Anos

Foto de Sonia Delsin

ENCERRADO UM CICLO

ENCERRADO UM CICLO

Um dia nós conversávamos.
Em nosso jardim sentados nós conversávamos.
Tu me disseste.
A vida é feita de ciclos e um está se fechando.
Eu não podia entender e fiquei chorando.
Eu chorava tanto.
Me punha em pranto.
Não conseguia entender porque isto precisava acontecer.
Se eu te amava e acreditava que tu também me amavas.
Tudo estava sendo preparado para nossa separação.
Tudo estava sendo ajeitado.
E eu não queria aceitar.
Queria consertar.
O que já tinha não conserto.
Sempre acreditei que em tudo se dá um jeito.
Foi uma das nossas últimas conversas aquela e me ficou tudo gravado.
Teu jeito de me olhar.
Era um olhar pesado.
A noite escura. A rede no canto.
Nós sentados conversando.
Tem horas que me pego pensando.
Por que as pessoas se conhecem... se apaixonam... se casam, vivem juntas anos e anos e se separam?
Por que dois seres apaixonados se tornam dois estranhos?
Coisas da vida.
Sei que está encerrado um ciclo. Tenho plena consciência disso.
Mas tem horas que fico refletindo.
É do ser humano pensar, lembrar.
E aquela noite nunca vai se apagar.
Estávamos nos despedindo.
Eu te via indo.
E queria segurar.
Queria segurar o tempo que arrasta tudo como uma grande enxurrada.
Penso.
Não resta nada?

Foto de Nellyra

Amante amada!

Sabe..., principalmente em noites de lua cheia (a nossa lua)
Eu me delicio imaginando como seria
Ser teu esposo em vez de teu amante!
Karacas!!! Há cinco anos somos amigos
Há quatro somos amantes
Não recordo de nenhum atrito ou momentos maçantes

Dormir ao teu lado..., acordar com você!
Katsooo!!! Me faz assim feliz!
Me faz sentir que a vida vale mesmo a pena
Que a gente pode amar e ser amado
Que a grande felicidade, começa bem pequena

Em nós o desejo é pleno, total e livre
Amor despojado, ardoroso, gostoso e natural
Desejo de pele, de dois amantes no cio
Esquecidos de toda regra do mundo social
Amantes de verdade sem interesse vazio
Senão o sexo, o toque, o gozo animal!!!

Qual mulher, jamais possui como você?
Disposta a aprender e ensinar..., sempre novidade!
No sexo fértil imaginação, na vida..., doce companheira
Amante amada, serilepe, elegante e brejeira

Ah! Mulher... tu és linda!
Adoro teus cabelos negros e sedosos
Teu seio qual pêra rija e madura
Teus olhos, amêndoas negras... sensuais!
Tudo em você me leva à loucura
Você é o bem querer que esqueço jamais!!!

Vou te amar pra sempre...Sempre!!!

Foto de Carmen Lúcia

A bela cigana

“A bela cigana”

texto inspirado no conto de Machado de Assis: "A cartomante"
(Homenagem ao centenário da morte de Machado de Assis)

