Dia

Foto de Rosamares da Maia

Façam Backup

Façam Backup
Eu tenho medo de que as ideias fujam de mim e por essa razão aprendi a usar o computador.

E não é bobagem, eu já vi muita ideia fugitiva, que simplesmente abandonou a cabeça de seu dono. Não é exagero!

O dono da cabeça fica com aquela expressão meio apalermada de quem come alguma coisa sem sal e sem açúcar. Tudo fica sem nenhum sabor.

Armazeno todos os dias um pouquinho de mim, enquanto lembro.

Eu vi a parafernália que ficou a cabeça da minha mãe, que inesperadamente desencontrou-se da sua vaidade de mulher, da mão para cozinhar, das opiniões sobre o mundo. Não! A memoria humana não tem backup, por isto quando um Cavalo de Tróia chamado Alzheimer de instala no nosso sistema, tudo se desalinha. Os programas armazenados na memória entram em total colapso. Na maioria das vezes somos obrigados a formatar, para tentar realinhá-los, mas, com a ausência do providencial backup, que particiona a memoria em algum lugar do disco rígido ou no HD externo, tudo simplesmente some.

Toda uma vida de estudo, trabalho, casamento, descasamento, filhos, netos, pais irmãos e amigos, tudo o que você amou, construiu e conquistou vai embora, tornando a vida um imenso vazio, onde a incapacidade de reter o conhecimento, ou pior, os sentimentos sobre tudo o que conhecemos escorre pelo ralo da memória, ou da ausência da memoria e nos tronamos indigentes.

Aprendi a usar o computador, nele protejo desta indigência todos os pedaços de mim, todas as minhas coisas, desde atos importantes da vida civil, fotos, filmes, conquistas, ideias e coisas tolas, muito tolas também.

Santa tecnologia! Saibam todos que se algum dia eu me perder na teia estranha da memoria, que aceita um trojam chamado Alzheimer, tem um botão bem na minha frente, apertem e voltem cada pedaço de mim, cada momento, em tela total, bem grande.

Salvem-me do anonimato, da perda da credibilidade humana, de não saber mais tomar banho ou escovar os dentes, de não passar rímel ou batom, de não reconhecer o meu filho e ser capaz de expressar meus sentimentos, em fim, de ter autonomia para dizer sim e não.
Por favor, me façam reaprender me revendo todos os dias enquanto a cura não vem.
Mantenham o backup da minha dignidade intacto, ou então, me deletem para sempre.

Rosamares da Maia

Foto de Rosamares da Maia

CRÔNICAS DA SAUDADE - O Cantar do Galo

CRÔNICAS DA SAUDADE – O cantar do Galo.
De repente ouço um cantar de galo ao longe e o inusitado no mundo urbano abre uma porta para uma enorme nostalgia. Instalada no meu peito sem pedir licença, ela dói de forma aguda. Fecho os olhos, encho o peito de ar num suspiro profundo e como num filme, vejo caminhos de terra batida, dourados pelo sol em claridade tão intensa e morna que quase consigo materializar o momento. Vejo laranjeiras, goiabeiras, sinto o cheiro do mato orvalhado pelo sereno das madrugadas e flores e folhas se embebedando. O galinho que canta ao longe de forma repetida, insistente faz meu peito se abrir sem quer, ardendo de uma saudade com gosto de infância, de avó lavando roupa na tina de madeira do fundo da casa.
Tina de madeira para lavar roupas. - Alguém mais já viu isto? Eu lembro nitidamente, tinha um pedaço de madeira com costelinhas que se enfiava dentro da tina para o esfregaço. Vejo a enorme pedra arredondada bem no meio do terreiro desafiando o tempo. A pedra instalara-se ali, como prova material de que algum dia tudo naquele espaço fora um oceano.
Todos nós crianças e netos ou não, adorávamos brincar naquela pedra, e certamente ela, testemunhou muitas outras infâncias. Subíamos, pulávamos e caiamos. Meu irmão que sempre quis ser super-herói improvisava uma capa nas toalhas de banho ou algum outro pedaço de pano que estivesse para lavar e voava da pedra com sua espada de cabo de vassoura para salvar o Mundo.
A cantoria do galinho indigente que agora escuto, somente no sentido de remexer as entranhas da saudade, trouxe-me neste exato momento o cheiro da madeira queimando no fogão de lenha e do feijão, cozendo na panela de ferro, feijão que meu irmão um dia mexeu com um pedaço de pau em brasa, lenha do fogão. Minha mãe quis pegá-lo de tapas, mas minha avó, somente riu com as bochechas avermelhadas e mandou que ele fugisse para não apanhar dizendo: “Ora deixa o menino, isto é coisa de criança”. Ela protegia todos os netos, perto dela ninguém levava tapas palmadas, surra então, nem pensar.
Tenho saudade do meu irmão que hoje sequer fala comigo, mesmo estando ao alcance do meu abraço, pois ambos esquecemos como se abrem os braços e se abraçam fraternamente os irmãos. Do menino franzino que não conseguiu salvar o Mundo, nem mesmo o nosso pequeno mundinho. Estou com saudades da minha avó conciliadora, que jamais deixaria isto acontecer, mas ela, não está mais aqui e tudo mudou. Tem uma eternidade que não vou ao terreiro dos fundos da casa de minha avó, nem sei se aquela pedra existe mais. - Será que virou concreto? Sei que há muito deixou de existir a cozinha feita de “barro a sopapo”, com o fogão de lenha e as panelas de ferro em cima, cozendo com amor para a família.
O sol nasce a cada dia e continua banhando os caminhos. São ruas asfaltadas, cimento e concreto e ele, queima de forma impiedosa e dolorida a minha pele, não me faz carícias como no tempo de criança. De repente o cantar insistente do galinho me desperta do mundo para o qual me levou, lembrando abruptamente, num suto, de que eu também deixei de ser criança.
Rosamares da Maia

