Baús

Foto de João Victor Tavares Sampaio

Setembro - Capítulo 8

E o gueto seguia a sua sina. Agosto continuava. De um lado, haviam uns pobres-diabos, de sangue quente e ralo, fracos como sua carne. De outro, os de sangue frio, os nobres, os prostituídos. É impressionante como esse universo em que vivemos sempre apresenta dualidades. O bem e o mal, a ordem e o caos, o positivo e o negativo. A vida e a morte. O destino e a discórdia. Parece que a chave da nossa existência, consciente, até que prove o oposto, é o puro e estúpido conflito entre um lado e outro. Como o branco e o preto, o homem e a mulher, eu e você. O amor e o ódio. A indiferença... As aparências enganosas...
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Clarisse, puta e fresca, mandava e desmandava após a morte do déspota Justo. Ela o envenenara, diziam os mais ácidos. De todo jeito, exercia seu poder de forma objetiva, sem rodeios para punir ou matar. A fome crescia. As rixas entre uns e outros esquentavam a frieza da antítese coletiva do buraco onde estávamos. Os tons variavam, para Clarisse, cinza e vampiro, para o povo, vermelho e sombrio. As facções tomavam conta do que o poder não se importava. E a turba, tarada e convulsiva, cantava assim:

- Morte aos infiéis! Aos traidores da fé e radicais! Morte aos sujos, aos virais! Que Deus abençoe os puros de espírito e só eles!

Clarisse ouvia e fingia que não.

- Esse bando de idiotas... Pensam até que fazem alguma diferença no mundo...

Clarisse se enfeitara de todas as jóias, roupas, perucas e os mais escandalosos adornos. Maria Antonieta sentiria inveja dela, se hoje possuísse a cabeça no lugar. Ela fizera um acordo com os dominantes, que poderiam explorar o que e quem bem entendessem do gueto sem interferências, desde que mandassem o mínimo de dinheiro e suprimentos para baixo. Uma troca perfeita. Bugigangas por ouro. Espelhos, pentes, pelo Pau-Brasil. Água potável por celulares. Qualidade de vida pela favela, e por aí vai. Enfim, tudo ia calmo e sossegado, até que os seres superiores decidiram controlar o crescimento populacional do gueto. Seu plano era jogar cocaína nas fontes de beber aos babacas de sangue quente. Marginalizar, culpar, destruir. Mas o efeito que obtiveram foi muito diferente do esperado.
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Pois bem, um Belo dia os dominantes jogaram o pó na água:

- É o pagode!

E o povo continuava:

- É o pagode!

O mantra se espalhava como a sangria de um cordeiro indesejado. Barrabás sorria. O reino dos homem resplandecia em alegria e empolgação.

- É o pagode!

Os dominantes jogavam o pó, jorravam, Clarisse deixa o canibalismo rolar solto. A massa é burra. Mas por ser massa, é manipulável. Quero dizer, todos ali tinham vontade própria, mas podiam ser condicionados. Outra hora eu estava falando com o Skinner, e foi isso o que ele me disse. O Planck discordou, mas o Planck discorda até dele mesmo. Já o Zeca Pagodinho assinou embaixo. Eu gosto do Zeca. Ele é legal.

Não se sabe bem como, mas em determinado avanço do batuque, as macumbas se intensificaram e o fogo começou. Não sei se o fogo foi proposital, se foi um gaiato que tocou, ou se foi uma empreiteira. Eu só sei que a chama subiu pelas paredes, madeirites, celulares de tela plana. O fogo destruia os crediários, os baús da felicidade, as roupas de marca, toda a tristeza de barriga cheia que o gueto alimentava para continuar a receber esmolas. Uma pomba andava os telhados, indiferente à baderna, uma cabra vadia olhava a correria e nada entendia. Eu só sei que a favela pegava fogo e não queria ficar lá para pegar fogo também.
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Eu corria e a torta segurava a minha mão. Os colegas, apesar do amor que eu sentia por eles, tentavam me pisotear e jogar contra o fogo. A tragédia era mesmo anunciada. Clarisse tinha anunciado aos macumbeiros que não interrompessem seus rituais, ainda que fossem consumidos pelas labaredas. A torta me puxava e impedia que a tara de me matar se consumasse.

