses, porque da espuma
criou-se e Citeréia porque tocou Citera,
Cípria porque nasceu na undosa Chipre,
e Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz.
Eros acompanhou-a, Desejo seguiu-a belo,
tão logo nasceu e foi para a grei dos Deuses.
Esta honra tem dês o começo e na partilha
coube-lhe entre homens e Deuses imortais
as conversas de moças, os sorrisos, os enganos,
o doce gozo, o amor e a meiguice.
O pai com o apelido de Titãs apelidou-os:
o grande Céu vituperando filhos que gerou
dizia terem feito, na altiva estultícia,
grã obra de que castigo teriam no porvir.
Os filhos da Noite
Noite pariu hediondo Lote, Sorte negra
e Morte, pariu Sono e pariu a grei de Sonhos.
A seguir Escárnio e Miséria cheia de dor.
Com nenhum conúbio divina pariu-os Noite trevosa.
As Hespérides que vigiam além do ínclito Oceano
belas maçãs de ouro e as árvores frutiferantes
pariu e as Partes e as Sortes que punem sem dó:
Fiandeira, Distributriz e Inflexível que aos mortais
tão logo nascidos dão os haveres de bem e de mal,
elas perseguem transgressões de homens e Deuses
e jamais repousam as Deusas da terrível cólera
até que dêem com o olho maligno naquele que erra.
Pariu ainda Nêmesis ruína dos perecíveis mortais
a Noite funérea. Depois pariu Engano e Amor
e Velhice funesta e pariu Éris de ânimo cruel.
Éris hedionda pariu Fadiga cheia de dor,
Olvido, Fome e Dores cheias de lágrimas,
Batalhas, Combates, Massacres e Homicídios,
Litígios, Mentiras, Falas e Disputas,
Desordem e Derrota conviventes uma da outra,
e Juramento, que aos sobreterrâneos homens
muito arruina quando alguém adrede perjura.
A linhagem do Mar
O Mar gerou Nereu sem mentira nem olvido,
filho o mais velho, também o chamam Ancião
porque infalível e bom, nem os preceitos
olvida mas justos e bons desígnios conhece.
Amante da Terra gerou também o grande Espanto
e o viril Fórcis e Ceto de belas faces
e Euríbia que nas entranhas tem ânimo de aço.
De Nereu nasceram filhas rivais de Deusas
no mar infecundo. Dádiva de belos cabelos
virgem do Oceano, rio circular, gerou-as:
Primeira, Eficácia, Salvante, Anfitrite,
Doadora, Tétis, Bonança, Glauca,
Ondaveloz, Gruta, Veloz, Marina amável,
Onidéia, Amorosa, Vitória de róseos braços,
Melita graciosa, Portuária, Esplendente,
Dadivosa, Primeira, Portadora, Potente,
Ilhéia, Recife, Rainhaprima,
Dádiva, Onividente, formosa Galatéia,
Eguaveloz amável, Égua-sagaz de róseos braços,
Pega-onda que apazigua no mar cor de névoa
facilmente a onda e o sopro de fortes ventos
com Aplana-onda e Anfitrite de belos tornozelos,
Ondeia, Praia, a bem-coroada Rainhamarina,
Glaucapartilha sorridente, Travessia,
Reúne-gente, Reúne-bem, Rainha-das-gentes,
Multi-sagaz, Sagacidade, Rainha-solvente,
Pastora de amável talhe e perfeita beleza,
Arenosa de gracioso corpo, divina Equestre,
llhoa, Escolta, Preceitora, Previdência
e Infalível que do pai imortal tem o espírito.
Estas nasceram do irrepreensível Nereu,
cinqüenta virgens, sábias de ações irrepreensíveis.
Espanto à filha do Oceano de profundo fluir
desposou, Ambarina. Ela pariu ligeira Íris
e Harpias de belos cabelos: Procela e Alígera
que a pássaros e rajadas de vento acompanham
com asas ligeiras, pois no abismo do ar se lançam.
De Fórcis, Ceto gerou as Velhas de belas faces,
grisalhas de nascença, apelidam-nas Velhas
Deuses imortais e homens caminhantes da terra:
Penfredo de véu perfeito e Ênio de véu açafrão.
Gerou Górgonas que habitam além do ínclito Oceano
os confins da noite (onde as Hespérides cantoras):
Esteno, Euríale e Medusa que sofreu o funesto,
era mortal, as outras imortais e sem velhice
ambas, mas com ela deitou-se o Crina-preta
no macio prado entre flores de primavera.
Dela, quando Perseu lhe decapitou o pescoço,
surgiram o grande Aurigládio e o cavalo Pégaso;
tem este nome porque ao pé das águas do Oceano
nasceu, o outro com o gládio de ouro nas mãos,
voando ele abandonou a terra mãe de rebanhos
e foi aos imortais e habita o palácio de Zeus,
portador de trovão e relâmpago de Zeus sábio.
Aurigládio gerou Gerioneu de três cabeças
unindo-se a Belaflui virgem do ínclito Oceano.
E a Gerioneu matou-o a força de Heracles
perto dos bois sinuosos na circunfluída Eritéia
no dia em que tangeria os bois de ampla testa
para Tirinto sagrada após atravessar o Oceano
após matar Ortro e o vaqueiro Eurítion
no nevoento estábulo além do ínclito Oceano.
Ela pariu outro incombatível prodígio nem par
a homens mortais nem a Deuses imortais
numa gruta cava: divina Víbora de ânimo cruel,
semininfa de olhos vivos e belas faces
e prodigiosa semi-serpente terrível e enorme,
cambiante carnívoro sob covil na divina terra
Aí sua gruta lá embaixo está sob côncava pedra
longe dos Deuses imortais e dos homens mortais
aí lhe deram os Deuses habitar ínclito palácio.
Em Árimos sob o chão reteve-se a lúgubre Víbora
ninfa imortal e sem velhice para sempre.
É fama que com ela Tífon uniu-se em amor,
terrível soberbo sem lei com a virgem de olhos vivos.
Ela fecundada pariu crias de ânimo cruel.
Gerou primeiro Ortro, cão de Gerioneu.
Depois pariu o incombatível e não nomeável
Cérbero carnívoro, cão de brônzea voz do Hades,
de cinquenta cabeças, impudente e cruel.
A seguir gerou Hidra, sábia do que é funesto,
e em Lerna nutriu-a a Deusa de alvos braços Hera
por imenso rancor contra a força de Heracles;
matou-a o filho de Zeus com não piedoso bronze,
Heracles Anfitrionida, com o dileto de Ares
Iolau, por desígnios de Atena apresadora.
Ela pariu a Cabra que sopra irrepelível fogo,
a terrível e grande e de pés ligeiros e cruel,
tinha três cabeças: uma de leão de olhos rútilos,
outra de cabra, outra de víbora, cruel serpente.
Na frente leão, atrás serpente, no meio cabra,
expirando o terrível furor do fogo aceso.
Agarrou-a Pégaso e o bravo Belerofonte.
E ela pariu a funesta Fix, ruína dos cadmeus,
emprenhada por Ortro, pariu o Leão de Neméia
que Hera a ínclita esposa de Zeus nutriu
e abrigou nas colinas de Neméia, pena dos homens:
aí residindo destruía greis de homens
senhor de Treto e Apesanta em Neméia,
mas sucumbiu ao vigor da força de Heracles.
Unida a Fórcis em amor, Ceto gerou por fim
terrível Serpente que no covil da terra trevosa
nas grandes fronteiras guarda maçãs de ouro.
Esta é a geração de Ceto e de Fórcis.
A linhagem do Céu
Tétis gerou de Oceano os rios rodopiantes:
Nilo, Alfeu, Erídano de rodopios profundos,
Estrímon, Meandro, Istro de belo fluir,
Fase, Reso, Aquelôo de rodopios de prata,
Nesso, Ródio, Haliácmon, Sete-bocas,
Granico, Esepo, Simoente divino,
Peneu, Hermo, Caico bem-fluente,
Sangário grande, Ládon, Partênio,
Eveno, Árdesco e Escamandro divino.
E pariu a sagrada geração de filhas
que pela terra adolescem homens com Apoio rei
e com os Rios e que têm de Zeus esta honra:
Persuasiva, Virgínea, Violeta, Ambarina
Dádiva, Popa, Celeste de divina aparência,
Equina, Clímene, Rósea, Belaflui,
Núpcia, Clítia, Sábia, Persuasora,
Plexaura, Galaxaura, amável Dione,
Pecuária, Veloz, formosa Polidora,
Tecelã de amável talhe, Riqueza de olhos bovinos,
Perseida, Ianeira, Acaste, Loira
Pétrea amorosa, Resistência, Europa,
Astúcia, Eurinome, Concludente de véu açafrão,
Áurea, Ásia, amorosa Calipso,
Doadora, Acaso, Circunflui, Velozflui
e Estige que dentre todas vem à frente.
Estas nasceram de Oceano e de Tétis
filhas mais velhas: há muitas outras ainda,
há três mil Oceaninas de finos tornozelos
que dispersas percorrem terra e águas profundas
por igual e de todo, crias magníficas entre Deusas.
Outros rios que fluem fragorosos são tantos
filhos de Oceano, gerou-os Tétis soberana.
De todos é difícil a um mortal dizer o nome,
a cada um conhece quem habita à sua beira.
Téia gerou o grande Sol, a Lua brilhante
e Aurora que brilha a todos nós sobreterrâneos
e aos Deuses imortais que têm o céu amplo,
gerou-os submetida a Hipérion em amor.
Euríbia unida a Crios em amor gerou
divina entre Deusas: o grande Astreu, Palas
e Perses distinto de todos pela sabedoria.
Aurora gerou de Astreu ventos de ânimo violento,
Zéfiro clareante, Bóreas de veloz caminhada
e Notos, no coito amoroso a Deusa com o Deus,
e após aurorante pariu a Estrela da Manhã
e os astros brilhantes de que o céu se coroa.
Estige filha do Oceano unida a Palas
no palácio pariu Zelo e Vitória de belos tornozelos
e pariu Poder e Violência, insignes filhos.
Longe deles não há morada de Zeus nem pouso
nem percurso por onde o Deus não os guie
mas sempre peito de Zeus gravitroante repousam.
Assim decidiu Estige imperecível Oceanina
no dia em que o Olímpio relampeante a todos
os imortais conclamou ao alto Olimpo,
e disse quem dos Deuses combatesse com ele os Titãs
ele não o privaria dos prêmios e cada honra
manteria como antes entre os Deuses imortais,
e que o não-honrado sob Crono e sem-prêmios
honra e prêmio alcançaria, como é justiça.
E veio primeiro Estige imperecível ao Olimpo
com os filhos, por desígnios de seu pai;
honrou-a Zeus e supremos dons lhe deu:
fez dela própria o grande juramento dos Deuses
e seus filhos para sempre residirem com ele.
Assim para todos inteiramente como prometeu
cumpriu, ele próprio tem grande poder e reina.