O velho relógio da matriz acabava de ribombar a nona badalada, que pairava no ar, feito fundo sonoro e enigmático da história empolgante que acontecia.
Passos apressados se fizeram ouvir, como os de alguém que ansiava chegar rapidamente ao destino a que se dirigia. Pelo toc-toc dos sapatos percebia-se serem de salto alto e consequentemente, de mulher.
Parou por uns instantes numa esquina, como que a espreitar, sem se fazer notar, ao ouvir o barulho de um trem. Esperou nervosamente sua passagem e atravessou a linha. Seus passos agora eram mais rápidos, como se quisesse recuperar o tempo perdido.
Seguiu pela Rua do Porto, tortuosa, escura e esburacada. Aquela noite sem luar estava
propícia para o que se propusera a fazer. Uma grande aliada! Após atravessar algumas esquinas úmidas e sombrias, chegou ao local que lhe haviam, sigilosamente, indicado.
Não era bem uma casa, mas algo parecido.Deparou-se frente a um barracão bastante surrado, meio fantasmagórico, mal iluminado por velas e lampiões.
Ficou assustada.Pensou em voltar, desistir de seu intuito, mas o motivo que a levara até ali era muito forte e resolveu continuar.
Olhou para os lados para certificar-se de não haver ninguém por perto e começou a bater palmas.
Uma figura excêntrica, trajando roupas exóticas e coloridas surgiu silenciosamente feito uma aparição. Escondia o rosto num véu, lembrando dançarina do Oriente Médio, deixando à mostra um par de olhos negros, grandes, belíssimos e um ventre bem torneado.
- Boa noite!disse-lhe Lígia.
A cigana fez um leve movimento com a cabeça, cumprimentando-a e estendeu o braço, apontando-lhe o local a que deveria se dirigir.
Ambas sentaram-se nas almofadas que havia ao redor de uma mesinha onde a misteriosa mulher, à luz de velas, começou a colocar cartas de um baralho sinistro, pedindo que Lígia escolhesse algumas. E assim ela o fez, sem tirar os olhos da bela cigana, agora sem o véu.
De repente, viu um largo sorriso em seus lábios, revelando dentes muito alvos e um canino revestido de ouro.
-Vejo imensa luz em seu destino!Seus sonhos serão realizados!Nada a afastará de seu grande amor.Somente a morte, após terem vivido longos anos de felicidade.
Em seguida, pegou a mão esquerda de Lígia :-Essa linha mais comprida da palma de sua mão vem comprovar o que lhe disse.
Lígia sentiu-se muito feliz e um alívio tomara conta de seu coração.Pagou a mulher, que já aguardava o pagamento pelo seu trabalho e retirou-se dali.
Eram vinte e três horas quando chegou à Avenida Coronel Alcântara, onde residia.Não ficava distante do local de onde viera.
Tirou as roupas, os sapatos, vestiu uma camisola branca e deitou-se, sem qualquer ruído, ao lado de Álvaro, seu marido, que roncava, dormindo profundamente.Apagou a luz do abajur e adormeceu logo em seguida, satisfeita com o que ouvira naquelas últimas horas.
Cássio a esperava no lugar de sempre, sem muito movimento de veículos e transeuntes.Final da Rua Vinte e Oito, local ideal para encontros clandestinos.Olhava seu relógio, pois, já passava das vinte horas, horário combinado por eles.

