Olhos Azuis
Lily andava muito deprimida nos últimos meses, ou seriam anos? A sua vida parecia tão vazia às vezes... Talvez boa parte disso fosse pelo fato de ter perdido os pais em um acidente de carro anos atrás e por não ter irmãos, primos, tios, e isso lhe desse a sensação de estar só nesse grande planeta azul. Apesar disso tudo, não poderia reclamar das condições em que vivia. Os pais lhe deixaram uma boa herança, o que proporcionava a oportunidade de ter seu próprio apartamento, um carro prático e bonito e de pagar a faculdade de medicina. Não tinha namorado, nem muitos amigos. Lily achava que os estudos lhe tomavam muito tempo e que para ser uma boa profissional, a dedicação exclusiva à medicina era um fator inquestionável. Aos 26 anos poderia afirmar que tinha como grandes paixões a medicina, o seu gatinho Lancelot e a poesia. Mesmo que não escrevesse, via nas poéticas linhas escritas uma forma de se deslocar desse mundo para um mundo só seu onde era muito feliz. Poderia passar horas lendo em sites poemas de amor, de dor, de sofrimento.
A moça, dona de cabelos dourados como o sol, não achava graça em muita coisa. Achava que "boa parte dos entretenimentos dos jovens de sua idade supérfluos e inúteis", pensou, desligando a tv que mostrava um documentário sobre raves. Resolveu que deveria estudar mais um pouco de epidemiologia se quisesse tirar nota máxima na disciplina. Abriu o livro que pegara de volta na mão de uma colega de sala. Não lhe custava emprestar as suas coisas, já que era consciente das dificuldades financeiras de muitos alunos para custear as altas mensalidades e todo o material. De dentro do livro caiu um papel dobrado que sabia que não era seu. Ela evitava fazer isso, pois certamente os perderia. Desdobrou a folha e deparou-se com um texto escrito à mão. A letra era redonda, inclinada para a direita e muito bonita. estava assinada como Poeta da Solidão. Ficou encantada com o texto e o leu quatro vezes seguidas.
"Quero amar com os olhos e encharcar com meu carinho quem o mereça. Quero que você me interprete, que leia nas minhas entrelinhas e decifre meus códigos secretos. Sou escrito em grego. Traduza-me e só então pegue de mim o que quiser. Sou todo seu... O que eu quero? Quero a felicidade plena dos momentos felizes. Quero continuar nesse passeio pela essência da paixão. Mas se for pra ir sozinho, que me coloquem de volta onde eu estava. As cores às vezes são bem mais vivas do que eu vejo. Isso eu sei e agradeço por você poder vê-las e me contar como elas são. Isso já me basta para que eu veja todo um arco-íris sob o reflexo dos meus olhos azuis."
Não poderia acreditar que um homem pudesse ser tão sensível, um homem comum, não um Drummond, não um Quintana, um homem qualquer. No verso havia um endereço de e-mail. Deveria escrever-lhe e dizer o quanto ele a impressionara? Não, ele me acharia louca - assentiu pensativa. Decidiu ler o seu livro e esquecer o assunto. Mas não conseguia concentrar-se. Lia e relia o primeiro parágrafo sem conseguir assimilar o que estava escrito. Olhou de relance para o papel e decidiu escrever-lhe um e-mail, mesmo sob um pseudônimo.
"Caro Poeta da Solidão, achei por acaso um texto seu dentro de um livro que estava emprestado com uma amiga. Ele terminava falando sobre ver o mundo sob o reflexo dos seus olhos azuis. Confesso que fiquei impressionada com o teor e intensidade das suas palavras. Nunca tive o dom da escrita, mas sempre fui uma amante da literatura poética. Gostaria de dizer que o seu texto me tocou profundamente. Não acreditava existir no mundo de hoje alguém com tamanha sensibilidade e suavidade. Mesmo que nunca nos vejamos, quero que saiba que sou sua fã.
Um abraço,
Sad Wings"
Os dias passavam e Lily checava diariamente a sua caixa de e-mails esperançosa, para então entregar-se à frustração de não receber a tão esperada resposta do poeta encantado.
