Próprio

Foto de Cecília Santos

TUM... TUM... TUM...

TUM...TUM...TUM...
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Meu coração se acostumou com você.
Ele não sabe mais viver sozinho.
Nas madrugadas em que você não está.
Ele fica inquieto e triste.
No silêncio da noite a te esperar.
Ouço seu pulsar a te chamar.
Tum, tum, tum, onde estas?
Tum, tum, tum, venha comigo ficar!
Meu coração não vê seus defeitos,
Quer te amar bem desse jeito.
Eu sinto sua ausência, mas ele
me diz que você logo vem.
Eu sei que uma distância existe.
Mas ele não quer admitir isso.
E ainda acredita que você vai voltar.
Coração, acorde! preste atenção!
Mas ele não quer me ouvir.
Ele não quer ouvir seu próprio lamento.
Enquanto ele fecha seus ouvidos
pras verdades ditas pela vida.
Eu ouço seu descompasso, e à cada batida.
Vai dizendo tristemente.
Tum, tum, tum, eu te amo!
Tum, tum, tum, não me esqueças!
Tum, tum, tum, pois de você jamais esquecerei!

Direitos reservados*
Cecília-SP/12/2007*

Foto de Sonia Delsin

MEIO FORA DO MUNDO

MEIO FORA DO MUNDO

Tantos pensam que vivo meio fora do mundo.
Mas eu vivo é no profundo.
No mais profundo.
Vivo buscando razões, não aceitando simples senões.
Eu sou uma sentimental.
Uma romântica que enxerga um mundo melhor.
Que acredita nele piamente e quer mostrar a toda gente.
Eu ergo uma bandeira e saio caminhando.
Com a opinião alheia vou pouco me importando.
Quero chamar a atenção.
Mas é para as coisas do coração.
Quero acordar quem não presta atenção.
Na vida.
No que existe de lindo.
Dizem que vivo sorrindo.
Mas eu choro também.
Porque viver é isto.
É sentir emoção.
Viver é do mundo e do próprio ser ter a percepção.

Foto de Carmen Lúcia

Uma história de amor

Um dia tu surgiste em minha vida,
E o céu se abriu em cores, no esplendor da aurora,
Como Romeu e Julieta, ouvi cantar a cotovia,
Num presságio de amor que nunca vira outrora...

Até então eu mergulhava em sombras,
Não via estrelas, nem percebia o luar,
Aprisionada ao meu próprio ego,
Entregue ao medo de deixar-me amar!

E tu chegaste, como a poesia,
Que sensibiliza e nos faz sonhar,
Dancei com as flores, me explodi de amores,
De peito aberto, fui de encontro a ti!

Mas, de repente, o sonho acabou...
Teu sorriso aos poucos foi se apagando...
Teu olhar vazio foi me definhando...
Ouvi teus passos se distanciando...

Mas fui feliz, não há como negar,
Intensamente esse amor vivi...
Só que a história teve um novo fim,
Pois do veneno, só eu bebi...
-----------Só
--------------eu
------------------morri!

Foto de Izaura N. Soares

Magia Sedutora...

Izaura N. Soares

Hoje acordei com um enorme desejo
De ter você em meus braços para
Acariciar seu corpo, sentir o prazer,
Tomando conta de mim.
Minhas pálpebras se fecham num delírio,
Num êxtase que adormece num sono
Profundo e nesse sono, sonho com o mais,
Terno amor numa noite silenciosa,
Convidativa, me faz sentir o toque das suas
Mãos deslizando sobre o meu corpo que
De ansiedade desaba sobre o seu.
Meu inconsciente agita-se o meu ego que
Na ânsia pelas suas carícias, aumentava,
A cada movimento bailando sobre o seu corpo.
Extasiado de desejos, tu vens de encontro,
Com meu sexo molhado delirando numa orgia,
Entre a magia sedutora do seu tesão destilando
Sedução a todo vapor sentindo toda a força
Do amor que juntos exploravam o oceano
Em busca de uma estrela, chegando à margem,
De sensações, de fantasias alucinantes.
Como são lindos os nossos sonhos...
Que embriagados no doce sabor do mel aquecem
O próprio céu no calor de uma paixão!

Foto de Raiblue

Cinemat(orgia)

Sexo é cinema
O mais explícito
Filme fazemos
Ardentes cenas
Por trás das cortinas
Do pensamento
Escuridão
Tesão
Câmera em ação
E a cama se faz ali
No chão
A luz
Nosso fogo
Chama incandescente
Focos
Ângulos
Enquadramentos
Perfeitos
Vários planos
Sem roteiros
Definidos
Ações improvisadas
Selvagens
Inusitadas
Mãos que entram
Saem,mexem,vibram
Pegam,alisam
Desbravam
Todos os caminhos
A legenda
É o próprio
Movimento
Linguagem
Universal
Sonoplastia
Digital
Sussurros
Límpidos
Insanos
Eletrizando
A pele
Líquidos
Escorremos
Na tela
Cinematorgástica!

(Raiblue)

Foto de Marta Peres

Morte

Morte

Olhos voltados para o teto e abertos
Os braços magros, brancos e nervosos,
Espasmos esporádicos em espaços compassados
Infinita dor da solidão de um deserto.

Perfil pálido, tímido e dolorido
Traços indefinidos e vagos
A luz aos poucos se acabando
Na névoa que nos olhos vão se formando.

Nos céus, branca luz mortuária,
Luz da dor e do martírio
Triste agonia da mágoa funerária
Sentindo seu próprio passamento.

Só lhe resta agora os vermes!
Da vida levará cruel tormento
Tristeza imensa se lhe atassalha
Dor cruel lhe vem no pensamento.

Aos poucos vão se cosendo a última mortalha,
Coveiro abre um fosso lutulento
No pélago profundo esquecimento,
Maldade! É o povo que enxovalha.

Atrocidade cometida, gatilho puxado,
Eternidade! Só resta caminhar por ela
A sociedade hipócrita recrimina
O que na vida, a dor já discrimina!

Marta Peres

Foto de Lou Poulit

O CONDE GAGUINHO

CONTO: O CONDE GAGUINHO
AUTOR: LOU POULIT

Quando chegou a sua vez de jogar, o Bacalhau bateu a pedra marfim na mesa de cimento armado, das que haviam na calçada da praça, e disse espargindo saliva e cerveja para todos os lados: A minha mulher é a melhor. Sabe porque eu sempre ganho? Porque ela é falófaga ...— E desatou sua gargalhada mais destrambelhada. A estranha palavra feriu os ouvidos de todos que a escutaram, despertando curiosidade e calando o burburinho dos que jogavam em outras mesas. Todos queriam saber o que poderia significar aquela palavra, mas como todos já conheciam o jeito do Bacalhau, limitaram-se a rir, vindo alguns em seguida fazer uma roda em torno da sua mesa. Ainda restavam pedras nas mãos dos demais jogadores de dominó, mas eles sabiam que a partida estava selada. O velho Baca tinha a última quina e fecharia aquela partida na próxima rodada, sem que os adversários o pudessem fazer algo para impedir.

À sua direita, o Herculano Fraga apoiou o cotovelo mais à frente sobre a mesa, erguendo um pouco o traseiro suado da cerâmica que espelhava o assento dos bancos da praça, e coçou largamente a sua genitália, num típico gesto de auto-afirmação machista. Como não conseguiu atrair a atenção dos demais, que ainda olhavam para o Bacalhau como se houvessem sido ludibriados no jogo, em seguida o Herculano ajeitou os fios grossos do bigode sobre os lábios e levantou o braço para o garçom, enquanto asseverava em tom de brincadeira para o Bacalhau: Se a dona Marilda sabe disso você ta morto, Baca... A dona Marilda era a mulher do Bacalhau. Era uma mulata peituda, nova ainda mas surrada da vida difícil de criar oito filhos. Era uma mulher forte e tinha fama de valente e de mão pesada, que não havia por ali quem não o soubesse. Do outro lado da rua, um negrinho acenou da calçada do bar, confirmando que já levaria para eles mais duas cervejas. Depois, o Herculano falou com impaciência, mostrando que também nas suas veias o sangue já derrapava nas curvas: Acabou senhores, não adianta chorar o leite derramado. A quina com o terno está com o Baca... É, tem jeito não, mas na próxima vou estar de olho em você, Bacalhau — O “seu” Charuto acrescentou, do alto dos seus mais de oitenta anos... Ô, Cha-charuto, vê se, se não começa aí, o meu parceiro ta be-bêbo, já nem tem, já nem tem condição de roubar no, no jooo-jôgo.

O parceiro do Bacalhau era o Conde Gaguinho, que só bebia uns goles e no copo dos outros, para que sua mulher não visse ou fossem lhe contar. Mas noutros tempos bebera muito e de tudo que contivesse álcool, “menos perfume, não gosto não” dizia sempre. Até que depois de uma bebedeira despretensiosa foi parar no hospital, de onde saiu 45 dias e noites depois, muito pálido, todo de branquinho, parecia um defunto, apoiado no braço companheiro da sua esposa e enfermeira, Josefina. Ficara manco, meio lento e gago, porém ainda estava vivo! Razão da sua contumaz alegria. Era mesmo descendente de um conde argentino, que recebera o título pelo casamento com uma alemã, mas o Gaguinho fazia o tipo canalha-engraçado sem a menor cerimônia, e quando queria fazer com que todos rissem se passava por enfezado, falando palavrões gaguejados. A despeito da piedade carinhosa que despertava, era o mais ladino de todos.

As pedras foram embaralhadas e redistribuídas para uma nova partida. Olhando as pedras que escolheu e fazendo cara de desgosto, o negro velho e malandro, que parecia mesmo um charuto, coçou a calva dos cabelos crespos e brancos e tornou a implicar com o Bacalhau: Mas peralá, voltando à vaca-fria, ô Bacalhau, a gente estava falando de mulher boa, né? — O outro confirmou com a cabeça — Então você disse que a sua era a melhor, mas não explicou o porque... Mas eu disse, “seu” Charuto... Não, você usou de propósito uma palavra que, pelo jeito, ninguém entendeu, ou fez que entendeu... — O Herculano sorriu e o Gaguinho também queria entender, o Charuto insistiu — Vamos logo, Baca, explica isso aí que ela é, que agora todo mundo quer saber...

O Bacalhau se fez de rogado e, aproveitando a passagem por perto do garçon pediu mais cerveja. O Gaguinho arriscou: Ele qui-quis dizer que ela é fa, fa-fa-ladeira... Nem pode, Gaguinho — Replicou o Herculano com um risinho sarcástico — Nem tem como... As jogadas se sucediam e, alheio ao falatório, o velho Charuto não tirava os olhos do Bacalhau, cismou que o pegaria de gato ainda naquela tarde. O Gaguinho arriscou outra: Então só, só pode ser pó-porque na hora a, ‘aaaa-ga’ ela fa-falha – Disse escondendo o olhar por detrás das pedras que tinha nas mãos... Dessa vez todos os demais acharam que não podia ser e caíram juntos numa grande gargalhada. O velho negro fechou o jogo, mas foi o Gaguinho quem anotou numa papeleta o traço correspondente àquela partida (ou pelo menos fez que estava anotando), porque todos riam muito ainda. Enxugando as próprias lágrimas com o dorso da mão, o Herculano explica: Não, senhor conde, nesse caso ela seria ‘fa-falhófaga’ – Mais risadas... E voltaram a uma nova partida. No momento mais decisivo desta partida, na sua vez de jogar o Bacalhau pôs seu dominó na mesa com algum barulho, fazendo um gesto discreto, mas que não escapou ao olhar e aos ouvidos atentos do Charuto. Ó, ‘seu’ Baca, pode parar... Que foi Charuto?... Eu vi, tu ta fazendo sinal com a pedra pro Gaguinho, ta pedindo o carroção do terno pra tu ficar batido... Eeeeuuu? Ocê ta bebo, eu nem to vendo terno aqui... Ah, não né. Então eu vou esperar até esse terno aparecer, porque se o terno com a ás não ta na mesa tem que estar na mão de alguém, e se estiver na tua eu vou te botar no lixo – Prometeu o negro, convicto de que dessa vez pegaria o Bacalhau de jeito. Compreendendo o verdadeiro sentido da expressão usada pelo Charuto, o Herculano completou com sarcasmo: Baca, meu camarada, vai abrindo o teu olho, porque o Charutão aqui escolheu você pra botar no lixo, e eu acho que você não está em condições de sair correndo não...

