Mágoa

Foto de Marta Peres

Destino

Destino

Esqueceste das juras que fizemos,
Falas de carinho e eterno amor.
Hoje no silêncio choro o que tivemos,
só me resta o ódio e o rancor.

Fujo de ti, de ti me separo,
Meu coração é só mágoa e dor
Na vida não tenho mais amparo
Morreu a esperança aberta em flor.

A certeza triste se define!
Rasgo de vez retratos, rasgo o véu
Na ânsia do choro o peito me comprime.

Não culpo a sorte, nem o céu!
A vida tem coisas que não se redime
Nem tudo pode ter sabor de mel!

Marta Peres

Foto de Marta Peres

Entre Mim e Meu Sonho Há Um Rio

Entre mim e meu sonho há um rio

Quando abri a janela pela manhã
Senti leve brisa beijar minha face,
Pensei no meu sonho e vi que entre
Ele e eu há um rio suponho esperando
Para o banho matinal em suas águas,
Lavar meu corpo do pecado e das mágoas.

Rio que corre sem fim,
Desde a infância circulo por suas margens,
Da janela do paiol vejo o caminho das águas
Que descem no fundo da horta, serpenteando
Leito abaixo, levando quaresmas que caem.

Com os olhos sobre as águas penso no
Passado, viajo e medito sob o teto onde habito
E esse rio sem fim não quer levar minhas mágoas
Correm de mim com a velocidade que têm.

Saudades do tempo de outrora!
Meu silêncio fala, o pensamento voa,
O soluço preso na garganta, calado entoa canção
Que destoa, mágoa abrindo chaga que nunca fechou
E sangra cheia da dor da saudade e decepção.

O telefone não toca, ninguém me chama
E se chama é só para reclamar, não me reclama,
Não me ama nem nunca me amou, não tenho ninguém...
Passei por eles como um eco e hoje me perdi
Rumo ao desconhecido, nenhuma luz, nenhum ponto
Para referência, meu nome nem se lembram mais.

Sonho que sonho, rio entre mim e meu sonho
Não consigo passar suas margens, ir além
naquelas viagens de criança a procura de alguém
que dormiu, acordou e esqueceu que sonhou!

Marta Peres

Foto de Marta Peres

Morte

Morte

Olhos voltados para o teto e abertos
Os braços magros, brancos e nervosos,
Espasmos esporádicos em espaços compassados
Infinita dor da solidão de um deserto.

Perfil pálido, tímido e dolorido
Traços indefinidos e vagos
A luz aos poucos se acabando
Na névoa que nos olhos vão se formando.

Nos céus, branca luz mortuária,
Luz da dor e do martírio
Triste agonia da mágoa funerária
Sentindo seu próprio passamento.

Só lhe resta agora os vermes!
Da vida levará cruel tormento
Tristeza imensa se lhe atassalha
Dor cruel lhe vem no pensamento.

Aos poucos vão se cosendo a última mortalha,
Coveiro abre um fosso lutulento
No pélago profundo esquecimento,
Maldade! É o povo que enxovalha.

Atrocidade cometida, gatilho puxado,
Eternidade! Só resta caminhar por ela
A sociedade hipócrita recrimina
O que na vida, a dor já discrimina!

Marta Peres

Foto de Lou Poulit

SÃO JORGE E O DRAGÃO

CONTO: SÃO JORGE E O DRAGÃO
AUTOR: LOU POULIT

Sentados em bancos tipo meia-bunda, Hermes e Cuia haviam acabado de chegar ao balcão da birosca. Cuia era bebedor dos bons. Mulato quase negro, de fala mansa e bigodinho de chinês. Bom malandro, natural da favela, sobrevivente a tudo. Em vez do calção e dos chinelos-de-dedo, de terno e gravata daria um excelente relações públicas. Só bebia cachaça e tinha preferência: “Ô Portuga, dá meu marimbondo aí!” Já seu amigo Hermes era letrado. O Vela, como era chamado desde a adolescência, era megérrimo, branco como um defundo, e parecia meio lento em tudo. Havia se afastado dali por alguns anos e nesse tempo fez faculdade, arrumou emprego, casou, separou, casou de novo, separou de novo, casou mais uma vez... Continuava mal bebedor, pedindo a mesma marca de uísque: “Ah... Bota qualquer um aí, Portuga”.