Hino a Hécate
Febe entrou no amoroso leito de Coios
e fecundou a Deusa o Deus em amor,
ela gerou Leto de negro véu, a sempre doce,
boa aos homens e aos Deuses imortais,
doce dês o começo, a mais suave no Olimpo.
Gerou Astéria de propício nome, que Perses
conduziu um dia a seu palácio e desposou,
e fecundada pariu Hécate a quem mais
Zeus Cronida honrou e concedeu esplêndidos dons,
ter parte na terra e no mar infecundo.
Ela também do Céu constelado partilhou a honra
e é muito honrada entre os Deuses imortais.
Hoje ainda, se algum homem sobre a terra
com belos sacrifícios conforme os ritos propicia
e invoca Hécate, muita honra o acompanha
facilmente, a quem a Deusa propensa acolhe a prece;
e torna-o opulento, porque ela tem força.
De quantos nasceram da Terra e do Céu
e receberam honra, de todos obteve um lote;
nem o Cronida violou nem a despojou
do que recebeu entre os antigos Deuses Titãs,
e ela tem como primeiro no começo houve a partilha.
Nem porque filha única menos partilhou de honra
e de privilégio na terra e no céu e no mar
mas ainda mais, porque honra-a Zeus.
A quem quer, grandemente dá auxílio e ajuda,
no tribunal senta-se junto aos reis venerandos,
na assembléia entre o povo distingue a quem quer,
e quando se armam para o combate homicida
os homens, aí a Deusa assiste a quem quer
e propícia concede vitória e oferece-lhe glória.
Diligente quando os homens lutam nos jogos
aí também a Deusa lhe dá auxílio e ajuda,
e vencendo pela força e vigor, leva belo prêmio
facilmente, com alegria, e aos pais dá a glória.
Diligente entre os cavaleiros assiste a quem quer,
e aos que lavram o mar de ínvios caminhos
e suplicam a Hécate e ao troante Treme-terra,
fácil a gloriosa Deusa concede muita pesca
ou surge e arranca-a, se o quer no seu ânimo.
Diligente no estábulo com Hermes aumenta
o rebanho de bois e a larga tropa de cabras
e a de ovelhas lanosas, se o quer no seu ânimo,
de poucos avoluma-os e de muitos faz menores.
Assim, apesar de ser a única filha de sua mãe,
entre imortais é honrada com todos os privilégios.
O Cronida a fez nutriz de jovens que depois dela
com os olhos viram a luz da multividente Aurora.
Assim dês o começo é nutriz de jovens e estas as honras
O nascimento de Zeus
Réia submetida a Crono pariu brilhantes filhos:
Héstia, Deméter e Hera de áureas sandálias,
o forte Hades que sob o chão habita um palácio
com impiedoso coração, o troante Treme-terra
e o sábio Zeus, pai dos Deuses e dos homens,
sob cujo trovão até a ampla terra se abala.
E engolia-os o grande Crono tão logo cada um
do ventre sagrado da mãe descia aos joelhos,
tramando-o para que outro dos magníficos Uranidas
não tivesse entre os imortais a honra de rei.
Pois soube da Terra e do Céu constelado
que lhe era destino por um filho ser submetido
apesar de poderoso, por desígnios do grande Zeus.
E não mantinha vigilância de cego, mas à espreita
engolia os filhos. Réia agarrou-a longa aflição.
Mas quando a Zeus pai dos Deuses e dos homens
ela devia parir, suplicou-lhe então aos pais queridos,
aos seus, à Terra e ao Céu constelado,
comporem um ardil para que oculta parisse
o filho, e fosse punido pelas Erínias do pai
e filhos engolidos o grande Crono de curvo pensar.
Eles escutaram e atenderam à filha querida
e indicaram quanto era destino ocorrer
ao rei Crono e ao filho de violento ânimo.
Enviaram-na a Licto, gorda região de Creta,
quando ela devia parir o filho de ótimas armas,
o grande Zeus, e recebeu-o Terra prodigiosa
na vasta Creta para nutri-lo e criá-lo.
Aí levando-o através da veloz noite negra atingiu
primeiro Licto, e com ele nas mãos escondeu-o
em gruta íngreme sob o covil da terra divina
no monte das Cabras denso de árvores.
Encueirou grande pedra e entregou-a
ao soberano Uranida rei dos antigos Deuses.
Tomando-a nas mãos meteu-a ventre abaixo
o coitado, nem pensou nas entranhas que deixava
em vez da pedra o seu filho invicto e seguro
ao porvir. Este com violência e mãos dominando-o
logo o expulsaria da honra e reinaria entre imortais.
Rápido o vigor e os brilhantes membros
do príncipe cresciam. E com o girar do ano,
enganado por repetidas instigações da Terra,
soltou a prole o grande Crono de curvo pensar,
vencido pelas artes e violência do filho.
Primeiro vomitou a pedra por último engolida.
Zeus cravou-a sobre a terra de amplas vias
em Delfos divino, nos vales ao pé do Parnaso,
signo ao porvir e espanto aos perecíveis mortais.
E livrou das perdidas prisões os tios paternos
Trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo,
filhos de Céu a quem o pai em desvario prendeu
e eles lembrados da graça benéfica
deram-lhe o trovão e o raio flamante
e o relâmpago que antes Terra prodigiosa recobria.
Neles confiante reina sobre mortais e imortais.
História de Prometeu
Jápeto desposou Clímene de belos tornozelos
virgem Oceanína e entraram no mesmo leito.
Ela gerou o filho Atlas de violento ânimo,
pariu o sobreglorioso Menécio e Prometeu
astuto de iriado pensar e o sem-acerto Epimeteu
que foi um mal dês o começo aos homens come-pão,
pois primeiro aceitou de Zeus moldada a mulher
virgem. Ao soberbo Menécio, Zeus longividente
lançou-o Érebos abaixo golpeando com fúmeo raio
por sua estultícia e bravura bem-armada.
Atlas sustém o amplo céu sob cruel coerção
nos confins da Terra ante as Hespérides cantoras,
de pé, com a cabeça e infatigáveis braços:
este destino o sábio Zeus atribuiu-lhe.
E prendeu com infrágeis peias Prometeu astuciador,
cadeias dolorosas passadas ao meio duma coluna,
e sobre ele incitou uma águia de longas asas,
ela comia o fígado imortal, ele crescia à noite
todo igual o comera de dia a ave de longas asas.
O filho de Alcmena de belos tornozelos valente
Heracles matou-a, da maligna doença defendeu
o filho de Jápeto e libertou-o dos tormentos,
não discordando Zeus Olímpio o sublime soberano
para que de Heracles Tebano fosse a glória
maior que antes sobre a terra multinutriz.
Reverente ele honrou ao insigne filho,
apesar da cólera pôs fim ao rancor que retinha
de quem desafiou os desígnios do pujante Cronida.
Quando se discerniam Deuses e homens mortais
em Mecona, com ânimo atento dividindo ofertou
grande boi, a trapacear o espírito de Zeus:
aqui pôs carnes e gordas vísceras com a banha
sobre a pele e cobriu-as com o ventre do boi,
ali os alvos ossos do boi com dolosa arte
dispôs e cobriu-os com a brilhante banha.
Disse-lhe o pai dos homens e dos Deuses:
“Filho de Jápeto, insigne dentre todos os reis,
ó doce, dividiste as partes zeloso de um só!”.
Assim falou a zombar Zeus de imperecíveis desígnios.
E disse-lhe Prometeu de curvo pensar
sorrindo leve, não esqueceu a dolosa arte:
“Zeus, o de maior glória e poder dos Deuses perenes,
toma qual dos dois nas entranhas te exorta o ânimo”.
Falou por astúcia. Zeus de imperecíveis desígnios
soube, não ignorou a astúcia; nas entranhas previu
males que aos homens mortais deviam cumprir-se.
Com as duas mãos ergueu a alva gordura,
raivou nas entranhas, o rancor veio ao seu ânimo,
quando viu alvos ossos do boi sob dolosa arte.
Por isso aos imortais sobre a terra a grei humana
queima os alvos ossos em altares turiais.
E colérico disse-lhe Zeus agrega-nuvens:
“Filho de Jápeto, o mais hábil em seus desígnios,
ó doce, ainda não esqueceste a dolosa arte!”.
Assim falou irado Zeus de imperecíveis desígnios,
depois sempre deste ardil lembrado
negou nos freixos a força do fogo infatigável
aos homens mortais que sobre a terra habitam.
Porém o enganou o bravo filho de Jápeto:
furtou o brilho longevisível do infatigável fogo
em oca férula; mordeu fundo o ânimo
a Zeus tonítruo e enraivou seu coração
ver entre homens o brilho longevisível do fogo.
E criou já ao invés do fogo um mal aos homens:
plasmou-o da terra o ínclito Pés-tortos
como virgem pudente, por desígnios do Cronida;
cingiu e adornou-a a Deusa Atena de olhos glaucos
com vestes alvas, compôs um véu laborioso
descendo-lhe da cabeça, prodígio aos olhos,
ao redor coroas de flores novas da relva
sedutoras lhe pôs na fronte Palas Atena
e ao redor da cabeça pôs uma coroa de ouro,
quem a fabricou: o ínclito Pés-tortos
lavrando-a nas mãos, agradando a Zeus pai,
e muitos lavores nela gravou, prodígio aos olhos,
das feras que a terra e o mar nutrem muitas
ele pôs muitas ali (esplendia muita a graça)
prodigiosas iguais às que vivas têm voz.
Após ter criado belo o mal em vez de um bem
levou-a lá onde eram outros Deuses e homens
adornada pela dos olhos glaucos e do pai forte.
O espanto reteve Deuses imortais e homens mortais
ao virem íngreme incombatível ardil aos homens.
Dela descende a geração das femininas mulheres.
Dela é a funesta geração e grei das mulheres,
grande pena que habita entre homens mortais,
parceiras não da penúria cruel, porém do luxo.
Tal quando na colméia recoberta abelhas
nutrem zangões, emparelhados de malefício,
elas todo o dia até o mergulho do sol
diurnas fadigam-se e fazem os brancos favos,
eles ficam no abrigo do enxame à espera
e amontoam no seu ventre o esforço alheio,
assim um mal igual fez aos homens mortais
Zeus tonítruo: as mulheres, parelhas de obras
ásperas, e em vez de um bem deu oposto mal.
Quem fugindo a núpcias e a obrigações com mulheres