Novamente foi a vez do Bacalhau, mas ele não se mexeu. Os segundos passam e ele não se decide, olha para o jogo e para as pedras na sua mão diversas vezes, porém nada de colocar uma pedra na mesa. O charuto se esforçou para parecer irritado, coisa impossível de se imaginar para quem o conhecesse, e exigiu que o outro deixasse os demais jogarem. O Bacalhau ouviu impassivelmente. Sabendo que a dupla que perdessem mais uma partida perderiam também o jogo e teriam que sair da mesa, Herculano pôs lenha na falsa fogueira do seu parceiro, aproveitando-se do seu potente timbre de voz: Ta fugindo da charutada, né. Mas não vai adiantar, ou você joga ou levanta da mesa e deixa os outros jogarem... Pressionado, o Bacalhau acabou por ceder, mas não sem antes fazer também a sua cena, olhando desafiadoramente com os seus olhos baços e estreitos para os dois adversários, tentando fazê-los crer que tinha duas pedras válidas naquele momento. Mal o Bacalhau acabara de deixar a sua pedra na mesa, imediatamente e com um sorriso largo, cheio de dentes amarelados sob o bigode grosseiro, o Herculano Fraga fechou as duas pontas em ternos, e o Charuto deu um tapa na mesa de satisfação. Agora era a vez do Gaguinho, e ele tinha a impressão de que todos os olhares da praça e das janelas dos edifícios em volta estavam esperando impacientemente pela sua jogada. Tentou pensar em uma saída para impedir que jogassem seu parceiro aos urubus. Mas não havia. Estavam todos prestando atenção e, naquele momento, não seria possível usar uma trapaça sem que a percebessem. Expirou todo o ar do seu pulmão frágil e num gesto de desânimo jogou o tão esperado carroção de ternos sobre a mesa, sem a gentileza de encaixá-lo em uma das pontas. Na sua vez, o velho negro apontou o dedo indicador grande e cheio de nós para o Bacalhau, “Sua hora ta chegando, meu neném...”, e estendeu a mão para encaixar a sua pedra. A chegada do garçom com a cerveja não interrompeu a risada geral provocada pelo alerta do negro, mas quando o rapaz estava servindo Bacalhau fingiu se acomodar no banco, e assim fez com que o garçom derramasse cerveja no colo do Charuto. O negro deu um pulo ágil mas inútil para trás, reclamou, chamou o adversário de desastrado, porém não demorou para que voltassem ao jogo, que estava no seu clímax. Mas assim que recomeçaram chegou a vez do Bacalhau, que disse apenas “passo”. O Herculano foi o primeiro a escapar da surpresa: Como “passo”? A gente sabe que você pediu o terno, agora vem com essa de “passo”...
Mas eu não tenho terno aqui, uai. O que você quer que eu faça, Herculano?... – O Bacalhau tentou se justificar. Todos se entreolharam, procurando uma pista para entender o que estava acontecendo ali.
Determinado a pegar o Bacalhau, o negro levantou-se e fez com que ele abrisse as mãos. Todos viram que nelas faltava uma pedra. Então, afastando as pessoas da roda para procurar a pedra que faltava pelo chão da praça, para sua surpresa e dúvida o Charuto se viu diante da Marilda, e aos pés desta a tal pedra. Sem saber ainda o que estava acontecendo no jogo, a mulata respeitosamente agachou-se para pegar a pedra e entregá-la ao velho negro, que assim sentiu-se embaraçado. Até um segundo antes queria provar que o marido dela era um trapaceiro safado, mas agora já não tinha certeza de que devia fazer isso. Sentindo a tensão provocada pela chegada inesperada da Marilda, o Gaguinho quis fazer uma graça para descontrair: Ó, “se-seu” Baca, chegou a fa, fa-falófaga... A mulher não entendeu, mas sentiu-se convencida de que não devia ser coisa boa e foi logo dando a cara emburrada: Quem é o que aqui, “seu” moço?... O Bacalhau não movia nem um dedo, quietinho, com o pescoço já enterrado no tronco. E o conde, deveras assustado, quis se eximir de qualquer culpa: Sei não, dona Maaa-marilda. Quem fa-falou foi aqui o seu, ma-marido Baaa-baca!

A Marilda até costumava dar uns tapas no Bacalhau, de vez em quando. Porém achava que isso fazia parte da privacidade deles, e não julgava aceitável que sequer o tratassem de “babaca”, ou de qualquer outra forma pejorativa. A perder tempo explicando a sua intenção inocente, o Gaguinho preferiu levantar-se, e se preparar para correr o quanto pudesse. E a mulata já ia dando a volta na mesa, na sua direção. Peraí, dona Marilda. O seu marido aqui ta roubando no jogo. Essa pedra que a senhora pegou no chão bem ali, foi ele mesmo que deixou cair de propósito... – O Charuto argumentou. Conhecendo bem o próprio marido e sentido-se na condição de ser respeitosa para com a severidade do negro octogenário, a mulata estancou por um instante, até decidir o que fazer. Herculano tentou dar um jeito no aperto do amigo Bacalhau: Pode deixar, a gente já conhece esse pilantra e gosta dele assim mesmo... Mas a Marilda não quis saber de conversa, pegou o marido pelo cotovelo e foi puxando aos trancos, dizendo que queria ver se a pilantragem dele funcionava em casa. Não houve quem conseguisse ficar sério.

Fim de confusão, o Charuto pediu ao Gaguinho a papeleta de marcação dos pontos: Gaguinho, passa a papeleta e deixa a outra dupla sentar na mesa... Mas a paaa-partida não te-terminou! -- O conde protestou. Como não? – Herculano quis ver o rasgo de papel – Só faltava uma, o seu parceiro roubou, o ponto é nosso... Pooo-pode ver bem aí na, na paaa-pa-pa-peleta que ainda fa-falta uma paaa-partida!... Falta nada não, seu conde canalha! Eu estou contando desde o início. Você deixou de anotar aqui a batida do Charuto... Eee-euuuu?... Você mesmo, com esse seu jeitinho de pobre coitadinho, seu Gaguinho, sei que é o maior larápio... O Gaguinho pretendia rechaçar a acusação do Herculano, mas como todos em volta riam com certeza concordavam, e o jeito foi rir também. Para não perder a dignidade ponderou, para delírio dos demais: Ora, aaamigo, se eu não tenta-tasse, como podia saaa-saber se você presta aaa-tenção no jo-jogo?