O Cuia só observando. Em sua cabeça um silêncio era bom conselheiro: gozado, o tempo passa e as pessoas vão se modificando. Aquela que conhecemos desde dos tempos das pipas e peladas, agregam-se com outras que não conhecemos ainda, mas parecem tão importantes quanto as antigas, senão mais. E todas se dão muito bem umas com as outras, dentro do mesmo corpo. Era manhã de domingo, dia de decisão no campeonato local de futebol. A birosca na encosta da favela já estava quase lotada. Se a polícia chegasse de repente, com certeza ganharia o dia, porque já era quase impossível aos de dentro vigiar os que viessem de fora, e alguns ali eram desejados pelos homens da lei. O tumulto pacífico da birosca era como o Hermes. Com o passar dos anos alguns não arredam pé. Outros, desconhecidos, chegam, depois voltam e vão ficando. E outros tantos somem, por algum tempo ou definitivamente. Mas a birosca ainda era a birosca do Portuga e as alterações individuais não modificavam muito a mistura. Fora a fauna birosqueira, tudo mais parecia continuar nos mesmos lugares: as garrafas de bebidas mais caras, os salames e enlatados cobertos de poeira. No nicho de táboa a lâmpada devia estar iluminando o São Jorge que, a despeito da ausência da sua lança, não fora ainda comido pelo dragão, apesar de tantos anos de luta. O próprio Portuga sempre se dizia desconfiado de que aquele dragão enchia a cara durante a madrugada, depois que fechava as portas, e que só por isso não conseguira ainda comer o santinho.
 
O Hermes agora tinha uma identidade virtual, a julgar pelo palavreado que estava usando e que provocava a indignação dissimulada dos bebuns mais próximos: Sabe, Cuia, o Portuga devia deletar aquele mictório compactado... Como é que é? — Espantou-se o amigo. É verdade, mermão... Aquilo é um banco de vírus! O Portuga é meio lento mesmo. Ele quer que esses caras acertem uma latinha daquelas. Já viu bêbado bom de mira?... Não. Nunca vi não... Então, Cuia, pra começar você tem que se espremer pra passar na portinhola. Só nisso já vai um risco. Depois tem que segurar a bebida, o cigarro, a portinhola... A portinhola?... Claro, mermão, vai que alguém deixa pra última hora e entra lotado. É uma senhora portada!... Riram-se os dois e o Cuia completou: É o que chamo de um arranca-rabo! E o cara que não queria encostar em nada... Vai chegar em casa todo molhado – Hermes interrompeu - E a dona encrenca vai inserir o cara na casinha do quintal, vai passar a noite junto com o Totó!... Ô Hermes, por falar nisso, cadê a Laurinha?... Laurinha? Ô Cuia, que estória é essa de “por falar nisso”? Eu nunca dormi com o Totó não. Você precisa ler as atualizações do meu perfil... Ler as atualizações... – Repetiu o outro perplexo. E faz isso rapidinho, porque eu to saindo, Cuia... Você ta saindo. Já vai embora?... Que vou embora, cara? Quis dizer que to desistindo das mulheres dos outros... — E aproximou-se do ouvido do amigo — Estou apostando todas as fichas na Mentirinha... Que Mentirinha, Hermes?... Ô rapaz, aquela gata gorducha, que trabalha na “lan house”, vai dizer que nunca viu?... Sei, da loja de internet ali no fim da ladeira. Mas não era a Laurinha a razão da sua vida?... Laurinha nada. Se arrumou com o dono da firma, agora desfila de gerente... Ô meu irmão... — O Cuia mostrou-se penalizado — Que azar... Azar? Você não sabe da missa a metade. Depois dela já tive a Mariazinha, a Teresinha e a Socorrinho... É mesmo Hermes?... Tô te falando, Cuia, mulher dos outros agora pra mim é homem!... Nenhuma delas deu certo, né?... Não podia dar: A Mariazinha só queria saber de ganhar coisas caras... Ih, mermão, isso ia te deixar na miséria... Deixou mesmo. A Teresinha no início era uma santinha, o marido tinha sido atropelado, vivia numa cama, e ela passava o dia fazendo sexo pelo computador... Mas isso não resolve, Hermes... Não, a gente saía toda semana... Então, qual foi o problema?... Ela acabou viciada, Cuia. Perdeu a fibra... Como assim, não era a sua mulher?... Não!! Era mulher do computador!!... Ô Portuga, dá mais um aqui pro Hermes!