Foto de Carmen Lúcia

Eu sou assim

Eu sou assim

Eu sou assim...
Verso inacabado,
poema sem fim
palavra posta de lado
esperando um texto de mim.
Cortina descerrada,
janela aberta,
vento soprando velas,
varrendo quimeras,
professando sua crença,
sua descrença,
sem pedir licença.

Eu sou assim...
Canção desafinada
tocada por nobres
e frios sentimentos
adaptados aos momentos
de instabilidade emocional,
passional, existencial,
quando a razão fraqueja
e o coração, racional,
pulsa num mundo irreal
a realidade que almeja.

Eu sou assim...
Eterna procura de mim.
Estrada torta, caminho sem volta,
em busca da flor que não existe,
da dor que não mais revolta,
do amor que já morreu,
da estrela que ainda persiste
brilhar um universo que inexiste,
mas o brilho se perdeu
num céu que por hora resiste
em enfeitar os dias meus.

Eu sou assim...
Desconhecida de mim.
Preciso me achar,
dar-me um pouco mais de alma,
devolver-me, enfim.
Sentir a luz se acender
iluminando o meu sim.
Comigo mesma sorrir
e todo dia partir...
Encarar o contratempo
sem desperdiçar o tempo
ocioso, precioso, raro.
Viver até o fim,
deixar de ser assim.

_Carmen Lúcia_

Foto de raziasantos

Saudade do Meus Tempo de Menina!

Saudade do meu tempo de menina.
Onde eu corria entre as montanhas...
Subia no alto da colina para enterrar meus segredos, colecionava sonhos na certeza que todos iriam se realizar.
Saudade do meu tempo de menina onde jogava amarelinha
Caminhava sozinha sem medo de o lobo mau me pegar...
Corria entre os cafezais, nadava nua no rio, ouvia os cânticos dos pássaros, sempre a festejar!
Quando o sol ia se pondo ao longe ouvia o berrante tocar.
Anunciando que a noite seria de cantoria e modinha pra dançar.
Saudade da menina, de pés descalço dançando no brilho do luar.
Entre o verde colorido bailava inocente sem medo de a noite chegar.
Ao cheiro do agreste a terra molhada pelo orvalho de mais uma noite de luar.
As estrelas sorridentes aplaudem a menina pequenina que sorrir sem parar.
Dança inocente menina...
Ouça o canto da sábia, corram entre aos campos verdes coloridos!
“Amanhã você vai crescer e tudo ficará para trás”...
Saudade do meu tempo de menina onde os sonhos eu podia embalar.
E a noite não me trazia medo, pois sabia que ao amanhecerem os pássaros iriam me acordar.
E ao cheiro da terra molhada, o vento como caricia espalharia o perfume das flores no ar.
E um novo dia iria recomeçaria sem medo dos vilões que viriam para meu mundo verde destruírem...
Saudade do meu tempo de menina de ouvir novamente o canto da sábia!