não quer casar-se, atinge a velhice funesta
sem quem o segure: não de víveres carente
vive, mas ao morrer dividem-lhe as posses
parentes longes. A quem vem o destino de núpcias
e cabe cuidosa esposa concorde consigo,
para este desde cedo ao bem contrapesa o mal
constante. E quem acolhe uma de raça perversa
vive com uma aflição sem fim nas entranhas,
no ânimo, no coração, e incurável é o mal.
Não se pode furtar nem superar o espírito de Zeus
pois nem o filho de Jápeto o benéfico Prometeu
escapou-lhe à pesada cólera, mas sob coerção
apesar de multissábio a grande cadeia o retém.
A Titanomaquia
Tão logo o pai lhes teve ódio no ânimo
prendeu em poderosa prisão Briareu, Cotos e Giges
admirado da bem-armada bravura, aspecto
e tamanho, e meteu-os sob a terra de amplas vias.
Aí, doloridos sob a terra habitando
jaziam nos confins e fronteiras da grande terra
com longas angústias e grande mágoa no coração.
Mas o Cronida e os outros Deuses imortais
que Réia de belos cabelos pariu amada por Crono
restituíram-nos à luz por conselhos da Terra.
Ela lhes revelou clara e plenamente:
teriam com eles vitória e renome esplêndido.
Há muito combatiam com dolorosas fadigas
uns contra outros em violentas batalhas
os Deuses Titãs e quantos nasceram de Crono:
uns no alto Ótris — os Titãs magníficos —,
outros no Olimpo — os Deuses doadores de bens
que Réia de belos cabelos pariu amada por Crono.
Davam uns aos outros doloroso combate
em batalhas contínuas há dez anos cheios.
Nenhum final nem solução da áspera discórdia
de nenhum lado, ambíguo pairava o termo da guerra.
Mas quando àqueles ofereceu todo o sustento,
néctar e ambrosia que só os Deuses comem
no peito de todos cresceu o ânimo viril.
Após sorverem o néctar e a amável ambrosia
disse-lhes o pai dos homens e dos Deuses:
“Ouvi-me, filhos magníficos da Terra e do Céu,
que eu diga o que no peito o ânimo me ordena:
já há muitos anos, uns contra os outros,
todo dia combatemos pela vitória e poder
os Deuses Titãs e quantos nascemos de Crono.
Vós com grande violência e braços intocáveis
surgi contra os Titãs na lúgubre batalha,
lembrai a doce lealdade e quanto sofrestes
na prisão cruel antes de voltar à luz
por nossos desígnios, de sob a treva nevoenta”.
Assim falou. Respondeu o irrepreensível Cotos:
“Ó, portento, não o não sabido revelas: nós
sabemos que tens supremo cor e supremo espírito,
e repeliste dos imortais o mal horrendo;
por tua sabedoria, de sob a treva nevoenta
das prisões sem-mel, nós já sem esperanças
de volta viemos, ó rei filho de Crono.
Agora com rijo espírito e prudente vontade
defenderemos vosso poder na luta terrível
combatendo os Titãs na violenta batalha”.
Assim falou. Aprovaram os Deuses doadores de bens
a palavra ouvida. Ávido de guerra o ânimo
ainda mais, e despertaram o triste combate
todos — Deusas e Deuses — naquele dia:
os Deuses Titãs, quantos nasceram de Crono,
os que Zeus do Érebos sob a terra lançou à luz,
terríveis, poderosos, com bem-armada violência.
Deles eram cem braços que saltavam dos ombros
de cada um, cabeças de cada um cinqüenta
brotavam dos ombros sobre grossos membros.
Eles impuseram aos Titãs lúgubre batalha
agarrando íngremes pedras com os grossos braços.
Os Titãs defronte fortificavam as fileiras
com ardor. Ambos os lados mostravam obras
braçais violentas. Terrível mugia o mar infinito,
retumbava forte a terra, o vasto céu gemia
sacudido, no solo estremecia o alto Olimpo
sob golpes dos imortais, o abalo pesado atingia
o Tártaro nevoento, e o surdo estrondo de pés
de indizíveis assaltos e ataques brutais.
E uns contra outros lançavam dardos gemidosos,
vinda de ambos atinge o céu constelado
a voz exortante, e batiam-se com grande grito.
Não mais Zeus continha seu furor e deste
furor logo encheram-se suas vísceras e toda
violência ele mostrava. Do céu e do Olimpo
relampejando avançava sempre, os raios
com trovões e relâmpagos juntos voavam
do grosso braço, rodopiando a chama sagrada
densos. A terra nutriz retumbava ao redor
queimando-se, crepitou ao fogo vasta floresta,
fervia o chão todo e as correntes do Oceano
e o mar infecundo, o sopro quente atava
os Titãs terrestres, a chama atingia vasta
o ar divino, apesar de fortes cegava-os nos olhos
o brilhar fulgurante de raio e relâmpago.
O calor prodigioso traspassou o Caos. Parecia,
a ver-se com olhos e ouvir-se com ouvidos a voz,
quando Terra e o Céu amplo lá em cima
tocavam-se, tão grande clangor erguia-se
dela desabada e dele desabando-se por cima,
tal o clangor dos Deuses batendo-se na luta.
Os ventos revolviam o tremor de terra, a poeira,
o trovão, o relâmpago e o raio flamante,
dardos de Zeus grande, e levavam alarido e voz
ao meio das frentes, estrondo imenso erguia-se
da discórdia atroz. Mostrava-se o poder dos braços.
A batalha decai. Antes, uns contra outros
atacavam-se tenazes em violentas batalhas.
Na frente despertaram áspero combate
Cotos, Briareu e Giges insaciável de guerra.
Trezentas pedras dos grossos braços
lançavam seguidas e cobriram de golpes
os Titãs. E sob a terra de amplas vias
lançaram-nos e prenderam em prisões dolorosas
vencidos pelos braços apesar de soberbos,
tão longe sob a terra quanto é da terra o céu,
pois tanto o é da terra o Tártaro nevoenta.
Descrição do Tártaro
Nove noites e dias uma bigorna de bronze
cai do céu e só no décimo atinge a terra
e, caindo da terra, o Tártaro nevoento.
E nove noites e dias uma bigorna de bronze
cai da terra e só no décimo atinge o Tártaro.
Cerca-o um muro de bronze. A noite em torno
verte-se três vezes ao redor do gargalo. Por cima
as raízes da terra plantam-se e do mar infecundo.
Aí os Deuses Titãs sob a treva nevoenta
estão ocultos por desígnios de Zeus agrega-nuvens,
região bolorenta nos confins da terra prodigiosa.
Não têm saída. Impôs-lhes Posídon portas
de bronze e lado a lado percorre a muralha.
Aí Giges, Cotos e Briareu magnânimo
habitam, guardas fiéis de Zeus porta-égide.
Aí, da terra trevosa e do Tártaro nevoento
e do mar infecundo e do Céu constelado,
de todos, estão contíguos as fontes e confins,
torturantes e bolorentos, odeiam-nos os Deuses.
Vasto abismo, nem ao termo de um ano
atingiria o solo quem por suas portas entrasse
mas de cá para lá o levaria tufão após tufão
torturante, terrível até para os Deuses imortais
este prodígio. A casa terrível da Noite trevosa
eleva-se aí oculta por escuras nuvens.
Defronte, o filho de Jápeto sustem o Céu amplo
de pé, com a cabeça e infatigáveis braços
inabalável, onde Noite e Dia se aproximam
e saúdam-se cruzando o grande umbral
de bronze. Um desce dentro, outro vai
fora, nunca o palácio fecha a ambos,
mas sempre um deles está fora do palácio
e percorre a terra, o outro está dentro
e espera vir a sua hora de caminhar,
ele tem aos sobreterrâneos a luz multividente,
ela nos braços o Sono, irmão da Morte,
a Noite funesta oculta por nuvens cor de névoa.
Aí os filhos da Noite sombria têm morada,
Sono e Morte, terríveis Deuses, nunca
o Sol fulgente olha-os com seus raios
ao subir ao céu nem ao descer o céu.
Um deles, tranqüilo e doce aos homens,
percorre a terra e o largo dorso do mar,
o outro, de coração de ferro e alma de bronze
não piedoso no peito, retém quem dos homens
agarra, odioso até aos Deuses imortais.
Defronte, o palácio ecoante do Deus subterrâneo
o forte Hades e da temível Perséfone
eleva-se. Terrível cão guarda-lhe a frente
não piedoso, tem maligna arte: aos que entram
faz festas com o rabo e ambas as orelhas,
sair de novo não deixa: à espreita
devora quem surpreende a sair das portas.
Aí habita a Deusa detestada dos imortais
terrível Estige, filha do Oceano refluente
a mais velha, longe dos Deuses em ilustre palácio
coberto de altas pedras, todo ao redor
com as colunas de prata se apóia no céu.
Pouco a filha de Espanto Íris de ágeis pés
aí vem mensageira sobre o largo dorso do mar:
quando briga e discórdia surgem entre imortais
e se um dos que têm o palácio Olímpio mente
Zeus faz Íris trazer o grande juramento dos Deuses
num jarro de ouro, a longe água de muitos nomes
fria. Ela precipita-se da íngreme pedra
alta. E abundante sob a terra de amplas vias
do rio sagrado flui pela noite negra,
braço do Oceano, décima parte ela constitui:
nove envolvem a terra e o largo dorso do mar
com rodopios de prata e depois caem no sal,
ela só proflui da pedra, grande pena aos Deuses.
Dos imortais que têm a cabeça nivosa do Olimpo
quem espargindo-a jura um perjúrio
jaz sem fôlego por um ano inteiro,
nem da ambrosia e do néctar se aproxima
para comer, jaz porém sem alento nem voz
num estendido leito e mau torpor o cobre.
Quando a doença perfaz um grande ano,
passa de uma a outra prova mais áspera:
nove anos afasta-se dos Deuses sempre vivos,
nem freqüenta conselho nem banquetes
nove anos a fio. No décimo freqüenta de novo
reuniões dos imortais que têm o palácio Olímpio.
Tal juramento os Deuses fizeram de Estige imperecível
água ogígia que brota de abrupta região.
Aí, da terra trevosa e do Tártaro nevoento
e do mar infecundo e do céu constelado,
de todos, estão contíguos as fontes e confins,
torturantes e bolorentos, odeiam-nos os Deuses.
Aí resplandentes portas e umbral de bronze
inabalável, embutidos em raízes contínuas