Cuia precisou pedir mais bebida para dissimular. Tinha muita gente em volta olhando, curiosa por saber quem era aquela tal mulher do computador. Sem se dar conta e parecendo soterrado de tanta culpa, Hermes foi se explicando: Mas a Laura, ô Cuia, ela não foi a única culpada, sabe? Porque quando comecei a desconfiar dei de ficar deprimido. Depois, você sabe. Eu já não dava mais cem por cento, depois nem oitenta, e foi diminuindo, diminuindo a transmissão dos dados. Entende?... Dos dados? Ah, sim, acho que entendo. Mas e a outra?... Quem, Cuia? Já te falei, depois foi a Mariazinha. Me deixou numa miséria de dar gosto. Ô acesso caro aquele, sô... Aí eu não podia mais fazer outras coisas das quais gostava e sentia falta, não tinha grana pra nada. Estourei o cartão de crédito. Ninguém olhava mais pra minha cara, mermão... Tentando entender melhor, o Cuia arriscou meio sem jeito: Ah, a transmissão voltou a cair, né?... Chegou a menos de um quilobite por segundo! Ô desespero o meu... Por que você não fez uns programas, pra variar?... Programa, não fiz nenhum, Cuia. Mas baixei tudo que pude baixar. Todo dia era dia de “down”. E nada de “up”... Nem um cachorrinho? — O Cuia perguntou brincando, para tentar levantar o astral do amigo... Nem um, era só cavalo-de-tróia!... Essa eu não conheço ainda, mermão... Nem queira, Cuia. Depois você tem que fazer uma faixina geral. É muito chato mesmo. E se perdesse o HD nunca mais vinha aqui beber com você. Em falar nisso, ô Portuga! Cadê o meu uisquinho?... Já vos dei, ó pá!... Tão dá outro!
Da posição em que estava, Cuia percebia o interesse crescente dos bebuns em volta na estória do Hermes, mas achou melhor não interromper. O amigo devia estar precisando desabafar. Depois, eles não poderiam mesmo entender aquele dialeto de informática. E o Vela continuava falando: Agora a Teresinha, Cuia, nas primeiras vezes aquilo chegava sem jeito, olhando pro chão... Mas dali a pouco a santinha virava o demônio com rabo e tudo. Caraca, mermão! – O Cuia completou – Você só no piloto-automático... É isso, Cuia, o navegador era dela. Ela que escolhia a página. E num tinha anúncio não!...
 
Ao ouvir tais palavras, um dos bebuns já bastante calibrado, amigo dos tempos das pipas, chegou-se ao ouvido do Cuia e perguntou: Ele tava vendo televisão?... O Cuia dissimulou: Ainda não sei, mermãozinho. Fica na tua aí, na moral. Deixa o cara acabar de falar, valeu?... O bebum voltou meio inconformado pro canto dele e o Hermes falando: Mas foi assim só nas primeiras vezes. Pôxa, Cuia, eu já tava apaixonado por ela quando, numa tarde, começou a balbuciar umas arrôbas diferentes... Que arrobas, Hermes?... Endereços, Cuia... Ah, dos outros amantes dela?... Que outros amantes? Amante era eu, o resto era virtual! — Hermes indignou-se, deu um murro na táboa do balcão e pediu mais uísque. Do seu canto, sentindo-se desprezado pelo Vela, o bebum disse com a voz lenta: Taí, que machão que ele é... E recebeu um olhar enviezado do Cuia.
 