Foto de Lou Poulit

TROVÃO E O SABIÁ SERENO

CONTO: TROVÃO E O SABIÁ SERENO
AUTOR: LOU POULIT

Sentada sob o alpendre da mansão colonial, sua fortaleza de toda a vida, Sinhá havia se perdido em seus pensamentos. O dia havia se despedido há pouco, com a apoteose fugaz de um céu prestante de cores e texturas, que de tudo o que pode tentou fazer para merecer a atenção da moça. Nem a sinfonia da passarada fez efeito. Tudo em vão, restaram as estrelas que nem sequer se aventuraram. A passarada se calou para dar a vez aos grilos, sapos e outros barulhentos notívagos. Sinhá revirava mecanicamente os fartos rendados da saia à sua volta, pois em espírito não estava de fato ali.
Então, passos arrastados vindos de dentro precipitaram-na do etéreo em que vagava, de volta ao corpinho magoado pela posição pouco cômoda. De tão surpresa e assustada, não teve coragem de se virar. E esperou apenas, assim como seu coraçãozinho, que esperava dentro do peito prestes a lhe saltar pela boca. Aos poucos uma luz tênue, mas capaz de expulsar soberanamente a escuridão, se aproximou. A moça temeu que se aproximasse ainda mais e explodiu em gritos nervosos: Saia já daqui! O que quer de mim, demônio? Eu não lhe chamei aqui!
A pouca distância estava parado um caboclo mulato de aspecto impressionante. Pele muito morena e os olhos claríssimos de uma onça enterrados no rosto embrutecido, como pequenas gemas raras no emboço úmido da terra, adubada pelos séculos. O velho Sereno segurava a candeia, tentando compreender, tão próxima, a moça que à distância vira crescer, como flor única naquelas glebas. Durante algum tempo Sinhá não conseguiu balbuciar mais uma palavra. Tentava decifrar como aquela figura estranha havia invadido seu silêncio, que significado poderia haver nele e se seria perigoso para as coisas ricas que guardava no segredo das suas lembranças. Porém, achando em seguida que o silêncio era ainda mais  insuportável, a moça voltou à carga: Quem lhe deu o direito de estar aqui?... Ele tentou explicar: Vim só alumiá o negrume da noite pra vosmicê, Sinhazinha... Carecia de se assustá não... Não tenho medo de nada... — Ela empinou orgulhosamente a própria fragilidade. Como poderia temer um empregado dentro da casa do senhor meu pai? Ademais, estava aqui com meus pensamentos...
O homem olhava com segurança os olhos escorridos de lágrimas da moça, cheios de brilhos amarelados pela chama da candeia. Sentia pena dela, mas sabia pelas décadas de convívio, que não se devia manifestar piedade para com os senhores. Sereno sabe que está triste, Sinhá. Ma num pode fazê nada não... — Disse ele abaixando os olhos. Mas como pode saber disso? Não lhe dou esse direito. De onde você saiu?... Ainda com os olhos baixos, ele respondeu: Sempre estive aqui, Sinhazinha. Vim pra essas terras do senhor seu pai na barriga da minha mãe, que se foi embora amarrada naquele pé-de-jurema-branca, bem ali na direção onde a lua vai nascer não demora nada. Eu era desse tamanhinho quando ela descansou, cabia no cesto onde os cavalos comiam o mio que ela dava com gosto. Naquele tempo o capataz era um homenzinho muito do ruim... Ela só queria alimentar a sua cria...
A moça ficou perplexa. Mas se refez da letargia porque lembrou-se do seu alazão, tornando a gritar: Não me fale do meu alazão. Eu amava o Trovão como se fosse uma pessoa! Ninguém montava nele além de mim! E acabaram de trazê-lo num arrasto de pau-de-mangue... Ele estava morto! Eu vou matar quem fez isso com ele... E a chorar convulsivamente ela recostou-se no portal, até sentar-se de novo no degrau do alpendre. Sereno continuou calado, imóvel, com os olhos cravados nas lajes do chão. Como se sua alma cansada procurasse uma brecha para um imenso arrependimento.
Tentando descobrir em seu próprio silêncio o que poderia fazer naquela situação triste e constrangedora, o velho caboclo foi lentamente até a arandela pendurar a candeia. Não sabia o que fazer a mais. Durante quase vinte anos quisera ajudá-la em muitas situações de perigo, mas sempre chegava alguém antes. Sereno trabalhara sempre na plantação, por vezes tratando dos cavalos doentes e por outras como mateiro. Amava a menina, antecipava os riscos que ela corria, mas haviam outros mais próximos dela. Agora o mesmo sentimento de proteção lhe parecia palpável de tão denso. E ironicamente, embora estivessem ali apenas os dois, simplesmente não sabia o que fazer.
Passados alguns poucos e imensos minutos, a moça quebrou o silêncio, mais calma, porém sem perder a altivez da voz: Como se chama?... Sereno, Sinhazinha — Disse ele. E porque está aqui, nunca lhe vi dentro de casa?... O velho empurrou a aba do chapéu para trás e coçou a calva rala da carapinha branca, como sempre fazia quando se sentia inseguro. Demorou um pouquinho mas respondeu: Eu vim de pés lá de trás da serra dos pastos... O senhor seu pai mandou que me alimentasse e ficasse por aqui até amanhecer. Ela insistiu: Mas por que veio de pés? Ah, Sinhazinha, parei no meio da mata para ouvir o sabiá-da-mata, tava cantando bem em cima de mim. Desde menino adoro os sabiás, num gaio da mangueira, por cima da minha palhoça tem um que fez ninho agora. Quando passo o café da tarde ele ta arrebentando os peitos, de tanto chamá uma fêmea pro seu ninho novinho e arrumadinho. Mas me distraí, meu cavalo assustou-se com a onça e saiu desembestado, nem sei pra onde. Mas vou lá buscar, pro seu pai meu senhor num ficá num prejuízo maió. Não é um bicho caro, é até meio capenga. Mas é um bom companheiro, num sabe?... Vendo a perplexidade dela, ele perguntou: Que foi Sinhá, com essa boca aberta, quem nem peixe morto?... A moça sussurrou: Onça? Que onça é essa, Sereno?
O velho respirou profundamente. Não haveria mais de esconder. Ela que soubesse a verdade e que fizesse o que achasse justo. Disse a ela com segurança: A mesma que pegou o Trovão... Aquele sangue todo foi porque quando cheguei ela já tinha garrado no pescoço dele... — Disse o caboclo, limpando instintivamente as mãos grosseiras nas calças. A moça mostrou-se inconformada: E você não fez nada para ajudar o coitado? Não tinha uma arma, Sereno? Sinhazinha, ele caiu por cima da bicha, esperneava como um porco endemoninhado... Endemoninhado é você, miserável! Ele era o alazão mais valente que conheci. Só que havia uma onça mordendo o seu pescoço. E um homem medroso e inútil assistindo a sua morte desesperada! Que queria que o Trovão fizesse?... Sereno, se calou constrangido e ela quis saber mais: E depois, Sereno?... Sinhazinha, num é nada fácil chegar perto de dois bichos grandes e raivosos... E eu só tinha mesmo o meu facão de mato e não queria ferir ainda mais o Trovão... Sim, mas o que você fez?... — Ela estava implacável. Eu nada, Sinhazinha, a onça é que resolveu desaparecer. Onça é um bicho covarde. Só pega pelas costas, sangra e espera morrer. Mas se sentindo insegura, ela larga e fica de longe só espiando. Esperando a hora de comer sossegada. E o outro, que também é bicho, sabe que vai morrer e que ela vai vir lhe rasgar as tripas. É só uma questão de tempo. O mundo dos bichos é assim mesmo, Sinhá. Ninguém muda não. Vosmicê ta triste e eu também. Mas o Trovão ta não... Ah, não... Ta não. Só ta esperando os primeiros lampejos do dia, pra correr por essas terras sem fim, pelos campos e pelas matas fechadas, num tem mais nada que lhe impeça... Vai conhecer todos os lugares onde nunca tinha ido, vai beber água do rio grande e vai saltar nas ondas da praia. Enquanto isso nós vai ficar aqui chorando de tristeza, porque num pensa que ele ta livre como nunca foi. É que como nós só sente o sentimento da gente, só pensa com a cabeça da gente, então acha que o Trovão ta sentindo e pensando a mesma coisa que a gente, Sinhazinha... Não tenha raiva não... Que ele não pode aparecer pra vosmicê e lhe contá como que é lá, pronde ele foi. Ele vai ficar triste por causa da sua tristeza, Sinhá...
A moça relutava, porém se esforçava para aceitar aquela sabedoria estranha que quase desdenhava os seus mais puros sentimentos. Embora não tivesse coragem de dizê-lo, até que gostava muito de imaginar seu querido Trovão suando da correria que tanto amava, brilhando ao sol e ao luar. Ele amava o vazio dos espaços, os obstáculos que vencia, amava o vento revirando as suas crinas, enchendo-lhe os pulmões no peito enorme e musculoso, e depois expirava com força fazendo seu próprio vento, era quase um deus da natureza. Ah, como ele gostava disso... — Pensou consigo. Alagada da própria ternura, disse então ao velho: Ele lutou até o último instante não foi, Sereno?
Ele era valente demais, eu o conhecia desde que era um potrinho muito abusado, sinhá... Já mais calma, finalmente ela tornou-se amigável: Sou lhe muito grata, quero que fique, se alimente bem e descanse bastante. E depois vá buscar o pangaré, antes que essa onça o coma, já que não comeu o Trovão, pois que os homens foram buscá-lo antes disso... Sereno sentia-se mais à vontade agora, já sentado também, mas no degrau de baixo como lhe convinha. E completou: Vou Sinhazinha, antes de clariá vou atrás dele. E ai dela que se meta, pois vou levar um trabuco... Faça isso por mim, Sereno... — Ela pediu ainda com raiva.
Não posso prometer, Sinhazinha... Não Sereno, não se arrisque... E se ela lhe pegar pelo pescoço, como fez com o Trovão?... Vosmicê num fique triste não, Sinhá... Também sou meio bicho, já fiz muita coisa nesse mundo de meu Deus... Já matei oito onças, seu pai meu senhor pode lhe dizer... Uma delas ia morder era o pescoço dele... É que de uns anos pra cá elas estavam sumidas, que os cachorros farejam a catinga delas de longe... Gato tem raiva de cachorro e vice-versa, num sabe?
Eu prometo, Sereno. Vou contar para os meus netinhos essa estória. E vou me lembrar de dizer que você foi um herói, que não pode salvar o Trovão, mas veio de pés buscar homens, para que ele tivesse um enterro digno. Meus netinhos vão aprender a odiar todas as onças, porque essa matou o Trovão... Mas eis que tais palavras indignaram o velho filho-do-mato, e ele quis ser exato: Não, Sinhazinha. Isso não é certo, não é verdade não... Como, Sereno? Se ela não matou o meu alazão, então quem foi?... Fui eu mesmo, Sinhazinha... A moça de um pinote ficou de pé, com o dedo em riste, e novamente enfurecida lhe disse: Seu traidor! Vá embora, suma daqui! Nunca mais quero ver sua cara! Não vou lhe perdoar jamais! Vá logo. Antes que eu grite por alguém para lhe surrar no pé-de-jurema, desgraçado! Naufragados novamente em profunda tristeza, ambos se foram. Ela se foi para chorar na cama e ele no mato. Mas nenhum dos dois conseguiu dormir.
A moça rolou na cama, sobre o lençol úmido das suas lágrimas, até que lhe viessem chamar para o almoço no dia seguinte. À tarde, na hora da refeição também não quis sair do quarto, deixando a todos apavorados. Seu pai começou a preocupar-se, vendo que as mucamas não paravam de cochichar pelos cantos. Resolveu-se a sacudi-la. Entrou no quarto como um furacão para intimidá-la e foi querendo saber o porque daquele drama. Sabia o porque, também sentia muito pelo alazão, sabia o valor que tinha, mas não queria perder também a filha. Sinhá estava desolada e não apenas pelo seu Trovão. As horas lentas da madrugada lhe convenceram de que havia sido injusta com o Sereno. Estava agora claro que quisera apenas poupar o animal de mais sofrimento. Não podia carregá-lo nas costas e com certeza não quis que o alazão assistisse a desgraçada da onça comer-lhe as carnes ainda vivas. Ela estava soterrada de remorso e com muito jeito fez o velho concordar em mandar buscá-lo quando voltasse do mato. Assim também concordou em levantar-se.
Alguns dias depois estava novamente sentada no alpendre, mas dessa vez assistiu a obra da natureza, que se comprazia em dispor da sua atenção. O dia terminou. Escureceu por completo. Ela se lembrou da noite em que se assustou com Sereno. Dessa vez queria imensamente que ele lhe trouxesse a candeia. Havia preparado algumas palavras para lhe pedir que perdoasse a grosseria. Ninguém lhe dissera uma palavra durante esses dias, tinha a impressão cada vez mais densa de que não lhe queriam falar a respeito. Uma luz veio de dentro, mas pelo andar sem botas não poderia ser Sereno. Era uma mucama, que foi dispensada. Sinhá só queria a luz do velho caboclo, como naquela noite. Agora queria gostar dele, da sua sabedoria e da sua paz. A lua começou a aflorar, derramando seu prateado pelas colinas, que abraçavam em segurança a mansão. De repente, algo se mexeu nas folhas do pé-de-jurema-branca, que pareciam lhe acenar variando o reflexo do luar.
Então, para sua imensa surpresa ouviu com nitidez o canto mavioso de um sabiá. Mas como? Sabiá cantando há essa hora? Não pode ser, já é noite... Não queria aceitar o que seu próprio silêncio lhe dizia, lutava contra com todas as suas forças. Então ouviu de novo, logo ouviu outra vez e de novo tornou a ouvir. As defesas que havia erguido em si própria foram ruindo a cada canto, como se fossem rojões de poderosos canhões. Até que não pode mais sustentar a própria razão. O sabiá só podia estar feliz. Tão feliz que nem se importava com a noite, não queria esperar o amanhecer! Se quisesse vê-lo sempre feliz, devia afastar a tristeza. Libertá-lo do próprio peito para que fosse completamente livre, para que cantasse onde quisesse e quando quisesse. E ainda voar sobre as matas e as ondas do mar. Seu canto não era triste como o de outros, mas sim vigoroso e doce como o de uma flauta da natureza.
A mucama voltou com um semblante pávido, porque viera lhe dar uma notícia. Mas quedou-se quando à luz da candeia viu que o de sua Sinhazinha sorria para a lua, já em seu esplendor. A mucama lhe disse: Sinhazinha, o seu pai mandou meu irmão e meu primo buscar o Sereno. Mas eles não querem falar, estão com medo. Medo de que? Diga logo... Não fica brava comigo não Sinhazinha... Fala de uma vez, mulher... É que a onça pegou o Sereno também, Sinhazinha...
Completamente perplexa, a mucama ouviu a Sinhá lhe dizer com doçura: Não fique assim tão triste. Há essa hora ele deve estar bem assobiando por aí... Por onde, Sinhazinha?... Pela natureza, pelo céu, pelo rio grande, ou se lavando nas ondas do mar... A pobre mucama não conseguia atinar com aquelas palavras surpreendentes e Sinhá completou: Anda, pode deixar a candeia na arandela e vá pra dentro. Se precisar eu lhe chamo, agora vá. Quando mais tarde seu pai veio lhe buscar para dentro, aliviado pelas falas da mucama, encontrou-a bem disposta, quase feliz para aquelas circunstâncias. Sinhá aproveitara o tempo para fazer uma prece emocionada, repleta de gratidão e amizade, pela alma do velho Sereno. Durante toda vida estivera bem ali e nem o havia notado. Mas havia sido de grande valia justo no momento que mais precisou. Se estava feliz a ponto de assobiar no galho do pé-de-jurema àquelas horas, então deviam estar todos felizes: O Sereno, sua pobre mãe e também o Trovão. Não, não queria mais pensar em tristezas.
Foi quando seu orgulhoso pai, sentindo necessidade de participar daquele momento lhe disse: Deixe estar, querida... Aquela maldita onça não irá longe... Eu me encarregarei disso pessoalmente.
 

Foto de Lou Poulit

SÃO JORGE E O DRAGÃO

CONTO: SÃO JORGE E O DRAGÃO
AUTOR: LOU POULIT

Sentados em bancos tipo meia-bunda, Hermes e Cuia haviam acabado de chegar ao balcão da birosca. Cuia era bebedor dos bons. Mulato quase negro, de fala mansa e bigodinho de chinês. Bom malandro, natural da favela, sobrevivente a tudo. Em vez do calção e dos chinelos-de-dedo, de terno e gravata daria um excelente relações públicas. Só bebia cachaça e tinha preferência: “Ô Portuga, dá meu marimbondo aí!” Já seu amigo Hermes era letrado. O Vela, como era chamado desde a adolescência, era megérrimo, branco como um defundo, e parecia meio lento em tudo. Havia se afastado dali por alguns anos e nesse tempo fez faculdade, arrumou emprego, casou, separou, casou de novo, separou de novo, casou mais uma vez... Continuava mal bebedor, pedindo a mesma marca de uísque: “Ah... Bota qualquer um aí, Portuga”.