nascido de si mesmo. Defronte, longe dos Deuses
os Titãs habitam além do Caos sombrio.
Os ínclitos aliados de Zeus estrondante
habitam um palácio no alicerce do Oceano,
Cotos e Giges, a Briareu por sua bravura
o gravitroante Treme-terra fez seu genro,
deu-lhe por esposa sua filha Anda-onda
A luta contra Tifeu
E quando Zeus expulsou do céu os Titãs,
Terra prodigiosa pariu com ótimas armas Tifeu
amada por Tártaro graças a áurea Afrodíte.
Ele tem braços dispostos a ações violentas
e infatigáveis pés de Deus poderoso. Dos ombros
cem cabeças de serpente, de víbora terrível,
expeliam línguas trevosas. Dos olhos
sob cílios nas cabeças divinas faiscava fogo
e das cabeças todas fogo queimava no olhar.
Vozes havia em todas as terríveis cabeças
a lançar vário som nefasto: ora falavam
como para Deuses entender, ora como
touro mugindo de indômito furor e possante voz,
ora como leão de ânimo impudente,
ora símil a cadelas, prodígio de ouvir-se,
ora assobiava a ecoar sob altas montanhas.
Naquele dia suas obras seriam incombatíveis
e ele sobre mortais e imortais teria reinado
se não o visse súbito o pai de homens e Deuses
e trovejou grave e duro. A terra em torno
retumbou tremenda, o céu amplo lá em cima,
o mar, as correntezas do Oceano e o Tártaro.
Sob os pés imortais estremece o alto Olimpo
com o ímpeto do rei e geme a terra.
Penetrava o mar víoláceo o calor de ambos,
de trovão, relâmpago, fogo vindo do prodigioso ser,
de furacões, ventos e do raio flamante.
Fervia toda a terra, céu e mar,
saltavam em volta dos cabos altas ondas
sob golpes dos imortais, irreprimível abalo cresce,
tremem Hades lá embaixo rei dos mortos
e Titãs no Tártaro em torno de Crono
pelo irreprimível clangor e pavorosa luta.
Zeus encrista seu furor, agarra as armas,
o trovão, o relâmpago e o raio flamante,
e fere-o saltando do Olimpo. Fulmina em torno
todas as cabeças divinas do terrível prodígio.
E ao dominá-lo açoitando com os golpes
mutila e abate-o, e geme a terra prodigiosa.
Do rei fulminado a chama jorra
nos vales não visíveis rugosos das montanhas,
golpeando. E vasta queima-se a terra prodigiosa
com bafo divino e fundia-se com o estanho
pela arte de homens em perfurado crisol
aquecido, ou o ferro que é mais possante
nos vales dominado pelo fogo ardente
funde-se no chão divino por obra de Hefesto,
assim fundia-se a terra ao brilhar do fogo aceso.
Com afligente ânimo atirou-o ao largo Tártaro.
De Tifeu vem o furor dos ventos que sopram úmidos,
não Notos, Bóreas e Zéfiro clareante,
estes vêm de Deuses, grande valia dos mortais,
os outros sopram às cegas sobre o mar
e, ao caírem no alto-mar cor de névoa,
impetuam ruim procela, grande ruína dos mortais.
Eles sopram diversos, dispersam os navios,.
perdem os nautas, e não têm resistência ao mal
os homens que os encontram pelo mar,
e pela terra sem-fim e florida eles perdem
os campos amáveis dos homens nascidos no chão
atulhando-os de pó e de doloroso turbilhão.
Os Deuses Olímpios
Quando os venturosos completaram a fadiga
e decidiram pela força as honras dos Titãs,
por conselhos da Terra exortavam o Olímpio
longividente Zeus a tomar o poder e ser rei
dos imortais. E bem dividiu entre eles as honras.
Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astúcia
mais sábia que os Deuses e os homens mortais.
Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena,
ele enganou suas entranhas com ardil,
com palavras sedutoras, e engoliu-a ventre abaixo,
por conselhos da Terra e do Céu constelado.
Estes lho indicaram para que a honra de rei
não tivesse em vez de Zeus outro dos Deuses perenes:
era destino que ela gerasse filhos prudentes,
primeiro a virgem de olhos glaucos Tritogênia
igual ao pai no furor e na prudente vontade,
e depois um filho rei dos Deuses e homens
ela devia parir dotado de soberbo coração.
Mas Zeus engoliu-a antes ventre abaixo
para que a Deusa lhe indicasse o bem e o mal.
Após desposou Têmis luzente que gerou as Horas,
Eqüidade, Justiça e a Paz viçosa
que cuidam dos campos dos perecíveis mortais,
e as Partes a quem mais deu honra o sábio Zeus,
Fiandeira Distributriz e Inflexível que atribuem
aos homens mortais os haveres de bem e de mal.
Eurínome de amável beleza virgem de Oceano
terceira esposa gerou-lhe Graças de belas faces:
Esplendente, Agradábil e Festa amorosa,
de seus olhos brilhantes esparge-se o amor
solta-membros, belo brilha sob os cílios o olhar.
Também foi ao leito de Deméter nutriz
que pariu Perséfone de alvos braços. Edoneu
raptou-a de sua mãe, por dádiva do sábio Zeus.
Amou ainda Memória de belos cabelos,
dela nasceram as Musas de áureos bandôs,
nove, a quem aprazem festas e o prazer da canção.
Leto gerou Apoio e Ártemis verte-flechas,
prole admirável acima de toda a raça do Céu,
gerou unida em amor a Zeus porta-égide.
Por último tomou Hera por florescente esposa,
ela pariu Hebe, Ares e Ilitía
unida em amor ao rei dos Deuses e dos homens.
Ele da própria cabeça gerou a de olhos glaucos
Atena terrível estrondante guerreira infatigável
soberana a quem apraz fragor combate e batalha.
Hera por raiva e por desafio a seu esposo
não unida em amor gerou o ínclito Hefesto
nas artes brilho à parte de toda a raça do Céu.
De Anfitrite e do troante Treme-terra
nasceu Tritão violento e grande que habita
no fundo do mar com sua mãe e régio pai
um palácio de ouro. E de Ares rompe-escudo
Citeréia pariu Pavor e Temor terríveis
que tumultuam os densos renques de guerreiros
com Ares destrói-fortes no horrendo combate,
e Harmonia que o soberbo Cadmo desposou.
Maia filha de Atlas após subir no leito sagrado
de Zeus pariu o ínclito Hermes arauto dos imortais.
Sêmele filha de Cadmo unida a Zeus em amor
gerou o esplêndido filho Dioniso multialegre
imortal, ela mortal. Agora ambos são Deuses.
Alcmena gerou a força de Heracles
unida em amor a Zeus agrega-nuvens.
Esplendente a mais jovem Graça, Hefesto
o ínclito Pés-tortos desposou-a florescente.
Dioniso de áureos cabelos à loira Ariadne
virgem de Minos tomou por esposa florescente
e imortal e sem-velhice tornou-a o Cronida.
A Hebe, o filho de Alcmena de belos tornozelos
valente Heracles após cumprir gemidosas provas
no Olimpo nevado tomou por esposa veneranda,
filha de Zeus grande e Hera de áureas sandálias;
feliz ele, feita a sua grande obra, entre imortais
habita sem sofrimento e sem velhice para sempre.
Do Sol incansável a ínclita Oceanina
Perseida gerou Circe e o rei Eetes
Eetes, filho do Sol ilumina-mortais,
desposou a virgem do Oceano rio circular
Sábia de belas faces, por desígnios dos Deuses.
Ela pariu Medéia de belos tornozelos,
subjugada em amor graças à áurea Afrodite.
Alegrai agora, habitantes do palácio Olímpio,
ilhas e continentes e o salgado mar no meio.
Cantai agora a grei de Deusas, vós de doce voz
Musas olimpíades virgens de Zeus porta-égide:
quantas deitando-se com homens mortais
imortais pariram filhos símeis aos Deuses.
Deméter divina entre Deusas gerou Riqueza,
unida em amores ao herói Jasão sobre a terra
três vezes lavrada na gorda região de Creta.
Boa Riqueza por terra e largo dorso do mar
anda e a quem encontra e chega às mãos
ela torna próspero e dá muita opulência.
De Cadmo, Harmonia filha de áurea Afrodite
gerou Ino, Sêmele, Agave de belas faces,
Sagacidade esposa de Aristeu de crina profunda,
e Polidoro na bem-coroada Tebas.
Virgem de Oceano, pela multiáurea Afrodite
unida em amor a Aurigládio de violento ânimo,
Belaflui pariu o mais poderoso dos mortais,
Gerioneu, a quem matou a força de Heracles
pelos bois sinuosos na circunfluida Eritéia.
De Titono, Aurora pariu Ménon de brônzeo elmo
rei dos etíopes e o príncipe Emátion.
De Céfalo, deu à luz um esplêndido filho,
o forte Fulgêncio, homem símil aos Deuses:
na tenra flor de gloriosa juventude
a Sorridente Afrodite arrebatou-o e levou-o
ainda criança e dele no sagrado templo
fez o guardião interior, nume divino.
Virgem do rei Eetes sustentado por Zeus,
o Esonida por desígnios dos Deuses perenes
levou-a de Eetes após cumprir gemidosas provas,
as muitas impostas pelo grande rei soberbo
o insolente Pélias estulto e de obras brutais.
Cumpriu-as, e chegou a Iolcos após muito penar
o Esonida, levando em seu navio veloz a
virgem de olhos vivos, e desposou-a florescente.
Ela, submetida a Jasão pastor de homens,
pariu Medéio, criou-o nas montanhas Quíron
Filirida, e cumpriu-se o intuito do Grande Zeus.
E as virgens de Nereu, o Ancião marino:
Arenosa divina entre as deusas gerou Foco
amada por Éaco graças à áurea Afrodite;
submetida a Peleu a Deusa Tétis de pés de prata
gerou Aquiles rompe-falange e de leonino ânimo.
Gerou Enéias a bem-coroada Afrodite
unida ao herói Anquises em amores
nos cimos do Ida enrugado e ventoso.
Circe, filha de Sol Hiperionida,
amada por Odisseu de sofrida prudência, gerou
Ágrio, Latino irrepreensível e poderoso,
e pariu Telégono, graças à áurea Afrodite.
Bem longe, no interior de ilhas sagradas,
E eles reinam sobre os ínclitos tirrenos.
Calipso divina entre as Deusas em amores
unida a Odisseu gerou Nausítoo e Nausínoo.
Estas deitando-se com homens mortais
imortais pariram filhos símeis aos Deuses.
Cantai agora a grei de mulheres, vós de doce voz
Musas olimpíades virgens de Zeus porta-égide