O Vela nem se dava conta do que acontecia à sua volta, ia desfiando o seu rosário enquanto a audiência dos bebuns aumentava: Eu não queria bloquear nem excluir a Teresinha, mas a cada nova tentativa ficava pior. Aí conheci a Socorrinho, que também era Maria, Maria do Socorro... E qual era o problema dela, mermão?... Não era ela não, Cuia. O problema era o marido dela... Ué, por que?... Porque o cara tinha mais de dois metros de altura, era muito forte e ruim que só o cão... E ele sabia que era chifrudo?... Sabia, mas era apaixonado pela Socorrinho e já tinha mandado dois pra lixeira, cara!... Ih, canoa furada, Hermes... Então uma tarde ela me chamou na casa dela... E você foi, maluco?!... Fui, ela me disse que estava precisando de um desencanador... Ocê é doido... É foi doidice mesmo. Quando eu pensei que ia carregar o arquivo, a um megabyte por segundo... O cara te deu o flagrante... Não, tocaram a campanhinha... Ô mermão, ninguém toca a campanhia pra entrar na própria casa... Pois é, mas já derrubou a velocidade, né? Era o filho da vizinha. Ela despachou o moleque e a gente voltou pro matadouro...

O bebum desprezado era um bebum respeitado. Toda hora fazia uma careta, ou um gesto, e os demais bebuns, formando já uma meia-lua às costas do Hermes, trocavam impressões. Percebendo tudo, o Cuia tentou levantar a moral do amigo: Aí você fez o couro comer... O bebum balançou o dedo indicador e fez beiço, querendo dizer que não acreditava. O Hermes respondeu: Mais ou menos, Cuia... Os bebuns metidos a jurados dissimularam uma risada, quando o bebum desprezado saiu da birosca fazendo uma porção de gestos. Mas não demorou muito, alguns minutos depois lá estava ele novamente, pedindo licença para passar e voltar ao seu canto. Que mais ou menos é esse? – Perguntou o Cuia... Eu disse mais ou menos porque quando o programa estava quase carregado, ela me sussurrou que ouvira um barulho na cozinha. Quase que não deu tempo. De repente o cara entrou no banheiro, já tirando a roupa, e quando me viu perguntou o que eu estava fazendo ali... E você, mermão, por que não pulou a janela?... Que janela, Cuia? Primeiro porque não tinha uma por onde eu pudesse passar. Segundo porque o banheiro era tão pequeno e o cara tão grande, que eu tinha a impressão de que éramos duas sardinhas numa lata. Ou melhor, uma sardinha e um tubarão!... Que coisa, rapaz... Ele entrou tirando a roupa e eu tentando vestir a minha!... E aí?... Ai eu disse que já sabia qual era o problema... Como assim, Hermes?... É, mermão, foi o que ele também perguntou. Vou explicar: Quando corri pro banheiro, logo vesti a cueca. Aí ouvi o cara falando que havia chegado o caça-vírus. Então, em vez de por a roupa, eu desenrosquei o sifão da pia e abri a torneira. Só não deu tempo de abotoar as calças... E o cara caiu nessa? Mas que otário!... Bem isso eu não sei. Porque eu disse a ele que no dia seguinte voltava pra tirar o entupimento. Ele me pediu que saísse do banheiro porque queria olhar o serviço. Enquanto ele olhava eu fui saindo. Quando pus o pé na rua, mermão, desembestei que nem a mula-sem-cabeça! E ainda passei uma semana correndo. Vendo o cara atrás de tudo que era poste.
 
A turma de bebuns já não dissimulava mais as risadas e os julgamentos. E já não era composta apenas de bebuns, nem somente de homens. Haviam chegado mais torcedores e algumas prostitutas mas, devido a bebida já em conta alta e ao peso das lembranças, o Vela não se importava. Expunha-se ao ridículo, despertando a piedade de alguns. Cuia não sabia mais o que fazer. Pensava em como levar o amigo para casa, enquanto ele ainda pudesse andar com as próprias pernas. Mas de repente o Hermes se empolgava e recomeçava a falar, sem tramelas na lingua já melosa. Estava claro que ele não se submeteria a nenhum conselho: E tudo por causa daquela piranha, Cuia! A gente era feliz. Eu percebi muito antes e falei com ela. Disse que o Afrânio ia querer lotar o disco, secretária novinha, com tudo no lugar, se sentindo importante... É, o cara foi esperto... Ela é que foi uma vagabunda! Eu avisei antes, ela aceitou porque se entusiasmou com as gentilezas do Dr. Afrânio — Disse o Hermes com desdém... Mas calma, mermão, isso agora já é passado. Esquece essa estória e vai em frente. Você não quer pegar agora a Mentirinha? Então pega e esculacha, mermão. Vai te fazer esquecer as outras. Inclusive a Laurinha... Ah, a Laura não, Cuia. Eu não consigo esquecer o que ela me fez. Nunca, jamais vou perdoar aquela mulher. Se encontrar com ela na rua eu arrebento aquela piranha de porrada.
 