Lígia apontara na esquina, mais bonita que nunca, com um insinuante vestido preto colado ao corpo, ornamentado por um generoso decote, mostrando seu colo macio e branco e uma boa parte de seus seios.Deixava no ar um rastro de perfume francês.
Cássio a olhou com olhos de admiração e desejo.Saiu do carro e abriu a porta para que ela entrasse.
Partiram para um lugar retirado, onde pudessem conversar e namorar tranquilamente.
-Nada irá se opor a nós!As palavras da cigana foram convincentes.Seu misticismo é contundente.Não há como descrer.
Ele riu da credulidade infantil da amante, mas não proferiu qualquer palavra sobre o assunto.Preferia-a assim, crédula e feliz.
Cássio havia sido chamado ao gabinete de seu chefe. Esperava o elevador que demorou um bom tempo para chegar.Bateu à porta levemente e ouviu:-Pode entrar!
Álvaro girou sua poltrona e ficou frente a frente com seu assessor.Fumava um charuto cubano e fazia questão de soltar a fumaça em direção ao seu subalterno.
Este ficou um tanto constrangido, pois notou algo de diferente no ar. Pensou:-Será que ele descobriu tudo?
-Preciso resolver um problema da empresa, em São Paulo, e pela confiança inabalável que tenho em você, pela sua inegável competência, quero pedir-lhe que vá em meu lugar, pois tenho outros assuntos pendentes a resolver .
Deu uma pausa no falar para acender outro charuto.
Cássio jamais negaria esse pedido ao seu chefe e amigo, ainda mais pela consciência pesada que trazia, decorrente da traição amorosa com sua mulher.
-Conte comigo, Álvaro!Amanhã mesmo tentarei resolver isso.
Sentiu-se livre do mau presságio que o invadira.
Combinaram o horário da viagem, despediram-se e Cássio voltou para sua sala.
Lígia atendeu o telefone que tocava insistentemente.
-Olá, querida!Que tal irmos para São Paulo e termos uma semana somente para nós?
Do outro lado da linha, uma mulher pálida e trêmula, não sabia se chorava ou ria.
Ele a tranquilizou e até sugeriu uma desculpa ao marido.Ela diria que precisava visitar uma amiga de infância, em fase terminal de câncer, na cidade de Resende.
Bem, parecia que tudo conspirava a favor para que os amantes ficassem juntos por mais tempo e se amassem muito.
Poucas horas antes da viagem, Lígia fez um pedido ao Cássio:-Gostaria de agradecer à cigana por essa felicidade, que em grande parte, ela nos proporcionou, já que eu andava tão angustiada, acreditando numa possível desconfiança de meu marido.
Cássio colocou alguns obstáculos nessa idéia da amante, mas, se era para deixá-la mais feliz, concordou.
As horas passavam e Lígia não chegava. Preocupado, resolveu ir até lá. Já era noite e um chuvisco embaçava o vidro do carro, deixando-o impaciente. Parou próximo à linha do trem, para esperá-lo passar. Era um cargueiro que parecia não ter fim.
Finalmente, linha desimpedida! Acelerou o carro e chegou em frente ao barracão que sabia muito bem onde se localizava, graças às informações de Lígia.
Bateu palmas e ninguém apareceu. As velas acesas piscavam e os lampiões estavam apagados.
Resolveu entrar, na surdina. Pé ante pé...A cena que viu jamais sairia de sua mente. Abraçados sobre as almofadas, a bela cigana e Álvaro...e mais adiante, numa poça de sangue, o corpo sem vida de seu grande amor...Lígia!

(Carmen Lúcia)

Foto de Sonia Delsin

ESTRAGOS IRREPARÁVEIS

ESTRAGOS IRREPARÁVEIS

Tinhas um olhar tão triste, tão triste.
Nos teus últimos anos de vida tinhas um olhar tão dolorido.
Dizias.
Tenho lembranças duras do passado.
Por um sorriso teu o que eu não teria dado?
Meu pai amado.
A depressão danos irreparáveis te causou.
Dizias que a vida te machucou.
Partiste.
O mundo sem ti mais vazio ficou.
Hoje parece que tenho os teus olhos na minha frente.
A me olhar tristemente.
Como a pedir.
Me ajude, filha amada. Me ajude a partir.
Era tua hora de ir.
Partiste me agarrando.
Como se eu pudesse de alguma forma te fortalecer.
Eras meu pai adorado.
Uma parte de meu ser.
Te vi morrer.
E fiquei em pranto... (naquele tempo eu não conseguia compreender).
Que temos nosso tempo aqui e partimos, mas continuamos de uma outra forma a viver.

Foto de Sonia Delsin

PAZ NO CORAÇÃO

PAZ NO CORAÇÃO

Talvez um dia nestes caminhos da eternidade nos reencontremos.
Talvez nossas mãos se encontrem e possamos conversar.
Queria tantas coisas te dizer.
Queria falar do perdão.
Da capacidade que encontramos de perdoar.
Não queria mais falar de amor.
De sonhos.
De esperança.
Mas falar da graça de sentir paz no coração.
Queria te dizer que foi tão longo o caminho que percorri.
Hoje em dia eu compreendo que não te perdi.
Perde-se o que se tem e não o tive.
A gente convive.
Anos e anos de convivência.
E um dia nos damos conta.
Que cada um era único. Cada um tinha um ideal na vida.
Dizias.
És uma sonhadora.
Eu dizia.
És tão pé no chão. Não experimentas nenhuma ilusão.
Talvez um dia eu possa te dizer estas coisas todas...
Talvez.
Eu gostaria de poder lhe falar.
Como uma amiga simplesmente poder dialogar.
Creio que fui alguém que em sua vida muito representou.
Entre nós tudo se acabou.
Mas faltou esta conversa que não tivemos.
Que talvez tenhamos.
Não sei.
Se depender de mim ela acontecerá.
No tempo que estiveres preparado para ela.
Eu estou.