O Cuia só observando. Em sua cabeça um silêncio era bom conselheiro: gozado, o tempo passa e as pessoas vão se modificando. Aquela que conhecemos desde dos tempos das pipas e peladas, agregam-se com outras que não conhecemos ainda, mas parecem tão importantes quanto as antigas, senão mais. E todas se dão muito bem umas com as outras, dentro do mesmo corpo. Era manhã de domingo, dia de decisão no campeonato local de futebol. A birosca na encosta da favela já estava quase lotada. Se a polícia chegasse de repente, com certeza ganharia o dia, porque já era quase impossível aos de dentro vigiar os que viessem de fora, e alguns ali eram desejados pelos homens da lei. O tumulto pacífico da birosca era como o Hermes. Com o passar dos anos alguns não arredam pé. Outros, desconhecidos, chegam, depois voltam e vão ficando. E outros tantos somem, por algum tempo ou definitivamente. Mas a birosca ainda era a birosca do Portuga e as alterações individuais não modificavam muito a mistura. Fora a fauna birosqueira, tudo mais parecia continuar nos mesmos lugares: as garrafas de bebidas mais caras, os salames e enlatados cobertos de poeira. No nicho de táboa a lâmpada devia estar iluminando o São Jorge que, a despeito da ausência da sua lança, não fora ainda comido pelo dragão, apesar de tantos anos de luta. O próprio Portuga sempre se dizia desconfiado de que aquele dragão enchia a cara durante a madrugada, depois que fechava as portas, e que só por isso não conseguira ainda comer o santinho.
 
O Hermes agora tinha uma identidade virtual, a julgar pelo palavreado que estava usando e que provocava a indignação dissimulada dos bebuns mais próximos: Sabe, Cuia, o Portuga devia deletar aquele mictório compactado... Como é que é? — Espantou-se o amigo. É verdade, mermão... Aquilo é um banco de vírus! O Portuga é meio lento mesmo. Ele quer que esses caras acertem uma latinha daquelas. Já viu bêbado bom de mira?... Não. Nunca vi não... Então, Cuia, pra começar você tem que se espremer pra passar na portinhola. Só nisso já vai um risco. Depois tem que segurar a bebida, o cigarro, a portinhola... A portinhola?... Claro, mermão, vai que alguém deixa pra última hora e entra lotado. É uma senhora portada!... Riram-se os dois e o Cuia completou: É o que chamo de um arranca-rabo! E o cara que não queria encostar em nada... Vai chegar em casa todo molhado – Hermes interrompeu - E a dona encrenca vai inserir o cara na casinha do quintal, vai passar a noite junto com o Totó!... Ô Hermes, por falar nisso, cadê a Laurinha?... Laurinha? Ô Cuia, que estória é essa de “por falar nisso”? Eu nunca dormi com o Totó não. Você precisa ler as atualizações do meu perfil... Ler as atualizações... – Repetiu o outro perplexo. E faz isso rapidinho, porque eu to saindo, Cuia... Você ta saindo. Já vai embora?... Que vou embora, cara? Quis dizer que to desistindo das mulheres dos outros... — E aproximou-se do ouvido do amigo — Estou apostando todas as fichas na Mentirinha... Que Mentirinha, Hermes?... Ô rapaz, aquela gata gorducha, que trabalha na “lan house”, vai dizer que nunca viu?... Sei, da loja de internet ali no fim da ladeira. Mas não era a Laurinha a razão da sua vida?... Laurinha nada. Se arrumou com o dono da firma, agora desfila de gerente... Ô meu irmão... — O Cuia mostrou-se penalizado — Que azar... Azar? Você não sabe da missa a metade. Depois dela já tive a Mariazinha, a Teresinha e a Socorrinho... É mesmo Hermes?... Tô te falando, Cuia, mulher dos outros agora pra mim é homem!... Nenhuma delas deu certo, né?... Não podia dar: A Mariazinha só queria saber de ganhar coisas caras... Ih, mermão, isso ia te deixar na miséria... Deixou mesmo. A Teresinha no início era uma santinha, o marido tinha sido atropelado, vivia numa cama, e ela passava o dia fazendo sexo pelo computador... Mas isso não resolve, Hermes... Não, a gente saía toda semana... Então, qual foi o problema?... Ela acabou viciada, Cuia. Perdeu a fibra... Como assim, não era a sua mulher?... Não!! Era mulher do computador!!... Ô Portuga, dá mais um aqui pro Hermes!

Cuia precisou pedir mais bebida para dissimular. Tinha muita gente em volta olhando, curiosa por saber quem era aquela tal mulher do computador. Sem se dar conta e parecendo soterrado de tanta culpa, Hermes foi se explicando: Mas a Laura, ô Cuia, ela não foi a única culpada, sabe? Porque quando comecei a desconfiar dei de ficar deprimido. Depois, você sabe. Eu já não dava mais cem por cento, depois nem oitenta, e foi diminuindo, diminuindo a transmissão dos dados. Entende?... Dos dados? Ah, sim, acho que entendo. Mas e a outra?... Quem, Cuia? Já te falei, depois foi a Mariazinha. Me deixou numa miséria de dar gosto. Ô acesso caro aquele, sô... Aí eu não podia mais fazer outras coisas das quais gostava e sentia falta, não tinha grana pra nada. Estourei o cartão de crédito. Ninguém olhava mais pra minha cara, mermão... Tentando entender melhor, o Cuia arriscou meio sem jeito: Ah, a transmissão voltou a cair, né?... Chegou a menos de um quilobite por segundo! Ô desespero o meu... Por que você não fez uns programas, pra variar?... Programa, não fiz nenhum, Cuia. Mas baixei tudo que pude baixar. Todo dia era dia de “down”. E nada de “up”... Nem um cachorrinho? — O Cuia perguntou brincando, para tentar levantar o astral do amigo... Nem um, era só cavalo-de-tróia!... Essa eu não conheço ainda, mermão... Nem queira, Cuia. Depois você tem que fazer uma faixina geral. É muito chato mesmo. E se perdesse o HD nunca mais vinha aqui beber com você. Em falar nisso, ô Portuga! Cadê o meu uisquinho?... Já vos dei, ó pá!... Tão dá outro!
Da posição em que estava, Cuia percebia o interesse crescente dos bebuns em volta na estória do Hermes, mas achou melhor não interromper. O amigo devia estar precisando desabafar. Depois, eles não poderiam mesmo entender aquele dialeto de informática. E o Vela continuava falando: Agora a Teresinha, Cuia, nas primeiras vezes aquilo chegava sem jeito, olhando pro chão... Mas dali a pouco a santinha virava o demônio com rabo e tudo. Caraca, mermão! – O Cuia completou – Você só no piloto-automático... É isso, Cuia, o navegador era dela. Ela que escolhia a página. E num tinha anúncio não!...
 
Ao ouvir tais palavras, um dos bebuns já bastante calibrado, amigo dos tempos das pipas, chegou-se ao ouvido do Cuia e perguntou: Ele tava vendo televisão?... O Cuia dissimulou: Ainda não sei, mermãozinho. Fica na tua aí, na moral. Deixa o cara acabar de falar, valeu?... O bebum voltou meio inconformado pro canto dele e o Hermes falando: Mas foi assim só nas primeiras vezes. Pôxa, Cuia, eu já tava apaixonado por ela quando, numa tarde, começou a balbuciar umas arrôbas diferentes... Que arrobas, Hermes?... Endereços, Cuia... Ah, dos outros amantes dela?... Que outros amantes? Amante era eu, o resto era virtual! — Hermes indignou-se, deu um murro na táboa do balcão e pediu mais uísque. Do seu canto, sentindo-se desprezado pelo Vela, o bebum disse com a voz lenta: Taí, que machão que ele é... E recebeu um olhar enviezado do Cuia.
 
O Vela nem se dava conta do que acontecia à sua volta, ia desfiando o seu rosário enquanto a audiência dos bebuns aumentava: Eu não queria bloquear nem excluir a Teresinha, mas a cada nova tentativa ficava pior. Aí conheci a Socorrinho, que também era Maria, Maria do Socorro... E qual era o problema dela, mermão?... Não era ela não, Cuia. O problema era o marido dela... Ué, por que?... Porque o cara tinha mais de dois metros de altura, era muito forte e ruim que só o cão... E ele sabia que era chifrudo?... Sabia, mas era apaixonado pela Socorrinho e já tinha mandado dois pra lixeira, cara!... Ih, canoa furada, Hermes... Então uma tarde ela me chamou na casa dela... E você foi, maluco?!... Fui, ela me disse que estava precisando de um desencanador... Ocê é doido... É foi doidice mesmo. Quando eu pensei que ia carregar o arquivo, a um megabyte por segundo... O cara te deu o flagrante... Não, tocaram a campanhinha... Ô mermão, ninguém toca a campanhia pra entrar na própria casa... Pois é, mas já derrubou a velocidade, né? Era o filho da vizinha. Ela despachou o moleque e a gente voltou pro matadouro...

O bebum desprezado era um bebum respeitado. Toda hora fazia uma careta, ou um gesto, e os demais bebuns, formando já uma meia-lua às costas do Hermes, trocavam impressões. Percebendo tudo, o Cuia tentou levantar a moral do amigo: Aí você fez o couro comer... O bebum balançou o dedo indicador e fez beiço, querendo dizer que não acreditava. O Hermes respondeu: Mais ou menos, Cuia... Os bebuns metidos a jurados dissimularam uma risada, quando o bebum desprezado saiu da birosca fazendo uma porção de gestos. Mas não demorou muito, alguns minutos depois lá estava ele novamente, pedindo licença para passar e voltar ao seu canto. Que mais ou menos é esse? – Perguntou o Cuia... Eu disse mais ou menos porque quando o programa estava quase carregado, ela me sussurrou que ouvira um barulho na cozinha. Quase que não deu tempo. De repente o cara entrou no banheiro, já tirando a roupa, e quando me viu perguntou o que eu estava fazendo ali... E você, mermão, por que não pulou a janela?... Que janela, Cuia? Primeiro porque não tinha uma por onde eu pudesse passar. Segundo porque o banheiro era tão pequeno e o cara tão grande, que eu tinha a impressão de que éramos duas sardinhas numa lata. Ou melhor, uma sardinha e um tubarão!... Que coisa, rapaz... Ele entrou tirando a roupa e eu tentando vestir a minha!... E aí?... Ai eu disse que já sabia qual era o problema... Como assim, Hermes?... É, mermão, foi o que ele também perguntou. Vou explicar: Quando corri pro banheiro, logo vesti a cueca. Aí ouvi o cara falando que havia chegado o caça-vírus. Então, em vez de por a roupa, eu desenrosquei o sifão da pia e abri a torneira. Só não deu tempo de abotoar as calças... E o cara caiu nessa? Mas que otário!... Bem isso eu não sei. Porque eu disse a ele que no dia seguinte voltava pra tirar o entupimento. Ele me pediu que saísse do banheiro porque queria olhar o serviço. Enquanto ele olhava eu fui saindo. Quando pus o pé na rua, mermão, desembestei que nem a mula-sem-cabeça! E ainda passei uma semana correndo. Vendo o cara atrás de tudo que era poste.
 
A turma de bebuns já não dissimulava mais as risadas e os julgamentos. E já não era composta apenas de bebuns, nem somente de homens. Haviam chegado mais torcedores e algumas prostitutas mas, devido a bebida já em conta alta e ao peso das lembranças, o Vela não se importava. Expunha-se ao ridículo, despertando a piedade de alguns. Cuia não sabia mais o que fazer. Pensava em como levar o amigo para casa, enquanto ele ainda pudesse andar com as próprias pernas. Mas de repente o Hermes se empolgava e recomeçava a falar, sem tramelas na lingua já melosa. Estava claro que ele não se submeteria a nenhum conselho: E tudo por causa daquela piranha, Cuia! A gente era feliz. Eu percebi muito antes e falei com ela. Disse que o Afrânio ia querer lotar o disco, secretária novinha, com tudo no lugar, se sentindo importante... É, o cara foi esperto... Ela é que foi uma vagabunda! Eu avisei antes, ela aceitou porque se entusiasmou com as gentilezas do Dr. Afrânio — Disse o Hermes com desdém... Mas calma, mermão, isso agora já é passado. Esquece essa estória e vai em frente. Você não quer pegar agora a Mentirinha? Então pega e esculacha, mermão. Vai te fazer esquecer as outras. Inclusive a Laurinha... Ah, a Laura não, Cuia. Eu não consigo esquecer o que ela me fez. Nunca, jamais vou perdoar aquela mulher. Se encontrar com ela na rua eu arrebento aquela piranha de porrada.
 