Foto de Dirceu Marcelino

SONHOS DE MENINO II - RETORNO DA LOCOMOTIVA Nº 58 DE PORTO FELIZ PARA SOROCABA

POESIA
MARIA DO CARMO

Eu me lembro bem de você assim!
Pelos trilhos da Estação Sorocabana
Rodavas em movimentos sem fim

Vinhas da oficina sempre assim...
Toda engraxada e ilustrada...
E apitava sempre assim...

Eras como uma jovem fogosa
Entravas como estivesse num salão
Dançavas de forma estrepitosa

Com o jovem em idade nupcial
Rodavas em movimentos sem fim
Como dançasses na estação principal...

Tiravas os vagões
Como se fosse para dançar
De grandes composições

Levava-os até a oficina
E depois os repunha no mesmo lugar...
Essa era a tua sina.

Lembro-me que te chamavam “manobreira”...
Posteriormente, conheci outras que faziam assim
Em vários ramais das ferrovias brasileiras.

Agora ao te ver nessa estação secundária
Eu te pergunto:
O que fazes aí toda sedentária?

Ah! Eu entendo e respondo por ti.
Tu me vias com olhar de menino
Com o coração cheio de amor...

E na realidade as coisas não são bem assim...
_Rodei muito! Não era dança o que vias
Era trabalho árduo e sem fim...

Trabalhei nos trilhos de Ipanema
Puxando lâminas de ferro
Até o tronco principal...

Viajei por outras paragens
Até o rio Tietê em Porto Feliz
Transportei cana de suas margens

Levei para o engenho central
E prá levar a sacaria fiz muitas viagens
Até o tronco principal...
Até o tronco principal...
Até o tronco principal...

Também transportei muita gente
Em inúmeras viagens
E por isso sou feliz

Sempre rodei pelo tronco principal
Mas estive estacionada
No parque do “Quinzinho”

Lá comecei a me deteriorar...
Embora fosse só um tempinho
Mas encontrei gente prá me olhar...

Então me levaram para Anhumas
E por nobres homens operários
Minhas peças uma a uma

Pela ABPF foram restauradas
E foi lá que tu me viste.

Sei que tens saudade!
Agora estou de volta,
Prá esta bela cidade.

Cheia de fôlego e pronta pra rodar...

Mas não sei por que fico estacionada
É só me darem água e lenha,
Botarem fogo na fornalha

Que eu começo a rodar assim...assim...sssim...sss
Como antes por este ramal...
Já andei por aqui sim...sim......

Muito antes de nasceres
E irei até o fim...assim...assim...
Se de mim tu cuidares...

Rodarei assim, assim...assssim...
Neste ramal de Votorantim

Sorocaba, 16de outubro de 2010-10-16
Dirceu Marcelino

Foto de Dirceu Marcelino

CAMINHOS DE FERRO II - PINTURA DE RAFARD POR TARSILA DO AMARAL

HOMENAGEM À GRANDE MESTRA DA PINTURA BRASILEIRA,

TARSILA DO AMARAL, nascida em 1º de setembro de1886, na Fazenda São Bernardo, atualmente, pertencente ao município de Rafard. A poesia foi inspirada na pintura de autoria da grande mestra, que segundo me parece não têm as grandes exposições das obras ABAPORU, CENTRAL DO BRASIL, MANTEAU ROUGE etc, mas que é importante na linha dos meus trabalhos sobre temas ferroviários.

CAMINHOS DE FERRO II - PINTURA DE RAFARD

O caminho de ferro está traçado
Com o trenzinho em tua gravura
E o rio Capivari ali esboçado
Historia o início de tua cultura.

A confluência natal de teu legado,
Deixa-nos ver sem esforço ou procura
O engenho central bem delineado
Na linha de traço negro da textura

E bem ao alto a mata de São Bernardo,
Ao centro as casas com suas brancuras
E a Matriz em plano mais elevado,

Sobrepõe-se ao verde da agricultura
E as ruas e estradas de tom amarronzado
Do primeiro mote de tua pintura.

Foto de Arnault L. D.