- Dimas, não deixa esses porcos te matarem!

Não sei bem porque, eu por uns três milésimos de segundo valorizei minha vida. Me imaginei bem e feliz, realizado, sem medo de porra nenhuma. Obedeci a mulher que me amava e segui em frente.
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O fogo carbonizava colegas que eu sabia o nome e que não sabia. a cena era muito feia. As pessoas não tinham onde ficar, crianças choravam, vigaristas encenavam uma tristeza de forçar um choro inexistente, catárticos e sadicos apreciavam a ruína. O lixão da novela parecia um cenário de ficção, se bem que o lixão da novela é um cenário de ficção mesmo. Uma voz de olhos laranjas paralizou a escapada que a torta havia pensado com tanto cuidado.

- Calma lá, seus condenados! Chegou a hora da queima de arquivo.

Dona Clarisse queria nos mandar para o micro-ondas.

Foto de Paulo Gondim

Criaturas

CRIATURAS
Paulo gondim
23/05/2009

A fuga se deu
De forma tão brusca
Num sol que ofusca
E assim logo sai
Um salto no escuro
Num gesto inseguro
Um corpo que cai

E cai entre trevas
Profundas, escuras
E tais criaturas
Do nada aprecem
Tão feias, tão frias
Em suas orgias
O chão estremecem

Reviram baús
Saltitam nos bancos
Alguns solavancos
Permitem se dar
E como mutantes
Em gestos constantes
Se põem a olhar

E assim de repente
Se mostram caladas
Inertes, paradas
Em transmutação
E num reboliço
Em tom de feitiço
Se põem em ação

Dão mil piruetas
Em gestos velozes
Num som de mil vozes
E somem no ar
Dispersas, aos gritos
Um cheiro esquisito
Ficou no lugar

Foto de Sonia Delsin

OS ESQUECIDOS

OS ESQUECIDOS

Li um livro que me fascinou há alguns meses.

"O Jardim dos Esquecidos".

Dramático, chocante, inesquecível.

O tema proposto "Em Cima do Telhado" me trouxe à memória imediatamente a estória fantástica dos quatro irmãos abandonados no sótão da mansão.

Os mais velhos, depois de explorar todo o sótão, descobriram que podiam deitar-se sobre o telhado para banhos de sol. Para isso precisavam arriscar as próprias vidas utilizando uma saída muito perigosa.

Devido a altura excessiva e os perigos os mais novos não tinham coragem de acompanhar os mais velhos.

Estes se fortaleciam com os raios de sol e o ar puro, já que a escassez de alimentos os enfraquecia terrivelmente.

O garoto de quinze anos e a irmã de quatorze foram verdadeiros pais para os gêmeos de cinco anos, e com muita criatividade fizeram com papéis, cartolinas e bugigangas encontradas nos velhos baús, um jardim dentro do sótão.

Para não enlouquecerem eles buscaram nas fantasias um refúgio e passaram por aventuras sequer imaginadas pelas pessoas.

É um livro muito forte e impressionante. Tem um segundo volume intitulado "Pétalas ao Vento" que conta as aventuras que eles passaram depois que conseguiram fugir da mansão. Então já eram três. Um dos gêmeos havia morrido.

E há também um terceiro volume com o título "Espinhos do Mal".

Só liguei os livros ao título proposto pelo fato dos irmãos terem arriscado suas vidas na busca da conservação da vida.

É tão só uma estória fictícia. Tão terrível que seria inconcebível ser real.

Desejei contá-la como poderia ter contado que sobre os telhados os gatos namoram ao luar.

Seria mais romântico talvez.

Mas vou deixar para contar algo mais romântico numa outra vez.

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