Sem sair do seu canto, o bebum desprezado balançava o dedo e fazia beiço. Os demais, já em franco debate, se dividiam. As prostitutas, em grupo, se defendiam. Alguns torcedores defendiam as prostitutas, para que tivessem o que fazer depois do jogo, afundar a mágoa em caso de derrota. O Portuga não tomava partido, bastava-lhe vender bebidas para todos. No fundo todos se divertiam, aproveitavam o fim-de-semana. Até o dragão se divertia com aquele São Jorge sem lança! Menos o Vela. Estava realmente consternado, não parava de imaginar formas alternativas de trucidar a Laura. E usava as opiniões dos bebuns para reorientar as suas tramas, curtindo a dramatização da sua desgraça, como se isso lhe causasse prazer. Numa dessas, ao dirigir-se ao grupo de prostitutas para ver sua reação, percebeu que uma delas saia de trás do grupo e atravessava em sua direção. Ele não queria falar com ela, era apenas uma puta, como dizia ser também a Laura. Tudo farinha do mesmo saco! Era assim que dizia a si mesmo. Quando o Hermes escutou aquela voz de mulher lhe dizendo um curtíssimo “Oi” pelas costas, imaginou que o mundo havia parado de repente. Um silêncio palpável preencheu o ambiente. O Vela tentava decidir o que fazer, sob o peso de muitos olhares. Quando se voltou para trás, viu que havia uma mulher muito bonita no centro de um pequeno espaço, obviamente aberto para ela. Apesar do congelamento generalizado, apenas o bebum desprezado balançava a cabeça, mas agora positivamente. O Hermes não conseguia articular uma só palavra. Dentro do seu íntimo encharcado de uísque da marca “qualquer um”, tudo era escuridão, uma multidão de vultos ia e vinha, sem que ele pudesse organizar o pensamento. Não teve coragem de dizê-lo, mas não podia pensar noutra, só podia ser a Laura. Queria olhar dentro dos seus olhos, pois conhecia-lhe o olhar, mas a bebida já não o permitia. E quando a mulher lhe estendeu docemente a mão, com um sorriso calmo e soberano no rosto, o Vela não conseguiu fazer resistência.. Atravessando um silêncio galhudo e o farfalhar dos julgamentos de cada um dos presentes, sumiram os dois entre os torcedores que, na rua, preparavam-se empolgados para tomar o caminho do estádio. Como se houvessem ali dois mundos paralelos, o casal e os torcedores não se confundiam, mal se notavam. Era de se pensar que não estivessem no mesmo tempo e no mesmo lugar. Uma mão imensa e irresistível parecia abrir aquele mar de gente, enquanto o Vela, como um bicho dócil levado pela coleira, sentia-se seguro a ponto de não se perguntar se ela viera a mando de São Jorge ou do Dragão.
 
Na birosca, foi o bebum desprezado que quebrou a perplexidade. Deu um tapa na lateral do balcão, fazendo um estrondo que deixou o Portuga furioso: Ô Portuga! Dá outro marimbondo aqui pro meu amigo Cuia, que ele está pagando o meu também... E virando-se para o mulato, que se mantinha pensativo, sussurrou: Como nos bons tempos, heim Cuia?.. Uma a uma as pessoas foram se reacomodando pela birosca. O bebum sentou-se no banco, que o Hermes deixara morninho, e filosofou com ar de sábio: Ah, o amor. Coisa mais linda é o amor... Encafifado, o Cuia não respondeu, mas quis saber: Olha, você até pode me achar com cara de panaca, mas eu não tenho idéia de quem era aquela mulher. Não a vejo há anos, mas acho que não era ela não... O bebum virou a sua cachaça toda de uma vez e depois ficou olhando para o chão, reflexivo, com um sorriso torpe nos lábios. Depois de um tempo, finalmente falou claramente: Não era ela mesmo, Cuia... Mas então, quem era ela?... Depois de fazer uma careta, como se rebuscasse o passado, explicou: Você não se lembra da Lalá, a menina que vendia bala na estação do trem... Não, não me lembro mesmo...

Eu ainda era um homem respeitado naquele tempo. Pois bem, eu sempre comprava umas balas pagando uns centavos a mais, mas a Lalá não pisou no meu laço. Anos depois meteu-se com aquele bandido, famoso por cortar as orelhas dos seus desafetos... O Pinga-Fogo... Isso, ele mesmo. Ele sustentava a ela e a outras molecas. A Lalá engravidou para se sentir mais segura, mas o cara apareceu cheio de buracos e pouco depois ela perdeu o bebê. Então andou na mão outros bandidos, vendida como mercadoria ou emprestada, para os mais valentes. E desapareceu de repente. Passou uns anos fazendo programas com gente endinheirada, gerentes de banco, diretores de empresa... Então, foi nesse tempo que ela conheceu o Vela... Não, Cuia. O tal do Afrânio começou a se sentir incomodado e, para mudar o cardápio, demitiu a Lalá. No desespero ela conheceu o Pinga-Fogo que, no início, deu guarita pra ela... Mas não deu pra reconhecer, mermão. Ta muito diferente... Por isso eu lhe disse que não era ela. Você acha que depois de passar por tudo o que ela passou, alguém pode continuar sendo a mesma pessoa de antes?... É, você tem razão... Tem três meses que ela reapareceu, ta morando num privé dividido com outra, no bairro aí de trás... Mas por que ela tomou aquela iniciativa? O Vela podia meter a mão na cara dela... Porque, como lhe disse amigo, coisa mais linda é o amor...
 
O Cuia custava a acreditar. Não vai me dizer que ela está apaixonada pelo Hermes?... Que apaixonada coisa nenhuma, Cuia... E como ela veio parar aqui na birosca?... Eu chamei, ora. Ela é puta, não é adivinha. Mas eu conheço ela muito bem. Você sabe que conheço as putas daqui. Não posso mais pagar pelos serviços delas, mas conheço bem várias delas e sou amigo delas... Que coisa de doido, quem vai pagar? Quando o Vela entender tudo não vai tirar um tostão do bolso... Nada de doido não, Cuia. Ela não veio receber dinheiro não... Como não?... O bebum parou, se ajeitou no banco e continuou: Cuia, meu velho Cuia, eu já vivi um pouco mais que você. E lhe digo com toda a convicção: As mulheres que vivem de programa não são todas iguais. Mas são seres humanos todas elas, têm sentimento. Eu não pedi, apenas perguntei se ela queria fazer isso. Ela confiou em mim e topou fazer... Mas o Hermes não ama essa mulher... Já deve estar amando, Cuia... Mas não é a Laurinha que ele ama... Que diferença faz, Cuia? Ele precisava amar, se regenerar, tirar o paredão de dentro dele. Você acha que o amor dele, que ele não podia exercer e não servia pra nada, é mais amor que o da Lalá, dado de graça, pela necessidade dele e por amizade a mim? E ademais ela não tem mais nada a perder, só tem a dar. Qual o pecado nesse caso?... Mas por causa dela o Vela podia ter perdido a vida, lá no banheiro do caça-vírus. E noutras vezes, porque ficar pegando as mulheres dos outros, se não for pecado com certeza é muito perigoso...
 
E será que o Vela vai segurar a peteca? Do jeito que saiu daqui, não sei não... Ora, Cuia, ela é uma mulher sofrida, experiente, com certeza vai dar o jeito dela... Mas ele não vai se casar com ela, né?... Casar? Acho que ela não ta pensando nisso, não. Não é esse o trato. Se você sair com uma puta e falar em casamento, nunca mais ela sai contigo, pra não apanhar do cafetão... Mas vai que a Laura pensa... Acho mais fácil que o doido do Vela queira isso... O Cuia pediu a conta ao Portuga, pagou a cachaça e pendurou a conta do uísque, reclamando do preço. Ó crioulo! Então meu estabelecimento virou agora a casa da sogra? Vais dependurar a conta do outro? — O Portuga fez-se de indignado... Ó Português, não virou agora não. E já saindo o mulato completou, para desespero do birosqueiro: Não virou porque sempre foi. Ou você pensa que eu esqueci de quando abriu aqui esse seu barraco? Eu fui dos primeiros a honrar sua birosca com a minha presença, seu ingrato. Nem água pra lavar os copos você ainda não tinha... Ora pois espere aí mesmo, que eu já mostro a sua honra... Para delírio da freguesia o Portuga sacudiu no ar uma garrafa vazia, porém o Cuia já se encontrava na calçada, a uma distância segura, fazendo gestos obcenos para irritar ainda mais o amigo birosqueiro. Vinde cá, ó crioulo! Vou mandar o meu São Jorge correr uma gira atrás de você!... Qual São Jorge? Esse aí cheio de poeira? Deixa de ser mão-de-porco, ó português, e dá uma lança nova pra ele. Ó que o dragão acaba comendo ele, heim...

Depois, já descendo a ladeira, com ar de satisfeito o Cuia disse ao seu amigo bebum: Bom, tomara que pelo menos você esteja certo e ela saiba acender velas. Senão, quando ele voltar aqui, vai dizer que de repente bateu um vento... Que nada, Cuia, você manja muito é de despacho, mas num entende nada de computadores. Ele vai dizer que justo quando o programa estava carregado, caiu a conexão!

Foto de Lou Poulit

O PORCO-ESPINHO DE ESTIMAÇÃO

CONTO: O PORCO-ESPINHO DE ESTIMAÇÃO

Plac, plac, plac... plac-plac... O relógio antigo pendurado na parede encardida do escritório sequer fazia o tic-tac comum e implacável, com o que qualquer relógio de corda tenta destruir os nervos dos ansiosos. No entanto muito pior, era a impressão de que ele movia o ponteiro mais lentamente, à medida que se aproximava a hora de ir embora.

Plac, plac, plac... plac-plac... Era sexta-feira e fim de mês, mas o salário, que já estava no bolso do Filé, não pagaria as dívidas, nem mesmo todas as despesas normais do mês. Por que então não gastar uma parte, para se divertir um pouco? Depois de um mês inteiro catando milho naquela máquina, datilografando guias carbonadas nas quais era proibido haver uma rasura sequer, isso parecia muito justo. Só que era preciso esperar o maldito relógio apontar a hora de parar.

O Filé, como era amigavelmente tratado no trabalho, era um homem infeliz porque pensava não ter expectativas para a sua vida. Pegar o trem de volta para casa era uma alternativa absurdamente sem graça. Fizera isso o mês inteiro. O cardápio seria o mesmo, assim como as cobranças do senhorio e da mercearia. E da sua mulher, com o sorriso escasseado pela vida dura e fartos depósitos de gordura pelo corpo, ele não poderia esperar nem um lapso de desejo, felizmente. Naquela sexta-feira, pensar em fazer sexo com sua mulher era impensavelmente proibido. Durante o mês inteiro ela o proibira disso e daquilo. Agora era a sua vez de mostrar que também tinha o poder de proibir. Ao menos isso.

Não. Não e não. Naquela noite, assim que o miserável relógio se dignasse a apontar o fim do expediente, ele sairia sem rumo e sem destino. Queria ser o que todo mundo parecia se orgulhar de ser: um cidadão comum, numa cidade comum, sob regime capitalista comum, sem que tivesse que fazer para isso algum esforço incomum. Ora, só queria ter a impressão de que as notas no seu bolso, faziam dele alguém importante, ou pelo menos alguma coisa. Ansiava por julgar justificada a tortura diária de fazer aquele mesmo serviço durante o mês todo. Filé tinha sempre a sensação de ser consumido, agora queria consumir um pouquinho, ser servido, assediado para comprar algo e ter o inusitado prazer de dizer que “não, muito obrigado”, mas não por dissimulada incapacidade. Queria dizer não porque não, e pronto, já que passara o mês dizendo sim. Estava assim determinado a fazer apenas algumas das coisas que todo mundo faz naturalmente. E só poderia fazer isso naquela sexta-feira pois no sábado estaria de novo nas mãos da mesmice.