A matéria da realidade

Penso em você mas não vejo
imagino seu roto, e nem sei
você assim presente em tudo
em projetos e desejo
nos planos que inventei
feitos de sonhares e escudo

Nas poucas coisas que tenho
seu nome, jeito, perfume
preencho de vontades a gosto
nas historias lindas que engenho
as fantasias trago lume
tocar detalhes do seu rosto

O que se faz destas estorias
que acontecem em paralelo
como noutro mundo, refletido
no real, como se memórias
que se ligam elo após elo
alem da ilusão e sentido

Deixar o futuro correr incerto.
Nada é preciso, tudo em pendente
As portas abertas, ao acaso exponho
sem contar, sem regras, em aberto.
Não mate na razão o amor que sente.
Uma parte do real um dia foi sonho

Foto de Peter

Fico aqui

Ai quem dera poder um dia
Dar-te conforto e companhia
Até quem sabe talvez casar
Sabendo que não me ligas
Eu escrevo sem me cansar
Vou tentar, faço figas

Escrevi e tu nem nem meia-hora
Não ouviste e foste embora
Por tanta indiferença
Eu quis marcar a minha presença

E com todo o meu engenho e arte
Com a força de um coração que não parte
Investi, e continuei
Tive outras chances e recusei

Pois tu és aquela que eu mais amo
Nem mil anos quebrarão este ramo
Esta ligação tão forte, sem esplicação
Sei que a sinto no meu coração

Com esse brilho de diamante
Mais que uma simples amante
Um sonho de mulher, que amo
A teu pes és o meu amo

Agora so meu resta esperar
E pelo teu amor aguardar
Sei que não demora
Ainda assim não vou embora.

Pedro Gomes

Foto de Manoel Lúcio de Medeiros

MÃE, A ROSA PREFERIDA.

Soneto de Malume (Manoel Lúcio de Medeiros).
Fortaleza – Ceará – Brasil. 10/05/2009. 09h30min.
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Nasceste para amar e dar a vida,
O sonho mais singelo que ganhei,
Das flores és a rosa preferida,
Mãezinha, o amor que me agradei!

Eu agradeço a Deus porque te tenho,
Comigo, todo o dia ao meu lado,
Tu és da nossa casa o engenho,
Que limpa, e deixa tudo arrumado!

Perdoa oh mamãe qualquer ofensa,
As horas que eu te trouxe a solidão,
Quando eu podia estar só ao teu lado!

O teu amor nos faz a diferença,
Pra te guardar sempre no coração,
E te amar, sonhar e ser amado!

*´¨)
¸.•´¸.•*´¨) ¸.•*¨)
(¸.•´ (¸.•`
Poeta Malume.
Direitos Autorais reservados.

Foto de Lou Poulit

CANTOS RECENTES DO POETA PASSARINHO (PROSA E VERSO)

BLASFÊMIA

Porque eu não quis o fardo de perdê-la, com cada dardo de luz a sua estrela moça me apunhala; mas o tempo entre nós, de dedo em riste, fez-me triste pela sua intangível plenitude. Em quietude, reflito. E me lembro da sua pele tesa, ansiosa sobre trêmulas fibras, me comendo como a uma jovem presa predada às sombras frescas do dia (hoje dessa minha tristeza). Como esquecer suas tramas ingênuas, de uma mulherice de reações rosadas vestida de saltos e brilhos para a noite? Como resgatar tão tênues limites tangidos pelo olhar, quando dissimulando bramidos e silêncios de um improvável e profundo mar fazíamos concessões fugazes, como espumas na areia?

Porque como um bardo adolescente eu quis detê-la, e ao seu instinto inevitável na ponta dos pés, a sua estrela ferida por outro vagueia ao rés dos meus exílios e possui os brancos fartos dos meus pelos, sem pressa, até dos meus cílios, ferrenhas grades dos porões dessa minha lágrima tardia e inconfessa. Reflito. À beira de penhascos resvalo, e reflito. Sob o trepidar dos cascos da memória me ralo, mas ainda reflito. Mesmo ao engasgo com que rasgo os vazios subterrâneos da minha decrépita esperança, desesperadamente reflito!... Até que refletir seja apenas um estratagema, ignóbil, imperdoável e ironicamente necessário, que à transitoriedade de tudo blasfema: o amor não tem idade!

Mas é tarde. Porque entre a reflexão e a lágrima já não há vago, é tarde. Porque a certeza que trago caminha de bengala, porque não se cala mas já não trama, é tarde. Porque o fim de quem ama não está no decurso do tempo nem no percurso da distância, mas na vagância de não amar; nem na demência da moral nem na presença de juízo, mas na ausência de saudade; o fim de quem ama está em não se exercer o tempo. A melhor de todas as minhas descobertas fora encontrar, nas flores abertas, o divino de cada mulher, em que devia crer como menino; mas a pior de todas as minhas íntimas blasfêmias, foi não me prostrar ao que sempre houvera crido nas fêmeas.

(Itaipú, mar/2008)

AMANTE EU ME QUIS

Amante eu me quis
E ela quis-se prenda
Cio e cena, senda
De uma bela atriz;

Jugo e julgamento
Paguei preço justo
Mas depois, que susto...
Mesmo hoje inda tento

Inda quero e busco
Tombo ávido e brusco
Nos dorsos da vida:

Quem sabe, com sorte
Morro inda de morte
Do amor comovida.

(Itaipú, mar/2008)

ERGUE-SE A VIDA

De sob o tempo indolente de um caminho íngreme e da sua penitência, de descer sem resvalar para saber como voltar, de não ter a quem contar como devesse ser julgada, e saber que a solidão voluntária mais que um direito é uma dádiva, ergue-se ávida a vida.

De sob julgamentos ilegítimos, os ritmos do destino crido, o protagonista interino, ferido pelo próprio veredicto, o bailarino das sombras, refém das próprias luzes, exilado no silêncio e na castidade, banido remido da cidade profana, nele ergue-se a vida, soberana.

Porque o amor não é óbvio como a nudez que se revela, porque se a procela íntima jura e insulta, a paixão mesmo impura indulta a florada dos espinhos... O amor não tem caminhos e caminha mesmo longe dos aplausos, como um monge velado por sua estrela, selado por seu arcano... Meu amor é pela vida um amor humano.

(Itaipú, mar/2008)

ANTES

Antes que me profane esse céu que eu mesmo criei por querê-la, tanto, de minha alma tardia como seu leito tardio... Antes que me sacuda um aplauso de mim mesmo arredio, e a chama expire e repouse sobre a cinza o pavio e soluce a sombra do que antes fomos... Antes que a paixão, descida dos seus tronos, renuncie à nossa milenar cumplicidade... Antes que essa saudade me deserde dos seus hormônios, pelos meus poros, posseiros das minhas estrelas, juízes dos meus himeneus... Mas antes!... Antes que meus rasgos desalinhados sejam remendados por impura compostura e se recomponha o herdeiro das idéias, dos golfos nas traquéias por impostura, a criatura completa perdida da sua costela, incontinente em sua cela: solidão... Oh, antes que uma vergonha aflita me possua e a desdita lembrança dela, inconha e nua, toque fundo no berço o sonho que já não sonha... Poesia!... Oh, minha poesia, arrebata-me das palmas desse papel frio e sedento! E colha-me em teu colo colossal... E recolha meu corpo estilhaçado, poro a poro, esse impagável fardo em que ainda agora eu ardo e evaporo, incomodado, sobre uma chama abissal.

(Carioca, mar/2008)

POR QUE SE ME DESTE?

Porque se me deste manhã, quando já não havia um luar que me oferecesse a sua esmola, implora esse meu amor agnóstico por um crepúsculo de relâmpagos e lama, arrastando-se o leito cósmico, em que se alargue bem, e aos poucos, com roucos protestos, o inventário dos meus futuros restos, aos punhados, desapunhalados dos tremores que acarinham o gozo que me assola... Eis, enfim, a mais desejada esmola!... Ah, por amor mais se amarga a ausência do que se alarga o silêncio na distância, e mais se erguem vãs defesas do que se embarga a manhã de ilesas estrelas... Pois o amor não tem sentido em si mesmo, porque dar-se exige quem o receba, ao alcance do tato! E porque o fato... É que não suporto mais essa espera! Apenas um momento quisera. Depois quis o tempo de espera. Mas o amor exagera e agora só quer tudo, o tempo todo. Não transige, não mente e mais se sente nada, tanto, tanto... Oh, por que tanto assim se me deste, Manhã?

(Carioca, mar/2008)

ESPANTALHO

Amo... Eu amo essa mulher. E se tanto eu não a amasse hoje que ruge e fulge no poço o anjo quando ela se debruça sobre o céu grisalho, eu seria tão injusto quanto um fútil amante, plantando em meu peito um inútil espantalho. Pois que se deite comigo à nossa colheita e abarrote as suas entranhas de sementes e acolha esse rio meu de estrelas cadentes (e o seu silêncio morno) à espreita
dos nossos futuros percalços, inseguranças, intrigas, ciúmes, brigas e tudo que desune. Protegido, esse nosso amor permaneça imune e ao mais profundo arrebatamento desça.

Amo... Eu amo essa mulher. E se tanto eu não a amasse em lucidez, nem fosse a sua tez a aurora dos meus escuros (toda vez que o amor se mete em apuros), o espantalho, refém do próprio espanto, em vez de um encanto seria um anjo degredado. Pois que venha o amor à mesa, e a sua chama acesa ao fio dos olhares, sobre a comovente juventude dela e a minha paixão, essa cadela indecente... Pois que se mantenha o indignado julgamento alheio longe do dorso amado, sem nenhum arreio, veio profundo dessa droga genérica, minha liberdade homérica e indigente.

Ah, como eu amo essa mulher, tanto... Com o vigor de cada fio branco, quitado com a minha velha juventude inquieta, que me arde o peito franco de poeta enquanto guarde o quanto exerça o espantalho, emancipada do talho, a emoção da minha amada.