Após um cansativo dia de aulas, chegara em casa no final da tarde, agradara Lancelot, seu fiel amigo e deixou-se afundar no sofá. Em questão de segundos, o telefone tocou. Era o corretor de seguros alertando-a que o documento que ela havia solicitado já estava disponível no seu e-mail. Tomou um banho, comeu um sanduíche olhando a tv desinteressadamente, olhou a correspondência, para só então sentar-se em frente ao computador. Abriu a sua caixa de e-mails e tratou de imprimir o tal documento rapidamente, ansiando por um merecido descanso, enquanto observava de longe a sua cama que parecia convidar-lhe para o sono dos justos. Quando estava prestes a fechar o seu programa de e-mails, viu uma nova mensagem e era do poeta! Abriu trêmula e ansiosa, abriu a mensagem e sorveu cada palavra como um doce licor em seus lábios.
"Querida Sad Wings,
Peço-lhe desculpas pela longa demora em escrever-lhe, pois estava viajando. Adorei receber as suas palavras e saber que alguém leu um de meus textos e se sentiu tocada por ele. O que há de mais importante no mundo além de conseguir atingir o íntimo de uma pessoa com sua verdade? De descrever as cores do mundo com meras e tolas palavras? Espero que essas asas tristes jamais deixem de planar livre sobre as florestas, mar e montanhas.
Do seu,
Poeta da Solidão"
Lily não podia acreditar que depois de 10 dias ele a havia respondido. Desistiu do seu plano de dormir e resolveu escrever-lhe outro e-mail falando o quanto estava feliz com a resposta e o quanto era difícil para ela ter uma visão tão lírica do mundo, quando na verdade achava tudo muito racional, frio e prático. Completou perguntando como o texto parara no seu livro e sobre onde ele estava no momento.
A resposta veio quase imediatamente e entre versos e palavras doces ele disse que era brasileiro e nascera próximo de onde ela morava, mas estava fazendo especialização na Irlanda do Norte. Morava em um pequeno vilarejo onde a grama era verde, os pequenos chalés coloriam as ruas estreitas e os dias e noites tinham um brilho diferente de tudo o que já havia visto. A cada palavra, Lily viajava com ele e suspirava encantada.
Dia após dia os jovens trocavam e-mails e ele enviava para ela postais e até mesmo cartas. Lily lia maravilhada as palavras do poeta e se perguntava se realmente ele não estava certo em ver a vida daquela forma. Seria muito mais fácil viver com esperança no olhar.
Com o tempo, Lily se deu a chance de ver a vida de uma forma muito diferente. Começou a aproveitar seu tempo com coisas realmente relevantes, fez novos amigos, viajou para conhecer novos lugares, outras realidades dentro do vasto país em que morava.
O jovem poeta sempre sabia o que dizer, quando e porque dizer as palavras que precisavam ser ouvidas. Às vezes a moça se perguntava se ele realmente existia ou era fruto da sua imaginação. Talvez até fosse um personagem criado por alguém para ajudar os outros, mas que na realidade não condizia com a prática do que pregava. Ao contrário do que seus poucos amigos achavam, ela não o via com olhos românticos. Não o imaginava como um amante ou namorado e sim como um anjo. Sim, definitivamente ele fora um anjo enviado para salvá-la de si mesma. Ele nada falava da sua história de vida a não ser quando mencionava vagamente algum fato, com o intuito de ilustrar mais uma lição de vida. Ela, ao contrário disso, se desnudava completamente expondo sentimentos, pensamentos e o seu íntimo. Não sabia nem ao menos o seu nome verdadeiro, enquanto ela lhe dera seu endereço para que ele lhe escrevesse.
Em uma quarta-feira chuvosa Lily recebera uma carta pela qual esperava ansiosamente. Era a resposta do seu pedido de aceitação em uma universidade canadense onde faria especialização. Ela fora aceita! Não acreditava que sua vida tivesse mudado tanto em seis meses. E devia tudo àquele poeta. Decidira que era hora de vê-lo, de lhe falar olhando nos olhos sobre a importância dele na sua vida, ouvir um pouco sobre ele. Sim, iria vê-lo e aproveitar e conhecer as paisagens tão bem descritas e poetisadas pelo anjo amigo. Decidiu que lhe comunicaria da sua decisão.
"Amado Poeta da Solidão,
Hoje, ao chegar em casa, recebi a resposta que tanto esperei sobre a minha especialização. Adivinhe só: fui aceita! Parei por uns minutos e refleti sobre os últimos seis meses. A minha vida mudou muito. Já não tenho aquele peso nos ombros, tristeza no olhar, frieza no sorriso e aquela visão sombria do mundo ao meu redor. Sei que devo isso tudo a você! Você, com suas mensagens implícitas, com suas lições nas entrelinhas me mostrou que a vida é um presente muito precioso para deixá-la passar em branco. Não podemos ser meros figurantes nela e sim personagens ativos e de atitude. Agora sei que posso fazer a diferença apenas por fazer a minha parte, que pode parecer pequena, mas certamente pode ser marcante e mudar a vida de alguém. Agradeço a Deus todas as noites por ter me enviado você. Devido à tudo isso, acho que chegou o momento de conhecê-lo. Me formarei em uma semana e depois disso terei três meses para me organizar e me mudar para o Canadá. Decidi ir até a Irlanda, pois sempre foi um dos meus sonhos. Tenho medo de não fazer isso e um dia me arrepender. Sei que parece loucura ou brincadeira, mas enfim, preciso saber o que você acha disso.