O Filé sentiu um friozinho na espinha quando o chefe passou pelas suas costas e com um tapinha no ombro autorizou o fim do serviço, segundos antes do relógio. Enfim, ali renascia o rapaz viçoso por cujo sorriso, noutros tempos completo e carnudo, a mulherada perdia a compostura. Não era rico, longe disso, mas se vestia bem e usava algumas pulseiras douradas, além de um grosso cordão, onde se via sempre uma medalha com o triângulo maçônico, cujo significado Alfredo desconhecia por completo, mas tudo fantasia. Sua aparência, somada ao sorriso de quem não tinha dívidas ou qualquer outra preocupação, era o suficiente para que conseguisse a maioria das coisas que desejava. O que na verdade não era muito, porque seus desejos tendiam a uma certa proporcionalidade, em relação à sua, digamos, sintética compreensão do mundo. Alfredo era um rapaz feliz, ironicamente, porque não tinha grandes expectativas.

Filé passou pelas portas do escritório e da entrada do prédio sem deixar de cumprimentar uma única pessoa. Já na rua, passou a se comportar como um respeitável senhor. Não quis entrar em nenhuma condução. Como ainda não sabia para onde estava indo, o melhor era andar pelas calçadas, assim poderia parar em frente às vitrines, e esperar que alguma atendente jovem e gostosa viesse lhe oferecer o seu melhor sorriso. Durante todos os demais dias do mês isso não aconteceria, a menos que estivesse no caminho de alguma daquelas evangélicas, que saem em grupo pelas ruas vendendo revistas de igreja e oferecendo a salvação das almas, ou o inverso, como acreditava o Filé. Logo uma vendedora veio de dentro da loja. Não lhe pareceu tão bonita quanto esperava, mas era razoável. A noite estava começando.

Satisfeito por não ter cedido à tentação das vendedoras que encontrou pelo caminho, que até pediram cartão de visitas e número de telefones para futuras compras, depois de percorrer quatro quarteirões encontrou uma boate do lado oposto da rua. Chegou a parar para atravessar dali mesmo, porém viu entrar e sair da casa pequenos grupos de homossexuais e decidiu que devia aplicar melhor seu rico dinheiro, tão arduamente conseguido. Voltou às vitrines. Ainda era cedo para ele, mas a maioria das lojas já estava fechando as portas. Sem problemas, disse a si mesmo, de qualquer forma não pretendia comprar coisa nenhuma. Mas se não teria mais belas e jovens atendentes para lhe sorrir na porta das lojas, então teria que procurá-las noutros lugares. Não haveria de ser tão difícil. Nos quarteirões próximos decerto as encontraria.

Logo adiante, Alfredo passou por uma bela moça, que parecia esperar pelo namorado, encostada num poste de luz. Não... Pensando bem, não podia ser isso. A mulher parecia uma vitrine ambulante. Estava vestida e postada de modo a oferecer partes suas que, pelo jeito, julgava mais ao gosto popular, e só faltava mesmo uma plaquinha em algum lugar, para indicar o que houvesse ali a preço promocional. Além do mais, estava lhe sorrindo com o mesmo ar de sem-decepções que acabara de ver nos rostos das vendedoras nas lojas. Ah, então ela está a fim de um programinha... É bonita demais – pensou – é perfeita. Nem sua mulher, quando era novinha, era tão perfeita. Ora, por que fora se lembrar dela justo agora? Era como se a lembrança da mulher, de tão concreta, lhe empurrasse pelas costas em direção à garota. Mas assim, tão bonita, com certeza lhe custaria os olhos da cara.

Ei, gostei de você... – Filé falou de mal jeito, pois já nem se lembrava direito como se fazia isso. Ela fez que não o ouviu, e ele remendou perguntando: Quanto custa o chorinho?... Para alguém que pergunta como um extra-terreno é bem mais barato – Respondeu a mulher simpaticamente, fazendo graça... Mais barato quanto?... Depende do que você quiser fazer... Como assim? Tem algum tipo de tabela de preços? – Tentando repetir seu velho e irrecusável sorriso – Tem alguma coisa em promoção?... A mulher não gostou muito, clientes que pedem promoção no início da noite são, no mínimo, idiotas. Entretanto, ela resolveu propor um preço intermediário. Derrubaria esse cliente rapidamente, pensou ela, e depois arrumaria mais dinheiro com outro. Mas como mesmo aquele preço mais barato era inviável para o Filé, ele lamentou com muita sinceridade. Quando virou as costas, ela propôs outro menor e logo um outro ainda mais barato, todos recusados. Filé a ouviu dizer a certa distância que fosse à merda, mas nem se importou. Estava dividido. Dessa vez não tinha sentido prazer em dizer que não. Aquela mulher era realmente muito bonita e ele seria capaz de uma verdadeira loucura, se fosse para tê-la só para si... Quem disse que ela aceitaria? Paciência – confortou-se – a noite é uma criança...

Filé prosseguiu em sua caminhada. Mais uma última vez olhou para trás e ela ainda estava lá, na mesma posição, no mesmo poste de luz. E para se recolocar no lugar de quem decide ele disse à meia-voz: É apenas uma puta... Havia muitas na região em que estava, uma espécie de centro com muitas casas de diversão para homens que tivessem algum dinheiro. Uma cerveja! Sim, para matar a sede que já se fazia sentir. Atravessou a rua e passou por uma vitrine redonda, engastada na parede, onde haviam fotos de streepers. Poderia entrar naquela. Eram todas mais ou menos a mesma coisa.

CAPÍTULO II

De início, o ambiente era escuro demais para que o Filé pudesse identificar o que havia dentro da boate. Mas dava pra ver onde era o balcão do bar e lá ele resolver ficar um pouco, até que sua visão se adaptasse à brusca mudança de luz. Pediu um caneco de cerveja com o tom de uma ordem, foi prontamente servido e bebeu o primeiro todo de uma só vez. Estava com sede por causa da caminhada, mas também queria impressionar. Sabia que durante alguns minutos, embora ele não pudesse observar as pessoas com muita clareza, estaria sendo observado pelas mulheres que já se encontrassem lá desde antes, à espera de um cliente. O espaço era pequeno e o condicionador de ar mantinha a temperatura mais baixa do que ele gostaria. Apontou para uma marca de conhaque que conhecia e, servido, percebeu que já era possível enxergar algumas mesas vazias. Tomou a bebida e levou outra dose para uma daquelas mesas, escolhendo a que estava mais ao canto.

Em alguns minutos já havia desprezado vários olhares. Havia ali mulheres de vários tipos, para muitos gostos, sendo naquela casa a maioria composta de mulatas bundudas. Uma das mulheres lhe chamava mais a atenção, uma loira alta e carnuda, porém ela sequer olhava pra ele. Irritado com o que lhe parecia uma falta de consideração da tal mulher, o Filé chamou uma das meninas e mandou que levasse um recado seu. Precisou esperar por longos minutos, mas enfim a mulher levantou-se e veio ao seu encontro, sentando-se no lado oposto da mesa sem cerimônias. Ao chegar trouxera o mesmo sorriso de sem-decepções e, antes que ele o perguntasse, foi logo adiantando o seu preço para o serviço mais rápido, um boquete à queima-roupa. Ele balançou a cabeça positivamente, mas começou uma conversa qualquer. Queria beber mais e ganhar tempo para criar algum clima. Ela preferiu cerveja e Filé mandou que trouxessem para si próprio a garrafa de conhaque.

Dizendo se chamar Paula e mantendo uma aparência de interesse profissional, a mulher aceitou a tal conversa qualquer, mas a partir de certo ponto encurtou a distância e começou a tocá-lo, pegando em sua mão. Ela tinha um hálito forte de bala sabor eucalipto e palavras doces que, entretanto, não dissimulavam o timbre de voz surpreendente, encorpado demais para uma mulher tão bela. O Filé, que se sentia o dono da situação e mantinha um ritmo de goles acima do hábito, tinha a sua capacidade de avaliação já comprometida. Estranhou apenas que ela o tocasse com força e, depois, que suas mãos eram de fato grandes e fortes. Começou então a pensar, que aquela também não era a mulher ideal. Ela bebia muito pouco e, a julgar pelo tamanho do corpo e pela robustez das mãos, caso tivesse que pegá-la à força teria muita dificuldade. Contudo, como já estava mesmo gastando o seu parco dinheiro, era preferível que não fosse em vão.

Com o andar da conversa Filé foi se sentindo cada vez mais pressionado. A doçura inicial cedera lugar a palavras sempre mais impositivas e isso dava a ele a frustrante impressão de que ela estava no comando das ações. Em contra-partida, as suas coxas eram irrecusáveis e ele não resistiu à tentação de pegar nelas ali mesmo. Podiam estar melhor depiladas, porém ele estava perto demais do que pretendia, e não quis recuar. E foi chegando a mão, até que ela o interrompeu e decidiu: Vamos subir, tem um quarto lá em cima esperando por nós. O homem olhou para a escada, que lhe pareceu muito longa, mas normal para uma casa de sobrado como era aquela, e concordou.

Passaram por um corredor escuro, estreito e curto, no alto da escada, e depois por outro maior. De ambos os lados, vários espaços, separados por placas prensadas à guisa de biombos, eram destinados aos amantes com um mínimo de estética e conforto, e sem janelas. Impaciente com a lerdeza etílica dele, Paula o puxava pela mão. Filé parou de repente, se esforçando para conter aquele trem, e perguntou para onde estavam indo. Tenho um quartinho logo ali, só para clientes especiais – ela explicou. Ele achou razoável, pois uma mulher com tanto comprimento não caberia mesmo num daqueles cubículos. Subiram mais dois lances curtos de escada, numa passagem de penumbra que cheirava a forro de telhado, e finalmente Paula abriu a porta do tal quarto. Era apenas um pouco maior que os demais. Como ventilação, o que poderia fornecer um basculante de dois palmos, uma cama e um criado-mudo, uma mesa de bar com duas cadeiras, pregos nas paredes serviam de cabide e uma lâmpada pequenina, a mesma que iluminava uma pequena imagem de Santa Joana D’Arc, colocada no alto, acima da cabeceira da cama.

A sós com aquele mulherão, o Filé devia estar feliz. Tão perto dos seus atrativos, devia estar muito excitado. Prestes a consumar o seu plano, devia jogá-la na cama e obrigá-la a fazer todas as suas vontades, sem avisos ou ponderações, e com todas as concessões. Entretanto, ficou ali mesmo, parado como um bichinho indefeso esperando o bote do predador á sua frente. A mulher desistiu de esperar pela iniciativa dele e foi para cima. Empurrou o Filé para a cama e começou a lhe tirar a camisa, com pouca ou nenhuma delicadeza. Aceitando o pega aqui e espreme ali, o homem chegou rapidamente a duas conclusões pouco desejáveis: primeiro que ela era musculosa e dura demais, o extremo oposto da mulher passiva à qual estava acostumado, e segundo, que estava por demais armada entre as pernas!...

Que isso, mulher... Isso é um assalto? – Perguntou ele com o seu sorriso mais tímido... Não, meu amor, é só uma brincadeira que nós vamos fazer... Que brincadeira?... Meinha, amor... Que estória é essa de meinha?... Assim ó, primeiro você, pode até esculachar que eu topo, mas depois será a minha vez... Pode parar que eu sou macho – garantiu o Filé, tentando parecer bravo e definitivo... Mas Paula ajoelhou-se na cama e, muito convincentemente, arrancou de um só golpe o próprio vestido. Depois disse com inacreditável doçura: E daí, meu amor? Eu também sou, olha aqui ó... Não senhor! Então você quer me comer, seu viadão?... Não amor, só o seu pintinho medroso...

O que se seguiu foi um verdadeiro pandemônio, um arranca-rabo que não poderia caber num espaço tão exíguo, com o fundo sonoro dos gemidos do estrado e das juntas da cama. Sobretudo, não havia espaço para escapar! Pequeno, magrelo e bêbado, o Filé esperneava e dava coices, suas mordidas pareciam inúteis. Pensou em gritar por socorro, talvez alguém o escutasse, mas achou que isso seria vergonhoso demais para um macho com passado glorioso. Para aumentar seu desespero, embora procurasse não conseguia saber exatamente onde estava a porta, cuja face interna era pintada com a mesma tinta da parede. Com tanto pega, estica e puxa, veio enfim o cansaço, o esgotamento precipitado pelo álcool, e uma grande e desesperadora perda de esperança. O homem era muito mais forte e o Filé sentiu os olhos embaçarem, eram as suas lágrimas, que não podia mais conter. Sentiu-se bruscamente levantado pela cintura e posto de quatro na cama. Esperou o golpe de misericórdia. Mas este não veio.