(Itaipú, mar/2008)

CALÇADAS DESSA NOSSA VIDA URBANA

Calçadas dessa nossa vida urbana... A insana crença de ser e estar sempre dando uma chance ao destino, ser solto no mundo e, ao mesmo tempo, estar como na sala, receber e ser também recebido e, em compartilhada privacidade, desarmar o proibido. Sobretudo a nossa libido, assenhorada, indultados de habitá-la.

Alçadas pela divina verve humana (que assim profana que se preserve) ao dossel da densa solidão da urbe, por mais que lhe conturbem as dívidas das tão vívidas ilusões tão frágeis, ah, as nossas calçadas intermináveis são retos labirintos de preces devotadas, de penitências e caçadas. Nenhum decreto, nenhuma vela acesa... Qualquer promessa liberta a alma, ilesa de ser no fundo só e íntima do exíguo (ínfima queixa que nem vale à pena); à lua plena, quem precisa de liminares em lugares onde os olhares, como floradas, defloram a jurisprudência do desejo?

Pois na minha calçada predileta, hei de plantar ainda uma placa. Mas uma placa de poeta, como convite póstumo a Baudelaire e Pessôa, onde escreverei: "VOILÁ LA VOLUPTÉ". Por que não? As paixões são também portuguesas, como as volupitosas pedrinhas de Copacabana! E em baixo: "MOI ET TOI". Onde habitamos e somos habitados...Oh, as calçadas dessa nossa vida urbana.

(Itaipú, mar/2008)

ME ABDUZA

De manhã, a manchete de hoje era um salto de espinha abaixo, sem truques nem cambalachos, sem volta, sem escolta... Implume, à beira do ninho. Imberbe ao fim do caminho.

Mesmo sem ter a quem pedir ajuda ou conforto, nem morto, meu coração, eu te renego. Não te nego o direito (nem ao torto) agora que enfim tuas dívidas cairão do prego, que virá ela pousar plena ao meu tão sonhado alcance... Não caia o poleiro, o verso não canse. Porque voa essa pássara no rumo em que lhe aguarda o amor e a poesia... Pois, que à revelia ela arda! Pois que a valia de arder é ter amado.

Mas não espero ser meramente amado pelo seu amor medido em eras de anos-luz. Nem apenas seduzido. Quero ser em verdade abduzido! Varrido e vasculhado, desidratado pela cauda de um cometa, que me reduza à uma lágrima de mulher... Ah, Pássara, me abduza.

(Itaipú, março/2008)

SE FOSSE TANTO O AMOR CRUEL

Tomou-me, ufano e covarde à faina da velha bateia, à tarde, de ser notado por tardios, preciosos olhares, roubados ao céu e ao mel mas curvados ao seu e ao meu: um desertado amor magoado.

Era tanta, tanta a sua mágoa, a dessedentar-se no meu espanto, que pensei: se fosse tanto o amor cruel não cantaria seu canto a cotovia, não haveria o sonho de amar, nem (que falhassem) tantos venenos, e nossos enganos seriam pequenos.

Devolveu-me esse amor (que ainda arde) a mim mesmo, depois e a esmo, numa calçada sem esquinas: se fosse tanto o amor cruel as minhas amadas seriam todas bailarinas e aos seus palcos (tão mais ardidos) talvez me faltassem proteínas.

(Carioca, março/2008)

PINTURA FRUGAL

Súbito, nas palmas da lua o tema...
Plena e deserta a tela implora a cena
Como um teorema a ser consumado.
Ávida e nua, dádiva a ser consumida.

O amor usa de sofismas só seus
Para nos converter em cismas suas.
É demônio e é santo. Até deus!
Doando luares como hóstias cruas.

Traços, aguadas, promessas, primícias
Devassas servidas, doces sevícias...
A arte é um coito que nunca termina.
Pierrô afoito. Oh, afoita colombina!

No epicentro de um pouco épico tombo
E no assombro de um gozo nem tão estético
Em que a febre viceja (e a alma a deseja)
O artista verseja, quase profético:

Pintura frugal, a dar-se a mim estreito
Hás, limiar, de dar-se além do leito.

(Carioca, março/2008)

CANTOS GAIOS

Eis a vida, aos pés da sorte.
Um sonho galgo, galgando gratas misérias
Sem temer tombos e trombos que suporte
Nos largos ombros do anjo que lhe vier.

Donde vejo essa, na estratosfera
Perdoaria Dalila e acudiria Prometeu
Porque a eternidade é uma quimera
Para um amor tão generoso como o meu.

Do que entre fatias fugazes de amenidades apenas
Fazendo mágicas tenazes (nem tão amenas)
Seria eu eterno e inteiro entre seus dedos
Mais à vontade do que no caderno do jornaleiro.

Ah, eu pagaria com juros as minhas juras
Doando-me a ler todo dia o jornal de ontem
Só para recair de todas as minhas curas!
E loucamente amar de novo... Oh, cantem

Ao precipício entre os olhares e aos seus soslaios
Meus pássaros, os meus cantos gaios, cantem.

(Carioca, fevereiro/2008)

ESGUICHO

Um esguicho aspergindo agonia tingiu o nicho escuro da minha auto-estima, com tons claros de uma líquida e morna alforria. Eu corria tanto. Corria e corria... Como um bicho sem paz eu zanzava, sem sair jamais do lugar em que estava; preso no visgo, vesgo de amor eu não via meus escombros na poça (a que fiz jus!), do corte certeiro de um raio de luz.

Dissimulada, a estrela que fez isso (do instinto intangível, íngreme e insubmisso o poeta dócil, submerso no esgarço do velame e acoleirado pelo verso ao firmamento) quer apenas que eu ame. Ame e ame... E escame o brilho d’alma ao vento. Mas o amor teme a própria catarse e por uma múltipla entorse (do salto para dentro) exila-se num centro em que tudo se lhe roce.

Ah, o amor que desnuda e desarma... O penitente que em sua Compostela espera ungir-se com os estilhaços da janela, no entanto preserva os cordeiros do vitral; até que converta-se a noite atéia em dia, e a alcatéia em coral e a teia casta da anorexia em um esguicho lustral.

(Carioca, fevereiro/2008)

UM RAIO INSUSPEITO E ARREBATADOR

Um raio insuspeito e arrebatador entre opostos exílios, antes tramados por escolhas colhidas à razões tolhidas, nos fez amantes desertados.

Quando nada os detém, olhares detonam uma reação em cadeia servida à ceia de um desejo vasto, em que sós nossas testemunhas somos, ideais sem pejo de aias e mordomos, comensais intrépidos em tépidos covis...

Oh, tépidos covis da madura idade!
Oh, ledos covis sem cocho ou grade!

Um olhar insuspeito e arrebatador do exílio colheu-me e comeu-me à flor da minha abissal leviandade; a lágrima fringiu-se e evaporou-se, cingiu-se de cinzas o peito que a trouxe, decerto, meus covis hoje correm a céu aberto.

(Engenho Novo, fevereiro/2008)

JARDIM DO ABISMO

Nem eu me lembrei do tempo nem ele se apercebeu da minha ausência, mas se agrisalharam os meus pelos... Nem eu quis vertê-los nem capturei os seus buquês, mas os momentos voaram do cálice... Seixos que um dia, talvez, encaixem-se, a memória amontoa, assim à toa, cobertos de pó nos recônditos do absurdo... Em cada beijo um estalo, eco surdo de lirismo, que roga um resvalo à nudez das paredes. Ah, os dias sem amar... Ajardinam o fundo do abismo.

(Largo da Carioca, fevereiro/2008)

TEZ SEM EXTREMOS

Ah, porque ela não tem na tez extremos
(Salvo os olhos, que também são morenos)
Pouso a alma e vejo o meu próprio reflexo
Porque o sexo, estância além do mundo

Rio profundo, caminho estelar
Grafara n’alma, ao silêncio das curvas
Feitas sem o zelo de me tomar
Dos limites: A morte não me quis.

Restou, feliz, este amor são e salvo
Alvo das suas perguntas tolinhas
Rangendo as janelas donde as rolinhas
Nos espiavam, pelas persianas;

Em preces profanas, tão doidivanas
Sim, eu amei... E como nunca soubera;
Porque não era o fim a antiga era
Porque eu não estava ainda preparado.

Pouso alado (ao lado a tez sem extremos)
No ermo lúcido do amor em que cremos.

(Carioca, fevereiro/2008)

VENHA

Venha, porque eu tenho
Bem mais do que fui
E donde hoje eu venho
A dor não possui;

Venha, porque trago
Bem mais do que cabe
Neste meu vago
Que ninguém mais sabe;

O meu sonho é um salmo
Na tez d’alma escrito
Com letras de um palmo
E ainda a ser dito:

Se o afago perpassa
A tona do lago
E é luz o seu cio...
É o amor que trago

Guardado e tardio...
Divina devassa.

(Carioca, fevereiro/2008)

QUISERA O AMOR QUE EU AMASSE

Quisera o amor que eu amasse
Tanto, tanto ele quisera
Que ao desarmar-se o amor que era
Ele antes me devassasse.

Quis o amor assim tocar-me
Tanto, tanto, o sol ao lis
Que o céu que de mim eu fiz
Devassou a minha carne!

Será sempre o amor assim.
E eu serei sempre o que sou
Sem saber mais que soubera.