Foto de Rozeli Mesquita - Sensualle

Me Rendo

*
*
*
*
Ressuscita meus sonhos
Abre a porta da minha fantasia
Toca meu lábio rosado,
me encoraja e me extasia.
Nesse manancial de gozo e sem precisar nada dizer
Sinto tua boca roçando e me dando mais que prazer
Ah.. meu corpo no seu corpo, e em tantos anos vividos
Estou aprendo a fazer amor contigo
Noites de amor e sem tréguas, me tenha
Toco,
sugo,
provoco.
Não me detenha
Ouço teu prazer,
E nessa viagem
Queimando em fogo ardente
Dissolvo-me em tuas coxas
E me rendo perdidamente

Rozeli Mesquita
Publicado no Recanto das Letras em 22/08/2008
Código do texto: T1140258

Foto de Sonia Delsin

FLORES PARA QUEM PARTIU

FLORES PARA QUEM PARTIU

Ela caminhava observando tudo. Os pássaros livres a recordavam que também conquistara sua liberdade.
A máquina fotográfica dependurada no pulso. Os cabelos ao vento, um agasalho de caminhada, um bom tênis, óculos de sol.
Caminhar é tão bom. Respirar o ar da manhã.

Quatro anos se passaram. Quatro anos.
Uma outra vida dentro de sua vida.

Lara ia pensando que a vida é feita de ciclos. Recordou a infância, a juventude, o dia que se apaixonou por Leonardo. Como ele era bonito! Lindo mesmo...

Uma vida ao lado dele e o fim. Quatro anos se passaram desde aquele dia. O adeus doeu demais e ela sabia que precisava esquecer tudo que se passara. Tudo.

Mas esquecer vinte e tantos anos ao lado de alguém?
É possível esquecer do primeiro beijo ao último olhar, as últimas palavras?
O grande vazio que ficou?

Um pássaro tão lindo numa cerca lhe chamou a atenção. Claro que o fotografaria. Claro.
E as buganvílias floridas então! Não podia deixar de fotografar.

Ia distraída a olhar tudo e as lembranças começaram a aparecer como ondas que o mar insiste em trazer para a praia.

Ela era um rochedo. Nada a abalaria. Nada.
Virou a máquina e tirou uma foto de si mesma ao lado de um arbusto. Cadê o sorriso? Ele não chegou, mas a foto não ficou feia. Todos diziam que ela era linda quando sorria. Talvez mais tarde o sorriso chegasse.

Apanhou uma florzinha azul e lembrou do tempo que apanhava flores do campo para levar ao marido. Ele não a acompanhava nas caminhadas. Preferia ficar na cama deitado e depois se levantaria, tomaria um café e fumaria.
Como ela odiava vê-lo fumando tanto. Quando pedia que fumasse menos ele discutia. Nos últimos anos tudo era um pé de briga.

Esmagou as florezinhas na palma da mão. Tanto tempo e o esquecimento não chegava, não chegava.

Não que tivesse esperanças ainda. Não. Em absoluto. Compreendera neste tempo sozinha que não tinham afinidades. Nem conseguia crer que viveram tantos anos juntos. Mas ficara uma dor, uma vontade de mudar o que o já não podia ser mudado.
Não era remorso. Era vontade que tudo tivesse sido de outra forma. Sem discussões, sem lágrimas.
Mas existe um casamento que termina sem brigas? Pelo menos quando acontecia era algo raro. Ou não?
Ela queria que tivesse sido sem brigas. Queria... tanto isso. Sem brigas.