Inexplicavelmente, a imagem da incólume Santa Joana D’Arc havia despencado do seu dossel. Surpreso, Paula a pegou com desesperado carinho, e depois sentou na cama com tal desgosto, que o estrado já alquebrado não suportou e desabou, levando os três para o chão. O Filé já não estava mais tão bêbado que não pudesse entender a raríssima oportunidade que estava tendo. Lembrou-se ainda de pegar a sua camisa, e para escapou daquela bicha enorme, esparramada no que sobrou da cama, achou a maldita porta camuflada e foi-se embora, escorregando nos degraus escuros, segurando as calças à meia-bunda. Aos trancos e barrancos, passou pelos largos homens da segurança e ganhou afinal a rua. Estava ofegante, mas aliviado. Poucas vezes na vida sentira um tamanho alívio.

CAPÍTULO III

Depois de andar mais alguns quarteirões, sempre olhando para trás porque havia saído sem ter pago a ninguém, a garganta novamente secou e o Filé escolheu um bar qualquer para beber alguma coisa. Entrou sob os olhares desconfiados dos que estavam bebendo no balcão, e teve de passar por todos eles, porque o bar era comprido e estreito, só havendo uma vaga no final. Lá também haviam várias mulheres, mas àquela altura todas lhe pareciam suspeitas.

Ali foi bebendo, sem prestar atenção às conversas dos outros que, entretanto, queriam que participasse e volta-e-meia perguntavam sua opinião sobre uma coisa qualquer. Eles não sabiam, mas o Filé ainda não se recuperara do susto e sua falta de sorte podia estar teimando, querendo mais. Além do que, nesse bar não havia nem um calendário com a figura de Santa Joana D’Arc! Junto à caixa registradora, até havia um calendário, mas o Filé não sabia de que santo era. E disse a si mesmo que se ele não conhecia o santo, com certeza a recíproca era verdadeira. Como se não bastasse, aquele santo, em vez de estar num dossel, estava num pregador metálico dos grandes. Não dava pra acreditar que o tal santo fizesse tamanho esforço por um desconhecido.

Na verdade, o pessoal do balcão queria trazê-lo para a conversa porque a conta já estava alta. E tanto fizeram, que o Filé sentiu-se à vontade para dar uma curta opinião a respeito da questão em pauta: um jogo de futebol. Foi o suficiente, já estava dentro. Assim, pediram mais bebida e algum tira-gosto. Agora já gostavam do Filé, que soltava cada vez mais. Achavam que ele entendia tudo de futebol e não economizava palavras, empolgava-se e seus argumentos deixavam a todos convencidos. Porém, de repente, o assunto mudou para mulheres boas de cama. Então a performance do Filé mudou, não queria falar sobre isso. Falou apenas para defender a sua opção sexual, posta em dúvida por brincadeira e tão infeliz coincidência. No mais se calava, comia e bebia, mais dedicado aos seus próprios pensamentos do que à conversa.

Lá pelas tantas, alguém sugeriu um jogo de palitos para decidir quem pagaria a conta. Filé gostou da idéia, pois na purrinha ele se garantia. Contudo a idéia foi derrubada pela maioria. O bar era de um velho senhor, que entregava toda a responsabilidade a seu filho adotivo. Tinha plena confiança nele, havia tirado o negrinho da rua. Ele sabia que tinha sido abandonado à própria sorte pelos pai e era de devotada gratidão ao velho. Porém não era mais o moleque franzino que vivia de esmolas e pequenos furtos. O negro agora era um homem grande e falava grosso, para quem quisesse ouvir.

Olha aí, pessoal, deu só isso aí. Já dividi e a cota de cada um está no avesso. Mas vocês já sabem que aqui não vale cartão, quero grana, dinheiro vivo... Num pedaço de papel, rasgado de algum pacote de cigarros, estava uma discriminação incompreensível do total. O Filé resolveu protestar, pediu que o negro explicasse a conta e o homem torceu o beiço: Mas tu é marrento, heim... Todos ali sabiam que o Filé tinha a sua razão, mas o negro tinha fama de encrenqueiro e ninguém queria passar a noite na delegacia. A maior parte deles concordou, sem saber se a conta estava certa, e o Filé teve que se conformar. O dinheiro que tinha dava para pagar a sua cota, mas faria diferença mais na frente, ainda queria andar para achar uma mulher que valesse à pena.

Esgotadas as escaramuças, todos meteram a mão nos seus bolsos sob o olhar satisfeito do negro. Em princípio ninguém percebeu, porém o Filé não estava nem ali, ou preferia não estar. Sua mente vasculhava desesperadamente a memória recente, em busca de uma pista. Por eliminação de todas as possibilidades restantes, a dedução parecia certa: Aquele viado da boate, bateu a minha carteira! Eu devia ter imaginado, lógico, por isso me deixaram escapar e nem vieram atrás de mim. E agora? Sem a grana da cota da despesa e sem santinha... Achou que tivera mais sorte antes, pois lá seria apenas um! Só de olhar para o negão, já dava vontade de sair correndo. Era o que queria fazer, mas com toda aquela gente entupindo o corredor do balcão... Lembrou-se do mictório, talvez lá houvesse um basculante por onde pudesse escapar. Foi até o fundo do bar, mas logo viu-se frustrado. Era apenas um cubículo. Além de não haver nele nenhuma passagem além da porta, sentiu-se mal ali. Era inseguro demais, muito menor que o quartinho da boate. Estreito como um curral de matadouro, era o lugar ideal para o negão demonstrar a sua imensa generosidade.

Não havia outra esperança, teria muito o que correr, se conseguisse chegar até a calçada. Como esperava, ao abrir a porta do mictório para sair, deu de cara com um olhar terrivelmente coletivo. Feita e refeita a soma do pagamento, faltava exatamente uma cota e só podia ser do cotista ausente. Eu já sei que vocês não vão querer acreditar, mas roubaram a minha carteira... – O Filé optou por ser sincero. O mais velho dos cotistas, tentando ajudar, sugeriu que ficasse para limpar pratos e copos. Porém o negro tinha uma outra alternativa: Não... Tenho aqui uma coisa pra ele deixar bem limpinha...

Prevendo o que estava para acontecer, uma senhora levantou-se de uma das mesas enfileiradas junto à parede e pediu que deixassem o pobre-coitado, e que ela pagaria a parte dele. Ninguém quis acreditar, muito menos o Filé. Ele olhou a negra velhinha de cima a baixo e pensou em recusar a ajuda, mas depois se lembrou de que não tinha alternativa, e ficou olhando, procurando entender o que estava acontecendo. Era uma mulher idosa e mal vestida, tinha ao lado um despencado carrinho de feira e nele amarradas, com barbantes e tiras de trapos, várias bugingangas sem valor. A negra cheirava mal e estava bebendo cachaça, mas em uma caneca feita de lata de salsicha. Ora, era uma mendiga. Como poderia ter dinheiro para pagar a sua cota? Acanhado, o Filé se aproximou para agradecer e foi então que reparou em algo embaraçoso. Pendurada em seu pescoço, ruço por falta de banho, havia uma medalha enzinabrada, onde ainda se podia ver a imagem de santo, o mesmo santo do calendário, que protegia a caixa registradora do bar.

A mulher resolveu acabar com todo aquele descrédito. Meteu a mão na sua sacola de perna de calça jeans, tirou uma nota de cinqüenta, entregou ao negro e ainda lhe disse que não precisava fazer troco, porque da próxima vez que viesse tomaria umas doses por conta. Passado o aperto, os demais foram tomando cada um o seu caminho, uns fazendo piada, e outros perguntas, cujas respostas explicassem aquilo. O Filé convenceu-se de que a mendiga era louca, coitada, e sentou na outra cadeira da mesa, só para não ir embora assim, sem demonstrar uma gratidão mais verdadeira. Para ter o que falar, ele perguntou a ela que santo era aquele, gravado na medalha. A velha disse que não sabia, mas era de muita estimação. O Filé torceu o beiço, em sinal de dúvida. Qual é o problema? Você nunca teve nada de estimação?... – Disse ela desconfiada...Problema nenhum, mas eu nunca tive não. Não gosto de bichos de estimação, nem de me sentir preso a nada. Aliás, já tenho a encrenca da minha mulher pra me prender... Porém a mendiga não achou a graça que ele esperava. Torceu, agora ela, os beiços largos e úmidos de cachaça, como sinal de desaprovação, e lhe disse que tratasse de não fazer mais tantas perguntas. E que voltasse para o seu caminho, com a proteção do santinho, qualquer que fosse o nome. Sem jeito, o Filé foi mesmo embora.

CAPÍTULO IV

A maré estava mais baixa do que o normal. O mar havia recuado vários metros. Diversas traineiras e canoas, de todos os tamanhos, ficaram tombadas no fundo de areia e lodo da praia, normalmente submerso, e que agora exibia uma insuspeita diversidade de coisas, umas naturais e outras bastante estranhas. Dentro de uma canoa enorme e antiga, das que eram talhadas de um único e imenso tronco de árvore, um grupo de mendigos, desinteressados do fundo do mar e dos latidos distantes e furiosos de um vira-latas, dormia profundamente, bem próximo da parede de pedras cimentadas que descia da calçada para a praia. Apesar da miséria, sentiam-se felizes e seguros, no lugar que escolheram para passar a noite, aproveitando a baixa-mar tão pronunciada. A canoa mais parecia um grande balaio-de-gatos, grandes e pequenos, sendo impossível saber-se onde começava e terminava a mesma pessoa. Salvo no caso dos casais que haviam feito sexo antes de dormir, porque estes ainda estavam cobertos pelos seus panos, que haviam usado como se isso diminuísse a intimidade generalizada.

Os seus sonhos nada rasos, entretanto, foram bruscamente interrompidos. Alguém viera correndo pela calçada, que ficava bem acima do nível da praia e, para escapar da perseguição do vira-latas zangado, bem perto dos seus calcanhares, havia saltado para a areia, sem ter tempo de medir onde cairia. Pois caiu estrondosamente, justo na proa da canoa onde estavam os mendigos. Com o susto, foi mendigo para todo lado. Uns ainda se lembraram de catar por instinto alguns pertences seus, enquanto outros, com dificuldade para suspender as próprias calças, não tiveram tempo nem mãos livres para isso. Algumas crianças de colo berravam, abandonadas que foram, mas ninguém ali sabia ainda o que estava acontecendo, tão pouco imaginava para onde estava indo.

Todo dolorido, o Filé se levantou para ver se o seu perseguidor também havia pulado da calçada para baixo, e viu que felizmente ficara no alto da parede. Dois dos mendigos se aproximaram dispostos a mostrar sua raiva, porém foram surpreendidos pela ira do intruso. Mas não contra eles. O Filé estava furioso porque só agora estava vendo que o tal cão, que ainda latia para ele do beiral da calçada, não era de meter medo nem a um gatinho faminto. Muito pequeno e magro, se não houvesse corrido poderia tê-lo pego pelo pescoço e arremessado longe. Em vez disso, quase quebrara o próprio pescoço, ou o de alguém inocente, naquela queda estúpida.

Compreendendo que não se tratava da polícia, nem de alguma das ameaças comuns à vida de rua, e vendo que o homem não conseguia se aprumar direito dentro da canoa, alguns mendigos mais piedosos foram lhe ajudar. Um deles, o mais velhinho, lhe ofereceu da sua própria cachaça, insistindo para que tomasse ao menos um gole, sob uma duvidosa alegação: É pra não inflamar. Constrangido pela boa fé do velhote, o Filé acabou tomando um gole. Depois outro e logo mais um. Acabaram achando que o intruso era apenas atabalhoado, ou azarado, mas que não era tão diferente assim, afinal, também gostava de cachaça. Tudo foi virando uma galhofada, na medida em que foram aparecendo outras garrafas.