Um beijo no coração,
Sad Wings"
"Querida Sad Wings, fico feliz por saber que atingiu mais um dos seus tão almejados objetivos. Com certeza será uma experiência incrível morar no Canadá. O país é muito bonito, rico, investe bastante em educação, além de uma série de aspectos fascinantes. Será um prazer conhecê-la e poder, finalmente, dar-lhe um abraço. Pode comprar a passagem ou você pretende vir voando?
Beijo,
Poeta da Solidão"
Bem, a sorte estava lançada. Lily trocou diversos e-mails onde fazia planos de lugares a serem visitados, coisas a serem feitas e assim por diante.
Finalmente o grande dia chegara. - pensava Lily ao descer do avião. Resolvera fazer diferente e ir direto à casa dele, ao invés de pedir que lhe buscasse no aeroporto. Estava extremamente nervosa quando o táxi parou na porta do lindo chalé branco. Ele não mentira quando disse que as cores daquele lugar eram diferentes de tudo o que vira. Tocou a campainha e aguardou trêmula. Tocou mais uma vez e o tão esperado momento em que ele atenderia a porta não chegou. Sentiu-se confusa e olhando para os lados, não sabia o que pensar. Uma senhora aproximou-se e perguntou se poderia ajudá-la. Após uma rápida explicação sobre a sua vinda, ela soube que ninguém morava naquela casa há aproximadamente 15 anos. O último morador, um jovem rapaz de olhos azuis, desaparecera sem deixar vestígios. Não voltara nem para pegar as suas coisas.
A moça sentiu o chão sumir sob os seus pés. Não sabia o que dizer, o que fazer e muito menos o que pensar. Ela não conseguia acreditar. Decidiu perguntar se seria possível entrar na casa. Sabia que só assim conseguiria acreditar na história que acabara de ouvir. A simpática senhora foi até a sua casa e voltou minutos depois com uma chave.
Lily entrara na casa e viu com seus próprios olhos. A casa parecia realmente ter sido abandonada há muitos anos. Tudo estava coberto de poeira. Não sabia realmente o que pensar. Não havia nenhuma foto do rapaz em lugar algum. No fundo da sala pequena, ao lado de uma grande janela, viu uma escrivaninha. Aproximou-se e viu diversos livros de poesia e uma caixinha de madeira. Não resistiu e a abriu. Dentro havia um lindo lírio que parecia ter sido recém colhido e um papel dobrado. Ao desdobrá-lo, viu a conhecida letra do seu poeta.
"Querida Lily, não mais a chamo de sad wings porque sei que não tens mais nada dela. Ao contrário disso, assim como o seu nome, tens as características do lírio. Sempre foi considerada uma símbolo de nobreza e pureza e foi retratada em pinturas que remontam a Grécia Antiga. Ela é uma flor de difícil cultivo e que exige cuidados especiais. Não pode ser exposta ao frio, chuva ou sol excessivos. Quando as pétalas murcham é extremamente trabalhoso fazê-la florescer novamente. Apesar de tudo isso, o seu perfume é inigualável e suas milhares de formas de apresentação tornam complexo decidir qual a mais bela e formosa. Nunca esqueça quem você é, qual a sua essência!
Um beijo eterno no coração.
Seu anjo,
Poeta da Solidão"
Ao olhar pela janela, sabia que jamais ouviria falar dele novamente. A sua missão fora cumprida. Ela nunca mais seria a mesma de antes e o mundo nunca mais teria cores desbotadas. Agora ela finalmente entendera como ver o mundo sob o reflexo dos seus olhos azuis.
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Oi Kilya Stella
Que belo conto. Descreveu com grande conhecimento todos os tópicos abrangidos e magnificamente entrelaçados.
Parabéns, seja bem vinda, estaremos esperando por tua participação e integração em Poemas de Amor.
Grande Abraço
Fernanda Queiroz
Grande abraço.
Fernanda Queiroz