Passou por uma árvore carregada de amoreira carregada e resolveu apanhar algumas amoras madurinhas. Gostava tanto que nem ligava a mínima em sujar as mãos.

Continuou a caminhar e o pensamento mudou de rumo. Pensou noutras coisas. Esqueceu a dor. Era sempre assim. Aquela dor vinha e ia. Como ela e suas caminhadas.
Pegou rapidamente a máquina para fotografar duas andorinhas que revoavam ao seu lado. Esqueceu o passado. Pelo menos por hora.
Olhou o relógio no pulso. Era hora de voltar para casa. O sol já estava ficando forte e ela não passara protetor solar.

Outras manhãs a aguardariam até que o outro ciclo se fechasse. Ela apertou de encontro ao coração a máquina pensando que tirara boas fotos naquela manhã.
Não levaria flores. Ninguém a esperava. Ninguém.

Foto de Sonia Delsin

ANOS DE TERNURA

ANOS DE TERNURA

Hoje uma libélula entrou pela porta aberta da minha sala de visitas e por um tempo ficou debatendo-se tentando encontrar a saída. Quando ia ajudá-la, ela acabou por si mesma encontrando-a.
Lembrei de meus tempos de criança. Tive mesmo uma infância encantadora e desde pequena sempre adorei insetos, animais, a terra, as plantas. Eu me sentia parte integrante daquela natureza que me rodeava.
Vou contar um pouco do lugar onde passei toda minha infância. Era naquele tempo uma terra agraciada com recantos deliciosos (o tempo passou e muitas coisas mudaram).
Entrando por uma velha porteira seguíamos por uma estradinha muito singela, onde meu pai havia plantado de cada lado coqueiros de pequeno porte. Um verde e um roxo. Ele tinha verdadeiro amor pela estradinha, e todos os dias a varria com uma vassoura de bambu. Essa estradinha passava por um velho paiol onde guardávamos o milho que mais tarde se transformaria em fubá.
Andando mais um pouco já avistávamos o jardim de mamãe. Belo jardim! Rodeava a casa, que era muito simples. Andando mais pela estradinha chegávamos a um rancho, que foi o cenário de muitas fantasias minhas.
Tínhamos várias cabras sempre e me lembro de muitas aventuras que tivemos com elas. Todos os filhotes ganhavam nomes. Lembro-me como se ainda estivessem diante de meus olhos, e pareço ainda sentir os puxões de cabelos (tentando mastigá-los) que elas davam quando me aproximava.
Na chácara tínhamos muitas jabuticabeiras, talvez umas noventa. Não sei se exagero, mas eram muitas. Próximo ao nosso jardim havia uma fileira de umas cinco delas, muito altas; onde meu pai fazia balanços para brincarmos.
Deus! Quando floriam, que perfume! Aquele zum zum zum de milhares de abelhas... as frutas nas árvores depois de algum tempo!
O pomar era uma beleza, tínhamos grande variedade de frutos e nos regalávamos com toda aquela fartura.
Havia o moinho de fubá que foi o meu encanto. Aquele barulhinho, parece que ainda o ouço.