O Filé acabou contando a sua estória, desde que saíra do escritório. Sobre a corrida e o salto desesperado, conseguiu uma gargalhada geral dos mendigos, contando que aquele vira-latas só podia ter pensado, que ele ia pegar o frango que estava num despacho na encruzilhada. Essas madames ficam trazendo comida pros cachorros de rua, o bicho, que não sabe o que é despacho, pensa que é santo e não quer dividir com ninguém... Tava só esperando a vela apagar... – Remendou o mais velho... Também, você nem pra pedir licença... – Outro fez graça... Eu? Que pedir licença? Eu só passei por perto porque me desequilibrei... Não chegava a ser uma estória surpreendente, cada um ali tinha a sua própria, no mais das vezes bem pior e mais prolongada. Ademais, se ele não tinha grana, de que poderia lhes servir? Era somente mais um e dos mais mentirosos. Onde já se viu, uma mendiga pagar a conta de alguém que sequer conhece? A cachaça acabou e os mendigos foram se acomodando novamente na canoa.

Já era madrugada quando o Filé resolveu retomar o seu caminho, por mais desafortunado que ele fosse. Uma idéia não lhe saía da cabeça, agora enfeitada por um galo doído: ainda faltava uma mulher. Estava decidido, era então uma questão de honra. Não voltaria para casa sem antes pegar uma mulher. Procurou em vão aquele maldito vira-latas, que já devia estar dormindo também, e com o caminho livre pôs-se novamente a andar a esmo. Em razão do esforço de continuar, suas escoriações incomodavam, a visão embaçava, transpirava por todos os poros e tinha a impressão de estar ficando febril. Mas pensou que só podia ser efeito de tanta cachaça.

Depois de algum tempo, tropeçando aqui e ali, vinha-lhe à mente o corpo pesadíssimo da sua mulher. Ele era esteticamente feio, mas estava lá à sua disposição, bastando entrar em uma condução e voltar para casa. Poderia então se esparramar sobre ele, servir-se do que quisesse e depois dormir ali mesmo, como se fosse um colchão macio. Ela não se importaria, nessas horas sempre fora muda e obediente. Alfredo sempre fora a sua única ambição de consumo. Agora ela não tinha mais nenhuma. Mas não... Não, não e não! O homem se aprumava e seguia adiante. Depois de passar por tantos sufocos, ter os seus documentos roubados junto com o dinheiro do mês... Escapar, por um segundo milagre na mesma noite, de apanhar e ser literalmente encurralado no mictório do bar. Por pouco não quebrou o pescoço e ainda foi acolhido, pelo grupo de miseráveis sobre cujos pescoços havia acabado de cair! Definitivamente, não. Ou encontrava uma mulher para se vingar do azar, ou não voltava para casa.

Mais à frente, o Filé estava atravessando um parque público, com grama e jardins, cujos postes de iluminação incandescente por entre arvoredos espalhavam sombras sobre os canteiros. Viu então adiante um vulto estranho, que fazia movimentos pequenos mas ritmados. Da distância em que estava e com os olhos embaçados não conseguia distinguir o que era. Mais próximo, achou que eram duas e não apenas uma pessoa. Tentando não fazer barulho chegou mais perto. Estava agora certo de que era um casal de namorados e quis ver o que estavam fazendo. Ora, o que um casal de namorados poderia estar fazendo, em uma posição incômoda, entre as sombras de um parque lá pelas tantas da madrugada? Devia ser bom de se fazer. Pelo menos, de se ver.

De modo a não ser percebido, deu a volta num dos canteiros para chegar em uma outra posição, de onde certamente poderia ser um expectador privilegiado. Porém, assim que chegou onde pretendia, ouviu latidos próximos. Caramba, uma mulher que late enquanto faz sexo! Isso era muito mais do que estava procurando. Mas por entre as plantas do canteiro, enfim conseguiu ver que se tratava apenas de mais um mendigo e, deitado ao seu lado, o seu cachorro de estimação. Não... Outro cachorro?... Com base em sua memória recente, estava em perigo. Droga, por que os cachorros gostam tanto de mendigos? Não tem nenhum despacho por perto e aquele cão está latindo pra mim... Filé não entendia mesmo nada de cachorros. Novamente ele correu e de novo foi perseguido. O animal só parou depois que ouviu o assobio do seu dono. E o Filé gastou em mais essa corrida as últimas energias de que dispunha.

CAPÍTULO V

Sentado em um banco de ripas de madeira, O Filé sentia-se esgotado, mas descansaria ali um pouco e depois prosseguiria. Quando as suas pálpebras começaram a pesar, para não adormecer ele respirou fundo e pôs-se a caminho de novo. Seguindo na sua obstinada peregrinação, ele encontrou o que fora, por pouco tempo, um outro despacho. Esse havia sido maior e mais variado, coisa de madame. Porém já não restava quase nada, aquele cão com certeza chegara antes. O Filé chegou perto para espiar. Por um instante achou que pudesse adivinhar o que o cão havia encontrado para o jantar. Não seria uma tarefa fácil, mas uma coisa era certa: ali havia uma galinha, pois haviam penas por todo lado. Uma coisa o intrigou. Por que motivo o cão havia deixado as vísceras onde devia estar a galinha inteira? Com certeza ele fizera um trato com o santo, do tipo “eu como só a galinha e deixo as tripas pro senhor”. Ora, será que ele achou que quando eu chegasse ia lamber o fundo do alguidar? – Perguntou a si mesmo. O homem se divertiu por algum tempo consigo próprio, mas logo o seu sarcasmo perdeu a graça e ele retomou os seus passos de filigranas, não estava mais interessado em despachos.

Ao passar pelo último canteiro do parque, Filé sentiu um aroma no ar que lhe despertou a fome. Lembrou-se então de que não havia comido quase nada, desde a hora do almoço. Então percebeu que do meio do canteiro subia uma fumaça tênue e ficou curioso por saber do que se tratava. Tendo ouvido que alguém se aproximava, de dentro do canteiro, que tinha forma circular, uma velha mendiga interrompeu os preparativos do seu jantar. Sentada na grama e protegida pela cerca-viva do canteiro, ela tinha entre as pernas quase todos os principais ingredientes para isso, retirados do despacho que haviam deixado no parque. Por entre os galhos, o Filé via apenas o seu vulto.

Desconfiada do intruso, que devia ser um mendigo covarde disposto a lhe tomar a refeição, ela pegou a galinha, virou de cabeça para baixo e, pelo buraco aberto por ela no ventre para retirar as vísceras que não comeria, ela foi despejando o que havia em volta. E assim foram para dentro o dendê, a farinha e a pimenta malagueta. Na pressa, ainda foram indevidamente para dentro do buraco alguns cigarros e muitos palitos de dente. Com mais pressa ainda retirou da sua sacola uma latinha de condimentos, ia destampá-la, mas achou que não haveria mais tempo. Pensou que, caso colocasse a galinha na água de cozimento, que já fervia, o pilantra logo a encontraria, então a negra empurrou a galinha para o lugar que lhe parecia mais seguro, onde ninguém nunca queria mexer: debaixo da saia, entre as suas pernas. Depois, imaginando que ainda não estivesse segura o bastante, por via das dúvidas, empurrou ainda mais para dentro das pernas, até senti-lo em segurança, junto da sua genitália.

Bem, não se tratava exatamente de um mendigo. Tão pouco o homem tinha a galinha por prioridade. Todavia, ela não o sabia. A mendiga não pode imaginar que ele tivesse uma única coisa em mente, que por isso ele seria capaz de qualquer coisa, e ainda que, vendo-o depois dele passar pelas plantas do canteiro, reconheceria nele o pobre coitado, cuja conta havia pago quando estavam no bar. Ué, você de novo?... – Ela logo perguntou com surpresa e simpatia. Achando que não havia motivo para toda aquela sua preocupação e que o perigo havia passado, ela começou a reclamar com ele, porque havia lhe dado um susto dos diabos, nem pudera temperar direito o seu jantar. Contudo o Filé, que não a reconhecia do bar, sequer a estava ouvindo.

Na verdade, ele estava diante de uma decisão muito difícil. Se perdesse aquela oportunidade, com certeza não encontraria outra mulher para saciar seu desejo imperativo. Aquela velha mendiga, esmulambada demais para ser despida, suja demais para ser pega e fedorenta demais para se chegar perto, era a sua única alternativa. Por uma mísera fração de segundo, ele julgou que os fartos depósitos de gordura da sua mulher eram preferíveis, porém todos os sofrimentos que juntos lotavam sua memória, faziam da velha magrela uma alternativa válida. Afinal, ela estava logo ali, tão disponível e com um inesquecível sorriso de três dentes na cara. Como ele se mantinha mudo, a mendiga já não sabia se a sua galinha estava de fato em segurança. E preferiu deixá-la onde estava, para não despertar atenção dele.

No que você tava remexendo quando eu cheguei? – Quis saber ele. Deduzindo pela pergunta que ele não sabia da sua galinha, ela arriscou uma mentira por garantia: O que? Eu? Ah... Era a minha coelhinha de estimação... O que o Filé pensava saber existir entre as pernas dela, não era o que ele chamaria de coelhinha de estimação, mas lhe pareceu que aquela expressão devia ser uma espécie de convite. Ou melhor, uma gentil concessão. Ora, naquelas alturas dos acontecimentos fosse uma coelhinha ou uma porquinha, que diferença poderia fazer o nome do bicho?

O homem tirou do bolso um pedaço de papel. Sem tirar os olhos dela, rasgou e enrolou fazendo dois tampões, que meteu nas narinas. Ah... – Ela arriscou de novo – To vendo que você também gosta de um pozinho, eu também, mas tem um tempão... Antes que a mulher pudesse terminar o que ia dizendo, o Filé atirou-se em cima dela como um doido. Com o impacto do corpo dele ela caiu para trás, e sentindo sua mão a lhe levantar os panos ela gritava: Não! Deixa a minha galinha aí!... Não! A minha galinha não!... Ela pensava que gritando alguém poderia vir lhe socorrer, contudo, nem o Filé e nem ninguém podia acreditar que existisse alguma galinha por ali. O homem ensandecido meteu uma perna sua entre as delas, depois a outra perna, abriu as coxas da velha e aplicou o seu golpe de misericórdia. Logo de início achou que era bem melhor do que pudera imaginar. Estava bom – pensava ele – doía um pouco e ardia muito, mas estava bom! Tanto que até se demorou. Já a velha não parecia estar gostando. Resmungava e fazia careta de nojo, dizia que parasse com aquela porcaria e prometia nunca mais pagar a sua conta no bar, com o dinheiro emprestado pelo santo.

Só então ele se deu à razão. A mendiga era a mesma do bar e, em vez de lhe ajudar, havia lhe repassado a sua dívida com o tal santo! O homem de um só pulo ficou de pé. Quer dizer que a senhora pagou a minha cota na despesa lá do bar, com o dinheiro que roubou da macumba?... Pera lá, mocinho. “Roubei” não, que isso é muito feio pra uma senhora da minha idade. Na verdade eu pedi emprestado... E agora eu é que devo ao santo?... Não senhor, não era santo não, agora você deve ao diabo, que era o dono do despacho... Eeeuuu?!... Você, sim. Quem mais poderia ser? Mas não se desespere, nem precisa pagar tudo de uma vez só não. Pague como eu pagaria, em suaves prestações. Ele não vai se importar. O que ele quer mesmo é a sua alma – disse ela com voz grossa, para aterrorizá-lo... E como eu faço pra pagar?... Quando você tiver a grana me procura, que eu te explico tudo bem direitinho...

O Filé refletiu por três segundos e depois protestou: Não senhora, você me enganou, mentiu pra mim... Eu não, mocinho. Fique sabendo que eu não sou mulher de mentiras. Você foi quem veio pulando em cima de mim como um cão esfomeado, e eu uma pobre e indefesa velhinha... Furioso, o Filé virou as costas para ir embora e a mendiga ficou reclamando com a galinha na mão, porque teria que lavá-la para refazer o tempero. Mas de repente ele se voltou e ela meteu de novo a galinha entre as pernas. Você mentiu pra mim sim, me disse que tinha uma coelhinha de estimação – ele se lembrou... Ah é, mas porque antes você também mentiu pra mim... Você ta louca. Eu? Quando?... Mentiu, quando me disse que nunca teve bicho de estimação... E é a verdade, nunca tive mesmo – o Filé reafirmou com convicção... Ah, não?... Não!... Então de quem é esse porco-espinho aí, todo colorido, saindo pela sua braguilha afora?

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