Sem sair do seu canto, o bebum desprezado balançava o dedo e fazia beiço. Os demais, já em franco debate, se dividiam. As prostitutas, em grupo, se defendiam. Alguns torcedores defendiam as prostitutas, para que tivessem o que fazer depois do jogo, afundar a mágoa em caso de derrota. O Portuga não tomava partido, bastava-lhe vender bebidas para todos. No fundo todos se divertiam, aproveitavam o fim-de-semana. Até o dragão se divertia com aquele São Jorge sem lança! Menos o Vela. Estava realmente consternado, não parava de imaginar formas alternativas de trucidar a Laura. E usava as opiniões dos bebuns para reorientar as suas tramas, curtindo a dramatização da sua desgraça, como se isso lhe causasse prazer. Numa dessas, ao dirigir-se ao grupo de prostitutas para ver sua reação, percebeu que uma delas saia de trás do grupo e atravessava em sua direção. Ele não queria falar com ela, era apenas uma puta, como dizia ser também a Laura. Tudo farinha do mesmo saco! Era assim que dizia a si mesmo. Quando o Hermes escutou aquela voz de mulher lhe dizendo um curtíssimo “Oi” pelas costas, imaginou que o mundo havia parado de repente. Um silêncio palpável preencheu o ambiente. O Vela tentava decidir o que fazer, sob o peso de muitos olhares. Quando se voltou para trás, viu que havia uma mulher muito bonita no centro de um pequeno espaço, obviamente aberto para ela. Apesar do congelamento generalizado, apenas o bebum desprezado balançava a cabeça, mas agora positivamente. O Hermes não conseguia articular uma só palavra. Dentro do seu íntimo encharcado de uísque da marca “qualquer um”, tudo era escuridão, uma multidão de vultos ia e vinha, sem que ele pudesse organizar o pensamento. Não teve coragem de dizê-lo, mas não podia pensar noutra, só podia ser a Laura. Queria olhar dentro dos seus olhos, pois conhecia-lhe o olhar, mas a bebida já não o permitia. E quando a mulher lhe estendeu docemente a mão, com um sorriso calmo e soberano no rosto, o Vela não conseguiu fazer resistência.. Atravessando um silêncio galhudo e o farfalhar dos julgamentos de cada um dos presentes, sumiram os dois entre os torcedores que, na rua, preparavam-se empolgados para tomar o caminho do estádio. Como se houvessem ali dois mundos paralelos, o casal e os torcedores não se confundiam, mal se notavam. Era de se pensar que não estivessem no mesmo tempo e no mesmo lugar. Uma mão imensa e irresistível parecia abrir aquele mar de gente, enquanto o Vela, como um bicho dócil levado pela coleira, sentia-se seguro a ponto de não se perguntar se ela viera a mando de São Jorge ou do Dragão.
 
Na birosca, foi o bebum desprezado que quebrou a perplexidade. Deu um tapa na lateral do balcão, fazendo um estrondo que deixou o Portuga furioso: Ô Portuga! Dá outro marimbondo aqui pro meu amigo Cuia, que ele está pagando o meu também... E virando-se para o mulato, que se mantinha pensativo, sussurrou: Como nos bons tempos, heim Cuia?.. Uma a uma as pessoas foram se reacomodando pela birosca. O bebum sentou-se no banco, que o Hermes deixara morninho, e filosofou com ar de sábio: Ah, o amor. Coisa mais linda é o amor... Encafifado, o Cuia não respondeu, mas quis saber: Olha, você até pode me achar com cara de panaca, mas eu não tenho idéia de quem era aquela mulher. Não a vejo há anos, mas acho que não era ela não... O bebum virou a sua cachaça toda de uma vez e depois ficou olhando para o chão, reflexivo, com um sorriso torpe nos lábios. Depois de um tempo, finalmente falou claramente: Não era ela mesmo, Cuia... Mas então, quem era ela?... Depois de fazer uma careta, como se rebuscasse o passado, explicou: Você não se lembra da Lalá, a menina que vendia bala na estação do trem... Não, não me lembro mesmo...