O vento nos bambuzais, aquele ranger e os estalos. Gostava de caminhar entre os bambus, mas meu pai nos proibia de freqüentarmos aquele lugar, devido a grande quantidade de cobras que costumava aparecer por lá.
Havia dois córregos e mesmo proibida de entrar neles eu desobedecia algumas vezes.
Tínhamos um cão muito bonito que participou de toda a minha infância, recordo-o com seu pêlo preto brilhante, e meus irmãos se dependurando nele para darem os primeiros passos.
No meio do jardim tínhamos uma árvore que dava umas flores roxas, São Jorge nós a chamávamos. Não sei se é esse mesmo o nome dela. Ela tinha um galho que mais parecia um balanço e estou me lembrando tanto dela agora.
Eu, vivendo em meio a tudo isso, estava sempre muito envolvida com a natureza que me cercava e muitas vezes meus pais surpreendiam-me com os mais variados tipos de insetos nas mãos. Eles me ensinavam que muitos deles eram nocivos; que eu não podia tocar em tudo que visse pela frente; que causavam doenças e coisa e tal. Mas eu achava os besouros tão lindos, não conseguia ver maldade alguma num bichinho tão delicado. Não sentia nojo algum e adorava passar meus dedos em suas costinhas.
As lagartixas, como gostava de sentir em meus dedos a pele fria! Eu as deixava desafiar a gravidade em meus bracinhos.
Muitas vezes meus pais me perguntavam o que eu tanto procurava fuçando em todo canto e eu lhes dizia que procurava ariranha. Eu chamava as aranhas de ariranha e ninguém conseguia fazer-me entender que o nome era aranha e que eram perigosas.
Pássaros e borboletas, eu simplesmente adorava. Mas fazia algumas maldades que hoje até me envergonho de tê-las feito. Armei arapucas e peguei nelas rolinhas e outros pássaros mais, somente para vê-los de perto e depois soltá-los.
Subia em árvores feito um moleque e quantas cigarras eu consegui pegar! Também fiz maldades com elas e como me arrependo disto! Eu amarrava um barbante bem comprido no corpo das pobrezinhas e deixava-as voar segurando firmemente a outra ponta nas mãos, claro que depois as soltava.
Mas se por um lado eu fazia essas coisas feias, por outro eu era completamente inocente e adorava tudo que me cercava.
Os ninhos, eu os descobria com uma facilidade incrível porque acompanhava o movimento dos pássaros que viviam por lá. Adorava admirar os ovinhos e os tocava suavemente. Eu acariciava a vida que sentia dentro deles. Visitava os filhotinhos quando nasciam e quantas vezes fui ameaçada pela mãe ciumenta.
Estas são algumas das recordações de minha infância, do belo lugar onde tive a graça de ter vivido, acho que é por este motivo que gosto de contar sempre um pouco dela. Era mesmo um lugar privilegiado aquele e gostaria que todas as crianças pudessem também desfrutar de uma infância tão rica em natureza e beleza como foi a minha.