A me armar, como arlequim
O amor vem (quem nunca amou?)
Deserdar-me do amor que era.

(Carioca, fevereiro/2008)

ME SABER ME BASTA

Eu dissimulava por onde fosse. Cantava o tempo todo. Sussurrava, depois quase gritava. Ah, eu cantava, cantava, cantava... A música era a da amada, sua preferida. Eu a tomava emprestada. Se pudesse, seria capaz de roubá-la! Eu dissimulava perdidamente. Colhia todos os olhares do caminho mas só ficava mesmo com os dela... E com a carne úmida dos sorrisos e o risinho tímido dos mamilos e o andar, que mal tocava os pisos, e os glúteos. Glúteos? Oh, comprimi-los...

Eu dissimulava enquanto ria de mim mesmo. Não por auto-piedade ou desestima. Eu dissimulava piamente! Ela era um templo, uma porta entreaberta. No nicho, uma absolvição além da palma, roçando a alma como açoite de dia, de tarde e de noite, vazando entre os dedos da mão tenaz. Sonhada... Uma graça fugaz sob a coberta de credos e dogmas deserta. Generosamente incontinente. Mas até seu resíduo era emprestado, como tudo o que era dela crido. Até que da vidraça fez-se o alarido de miríades de estrelas, janela afora vazada.

Mas não doeu nada, não doeu nada... Eu mesmo fiz isso. Avidamente eu mesmo fiz isso... Não há mais no que crer. Me saber me basta.

(Itaipú, fevereiro/2008)

O ESPELHO E A BAILARINA

Esse amor meu de poeta...

Cuja paz decreta e se professa ungida
Que, impune, confessa ser a própria sobrevida
Do réu imune, ao rés de mais uma vez tocá-la
Com um arrepio de sopro, pele tão desejada...

É uma montanha que jamais se cala!
Mas resvala e em profundo silêncio se esbate
No magma de um improvável vate.

Dentro dela habita uma estrela antiga
Que sussurra uma cantiga e nina a emoção
De ser a mansão e a monção da bailarina
De infladas cortinas e peito pronto a se fender...

Oh poesia das entranhas do ensandecido
Sou eu que fendo! Sou eu que fendo! Eu, a montanha...
Ao gume úmido, entre arabesques colhido...

Na poça, em que de versos me embriago seu
Tombam a lua e o gozo com que pago eu
As minhas brancas súplicas no breu da fonte...
Então... É a poça que seduz o lago?...
Ou a dor de amar? Que a ninguém se conte...

Esse amor meu de homem...

Cujos olhos comem a carne emancipada
E que verte o sonho e o seu torpe inchaço
No levitado abraço do amor da amada
Não aconselha jamais o que se cobre...

Mas esse nobre amor meu sempre a espelha
Concede a verdade e a fantasia e as espalha
Aos dentes da noite e aos palcos do dia...

Que dentro do espelho havia nela um abismo
Por cujas paredes o seu sismo, que a desvalia
Refém das suas areias e dos meus espumados dedos
Escorregava e em mim cravava velhos medos.

Oh céus dos meus sentidos
Eu fui o mar! Eu fui o mar! E o espelho-mar...
Mas sou agora os rochedos... No olhar, bramidos...

A moça, estrela cujo sonho na poça repousa
A senhora da lousa, de sapatilhas desatadas
Confia como as fadas no amor frugal, mas ferina
Despetala o seu amor de bailarina, cada centelha à mó
Do aço nu... Do espelho amado que a espelha só.

(Itaipú, Fevereiro/2008)

HOJE A CELEBRO, TÃO GUARDADA

Não era minha, nem tua
A mão que encrespava o mar
Pastoreava o vento
E escavava os grãos de areia...

Nem na vinha, nem na lua
Nem ao amor restava amar
Tão doce, o resto lento
Mais que o sonho pastoreia...

Era d’alma dos amantes
Que, indelével, o tempo habita
Montando em pelo a delícia
De sermos assim da vida

Ermos d’estrelas distantes...
A lembrança mais bonita
(a mais eterna primícia)
a emoção na voz contida

Celebrada, tão guardada:
Como, Sempre, és tão amada...

(Itaipu, mai/2007)

PREDESTINAÇÃO
(Poema Tríptico)

Manhã I

Há dias, Mulher, em que dias hibernam
Como cios em que se deveria amar.
E dias que tardios anunciam:
O amor vem... E nada o poderá evitar!

Como ígneos folguedos cósmicos
Astros saltam reluzindo, acima do mar
Das profundezas do desejo vindos.
E na areia a luz de um gozo rendado
Extrema unção de um amor guardado
Prenda-fruto do silêncio e da madrugada...

Ambas fugidias...
Nossa alma vagueia
Como fossem dois dias.

Tarde II

No entorno do sol se ergue uma ciranda
De palmas morenas escritas por Deus...
Os sonhos meus andam apenas
Centúrias pequenas, que eu mesmo cri.

No entorno da rua em que habitam passos meus
Não quis Deus nenhum cão nos portões
Mas vagalhões vieram de longe
Ilhar de olhares vários meus olhos perdulários
E varrer do poente os meus azimutes de monge...
O rastro não mente, eu mesmo o escrevi.

Areia antiga...
Que amor te trouxe, Branca, a perdê-los
Os brancos fios dos meus cabelos?

Noite III

No fundo do covil, ao rés do céu,
Prostrou-se (quem viu?) o cajado como um manto.
Nenhum fogo apagado aquece tanto...
Só a morte em que não se morra, só a borra de aço-mel.

Ah, Tristezas, que me fizeram dulcíssimo mecenas
Palmas morenas (em que eu não previ proezas)
Te aguardam, madalenas,
Porque uma só Madalena haverei de tocar, tanto...
Mesmo antes de chegar, sanha e pranto
Essa vaga já me alarga, com o tanto que é feliz.

Desencanto: Dalva-Lis...
De lãs que não vesti mas, por um triz, já me afaga.
Há manhãs, Mulher, que jamais teriam paga.

(Itaipú, 30/ago/2007)

ANIVERSÁRIO DA MIXINHA

Hoje celebro uma estrela, extrema estrela velada pelos véus de antigas eras, de fogaréus, de esperas, quimeras, deveras dada; que em silêncio crepita n’ara desdita que lhe valha a dor do peito. Acalenta. E por direito se apascenta dos lapsos de um anjo canalha...

Hoje celebro uma fêmea, efêmera crença minha, roubada a um conto de fadas por arcanos, comezinha; e por anos de vigília, ppr um gozo que eviscere a plenitude, em que se esmere a rapsódia do claustro. Fausto íntimo, fausta chama, que só não cala a quem não ama.

Hoje celebro uma luz que só nus temos por nossa; querer bem a um anjo alado, de um querer que não se apossa, é um amor iluminado, que não se pode tocar sem que se toque a si mesmo, por inteiro. É o amor mais verdadeiro... Inconho amor, já por si mesmo tão naturalmente celebrado.

(Itaipú, maio/2007)

Foto de JGMOREIRA

AINDA LEMBRAS? I

AINDA LEMBRAS? l
RRR

Talvez ainda tenhas neurônios
Talvez ainda recordes, pense e sonhe...

Quem nos viu não entendeu
Quem viveu foi sepultado
Vivemos em catalepsia
Seremos fetos no formol?
Seremos um pouco de dó em si-be-mol?

Ah, realmente me concebi no teu ventre fértil
Fui algum dos espermas que ejaculas sem prazer
Faço concorrentes na tua memória áudio-visual
Serei teu encontro provocado-casual?

Ah, meu amor, os homens marcham
As guerras se abastecem de almas desvairadas
E nós? Dois bêbados lúcidos a perambular
Sem importância por qualquer lugar
A pensar, queimando os fios do cérebro
A confundir os sistemas gastos
Convencendo nossos espíritos
A convalescer de cada endemia de mágoa.

Realmente já passei dos talvez
Sou fruta madura à espera de solo com ph
Mais propício, úmido, fecundo
Já sou a anciã desgastada que foge calada
Cabeleira alvoroçada

E tu?
Rocha metamórfica
Tumulo descaverado
Alquimista falido
Engenho inacabado
Pecador sem pecado
Inseto urgente de formicida
Autômato despilhado

Eu vivo e sobrevivo
Sempre recomeço dos barrancos aos trancos
Sobre pés descalços, raros tamancos
Os homens olham, mas não me vêem
Os meus olhos olham sem enxergar
Procuro a forma simples de amar
Como amo a ti
Amo do amor mais profundo além do corpo
Para dentro da alma
Não vejo teu amor em ninguém, solto por aí
Não ouço o que diz a tua boca lacrada
Não rio seu riso em dente algum

Tanto amo que desamo
Nem sei se estou dando ou negando
Orando ou odiando
Subtraio ou multiplico
Se retrocedo ou ascendo no holocausto de espinhos

Não falo mais de coisas normais, informais
Imorais, sensuais, iguais, banais
Ando escutando sem ouvir
O astigmatismo me castra as pupilas
A miopia retrai o nervo ótico
Encurta os espelhos, já nem me vejo
Nem te vejo refletido nas poças de chuva

Ainda lembras-se das não promessas?
Dos teus adeuses solitários e burros?
Dos retornos às pressas com ar soturno
De quem lançou as últimas moedas no poço do infortúnio?

Talvez ainda recordes, sonhe e ao acordar, pense
Que sequer existimos.

Um dia/1979

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