Foto de Rosamares da Maia

Meu amor menino

Meu amor menino

O meu amor é ainda um menino bonito e suave.
Que ri e canta pelas madrugadas de olhos abertos.
Suspira quando a luz desponta anunciando o dia.
Celebra e ama mansamente enquanto amanhece.

O meu amor deita em meus braços dia a fora,
Mas é ele quem me embala, conforta e aquece.
Fala fácil ao meu coração, pois dele tudo conhece.
Seu calor protege minha pele e me afaga a alma.

Meu menino é suave, mas também é homem forte.
Que me trás rosas escondidas no jardim da noite.
Seu coração é pássaro liberto que voa sobre o mar.
Eu sou vela solta ao sol, navegando com o vento sul.

Meu amor tem asas e dentes brancos como pérolas,
Que me sorriem como um presente de pura claridade.
E quando em perigo me perco em sonhos, ele pousa.
Calmamente me desperta e corrigi a rota da realidade.

Foto de Moisés Oliveira

O amor sumiu da terra

Não se acha mais, na vida não há perdão,
já sumiu da terra, foi embora sem razão.

Ele deixou saudade, frase por completar,
não se acha o sentimento, tudo fora de lugar.

O dia sem ele é noite, violência sem razão,
o jornal escorre sangue, nem doi mais no coração.

De quem estamos falando? Não preciso explicar.
Falo do amor mas pode ser tudo, nada parece funcionar.

Foto de Alexandre Montalvan

Casa Vazia

Era casa vazia e muito pouco fazia

Não havia vida, ouvidos para ouvir.

Partes da história nela se perdiam

Pois vida ali inerte deixava de existir

Havia véus que cobriam seus medos

Tentando esconder velhas conversas

Faladas na beira das nervuras rasgadas

Meias palavras perdidas em segredo

Apenas vazia e sem alma a pobre casa

Cansada era corpo assentado na terra

Era ave sem bico sem penas sem asas

Era casa era sonho era dor era espera

Tudo e nada, era apenas o que restara

Incrustada na beira morta da estrada

Efêmero coração (em dia de ventania)

Uma lágrima rolava umedecendo o chão

Alexandre

Foto de Alexandre Montalvan

Feiticeira

pintada de sol,com gosto de sal
banhada de mar.
quadril oscila de lá pra cá,
de cá pra lá

fera a espreita
pronta pra atacar
quando a lua enfeita a noite
ou o sol da luz ao dia
tão complexo seu balanço,

seu ensejos
delirando eu em desejos
pela pele alva e macia
de noite ou de dia
esta moça tem o dom
de enfeitiçar

Foto de Carmen Lúcia

O sineiro

Ressoa o sino...
Badaladas ininterruptas,
simultaneamente
sonoras e abruptas.
Celebra o quê?
O que comemora?
O dia que nasce?
A tarde que morre?
A chegada?
A partida?
O encontro?
A despedida?
Soleniza funeral?
Da morte, um sinal?

E o sineiro não se cansa,
persiste até onde o som alcança
ultrapassando sua barreira...
Pendurado na corda,
envergadura torta,
cumpre a missão rotineira.
Lembra o corcunda
das badaladas soturnas
da catedral de Notre Dame.
Incompreendido, sofrido,
quase sem alma, inânime,
jorra sua deformidade,
a dor do amor- castidade
ao ribombar o sino
que trepida a cidade.

_Carmen Lúcia_

Foto de Moisés Oliveira

Adeus

Espantei mil fantasmas que você deixou,
quarto, sala, jardim; o dia mal começou.

Queria encontrar uma forma de te ver partir,
mas com você distante não sei mais pra onde ir.

Aqui chega ao fim nosso lindo poema,
leve consigo a culpa e não se arrependa.

Não sei se um dia as lágrimas vão secar,
mergulho fundo nelas, esse é o meu lugar.

E se um dia doer a falta do meu amor,
não me diga nada, já provei esse sabor.

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