Foto de Sonia Delsin

O JARDIM... DO ESPELHO

O JARDIM... DO ESPELHO

Acredito que para crescermos interiormente passamos muitas vezes por situações muito delicadas, muito difíceis, por fases dolorosas...
Algumas pessoas se revoltam com o sofrimento, tornam-se amargas. Perdem o amor pela vida. Mas às vezes ele é um mal necessário, mesmo que nem nos apercebamos disso.
Ninguém deseja sofrer e quando acontece de sofrermos precisamos sempre procurar tirar algum proveito disto no sentido de crescermos.
Vou contar aqui fatos ocorridos há muitos anos. Uma fase negra, que sei que devia ter apagado de minha alma, de minhas lembranças, de meu eu. Mas como nunca consigo encontrar o apagador... vez ou outra estas lembranças também voltam, vem à tona e agora mesmo estou me lembrando delas.
São dores que já não doem, doeram no seu tempo. Doeram demais e marcaram irremediavelmente minha vida.
Triunfei sobre esta fase e nem devia mais tocar no assunto, mas vou narrá-la para que alguém ao lê-la possa tirar algum proveito. Não é bem por aí, porque não é com as lições dos outros que aprendemos mais, mas com as nossas próprias experiências. Mas tudo bem! Vou contar assim mesmo para quem quiser conhecer um pouco mais de mim.
Vou contar o milagre de um espelho.
O fato aconteceu numa primavera. Naquele tempo eu mal completara dezesseis anos e estava presa a uma cama por quase um ano. Sem perspectivas de melhora eu definhava no leito, sofrendo muitas dores e causando também muito sofrimento a todos meus familiares.
Revoltada com o que a vida me oferecia naqueles meus anos de menina-moça eu me tornava muitas vezes uma doentinha intratável.
Minha mãe com muita paciência e tato enchia o quarto com revistas, com livros que eu tanto gostava e deixava que nosso cãozinho me fizesse companhia quase todo o tempo. Não tínhamos uma TV e só um pequeno rádio me trazia um pouco de distração, além da leitura.
As paredes pintadas de um verde claro, os poucos móveis, um quadro de Jesus e Maria, uma cômoda coberta de remédios, um pouco do céu que eu conseguia enxergar através da janela eram as minhas imagens visuais todo o tempo.
Eu via a vida correndo e sem poder andar, ou me sentar eu já nem sabia mais sonhar. Esperava aquela tortura acabar de uma vez. Entregava-me à dor, ao sofrer.
Um dia, mal amanhecera, minha mãe me fez uma proposta, perguntou-me se eu desejava ver o seu jardim.
Então eu argumentei com ela que nem me levantava, se quisessem me carregar eu sentiria mais dores, me sentiria mal. Não queria sair da cama, que me deixasse em paz.
Ela não aceitou a minha recusa e sugeriu que eu poderia ver o jardim através de um espelho.
Achei bobagem. Que graça teria?!
Ela deixou o quarto e minutos depois apareceu com um espelhinho na mão e foi até a janela. Botou o braço para fora e ajeitou-o para que eu visse o canteiro cheio de flores, perguntando se dava para ver a roseira carregada de belas rosas vermelhas.
Vi as rosas, também as dálias, as margaridas e tantas outras.
As flores todas, que de meu leito só sentia o seu perfume.
Ajeitando-o melhor, com muita paciência, minha mãe me trazia para dentro do quarto os beija-flores que visitavam o seu jardim naquele dia e as borboletas que iam de flor em flor.
Não a deixei guardar tão cedo o espelho. Queria ver mais. Queria trazer para dentro do meu quarto de doente, a primavera que despontara lá fora sem que eu a pudesse apreciar.
Na manhã seguinte ela voltou com o espelho e eu vi as mudanças que se operaram num só dia naquele jardim. Vi que havia mais borboletas, abelhas e que também novos beija-flores o visitavam. Até me pareceu ver ali do leito uma gota de orvalho sobre uma rosa cor-de-rosa.
Quis todos os dias repetir a experiência e minha mãe perdia um tempo enorme ajeitando o espelho, para que eu visse melhor o que acontecia lá fora enquanto eu definhava no leito.
Eu aguardava a manhã chegar para assistir todas as manhãs aquela primavera lá de fora, que um espelho conseguia me trazer.
Assim, os três meses se passaram, e eu comecei lentamente a melhorar. Comecei de novo a achar que tudo valia a pena, que a beleza não morrera porque eu não participava dela. E poderia ainda participar, havia um mundo lá fora e eu ainda o poderia desfrutar.
Na primavera seguinte eu já pude ir ao jardim numa cadeira de rodas e no outro com minhas próprias pernas, numa vitória conseguida com muita luta, persistência, esperança e fé.
Vejam o milagre que um simples espelho consegue operar numa pessoa!

Foto de Lu Lena

SAUDADE MÓRBIDA

Aprecio a paisagem translúcida no espaço
Ouço o bater de sinos na capela distante
Vento varre a cabeleira dos verdes matos
No céu, vejo cortejo d'espíritos viajantes.

Balanços das folhas, vultos acenam pra mim
Dogmas infundados entre a vida e a morte
Sopram ao meu ouvido, que isso não tem fim
Círculo vicioso e simbiótico lançado a sorte.

Prolixa e moribunda divago sem entender
Na oculta inflorescência a busca do amor
Lágrimas gotejantes, doridas de um sofrer.

Na lápide, vejo um poço árido que secou
Nas flores silvestres, o toque de teu ser
Saudade mórbida foi apenas o que restou.

Lu Lena

Ps. Esse soneto, fiz em homenagem a minha mãe,
hoje completando seis anos de sua partida.
Foi pensando nela, que me veio essa
inspiração... 03/09/2008.

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