Eu ainda era um homem respeitado naquele tempo. Pois bem, eu sempre comprava umas balas pagando uns centavos a mais, mas a Lalá não pisou no meu laço. Anos depois meteu-se com aquele bandido, famoso por cortar as orelhas dos seus desafetos... O Pinga-Fogo... Isso, ele mesmo. Ele sustentava a ela e a outras molecas. A Lalá engravidou para se sentir mais segura, mas o cara apareceu cheio de buracos e pouco depois ela perdeu o bebê. Então andou na mão outros bandidos, vendida como mercadoria ou emprestada, para os mais valentes. E desapareceu de repente. Passou uns anos fazendo programas com gente endinheirada, gerentes de banco, diretores de empresa... Então, foi nesse tempo que ela conheceu o Vela... Não, Cuia. O tal do Afrânio começou a se sentir incomodado e, para mudar o cardápio, demitiu a Lalá. No desespero ela conheceu o Pinga-Fogo que, no início, deu guarita pra ela... Mas não deu pra reconhecer, mermão. Ta muito diferente... Por isso eu lhe disse que não era ela. Você acha que depois de passar por tudo o que ela passou, alguém pode continuar sendo a mesma pessoa de antes?... É, você tem razão... Tem três meses que ela reapareceu, ta morando num privé dividido com outra, no bairro aí de trás... Mas por que ela tomou aquela iniciativa? O Vela podia meter a mão na cara dela... Porque, como lhe disse amigo, coisa mais linda é o amor...
 
O Cuia custava a acreditar. Não vai me dizer que ela está apaixonada pelo Hermes?... Que apaixonada coisa nenhuma, Cuia... E como ela veio parar aqui na birosca?... Eu chamei, ora. Ela é puta, não é adivinha. Mas eu conheço ela muito bem. Você sabe que conheço as putas daqui. Não posso mais pagar pelos serviços delas, mas conheço bem várias delas e sou amigo delas... Que coisa de doido, quem vai pagar? Quando o Vela entender tudo não vai tirar um tostão do bolso... Nada de doido não, Cuia. Ela não veio receber dinheiro não... Como não?... O bebum parou, se ajeitou no banco e continuou: Cuia, meu velho Cuia, eu já vivi um pouco mais que você. E lhe digo com toda a convicção: As mulheres que vivem de programa não são todas iguais. Mas são seres humanos todas elas, têm sentimento. Eu não pedi, apenas perguntei se ela queria fazer isso. Ela confiou em mim e topou fazer... Mas o Hermes não ama essa mulher... Já deve estar amando, Cuia... Mas não é a Laurinha que ele ama... Que diferença faz, Cuia? Ele precisava amar, se regenerar, tirar o paredão de dentro dele. Você acha que o amor dele, que ele não podia exercer e não servia pra nada, é mais amor que o da Lalá, dado de graça, pela necessidade dele e por amizade a mim? E ademais ela não tem mais nada a perder, só tem a dar. Qual o pecado nesse caso?... Mas por causa dela o Vela podia ter perdido a vida, lá no banheiro do caça-vírus. E noutras vezes, porque ficar pegando as mulheres dos outros, se não for pecado com certeza é muito perigoso...
 
E será que o Vela vai segurar a peteca? Do jeito que saiu daqui, não sei não... Ora, Cuia, ela é uma mulher sofrida, experiente, com certeza vai dar o jeito dela... Mas ele não vai se casar com ela, né?... Casar? Acho que ela não ta pensando nisso, não. Não é esse o trato. Se você sair com uma puta e falar em casamento, nunca mais ela sai contigo, pra não apanhar do cafetão... Mas vai que a Laura pensa... Acho mais fácil que o doido do Vela queira isso... O Cuia pediu a conta ao Portuga, pagou a cachaça e pendurou a conta do uísque, reclamando do preço. Ó crioulo! Então meu estabelecimento virou agora a casa da sogra? Vais dependurar a conta do outro? — O Portuga fez-se de indignado... Ó Português, não virou agora não. E já saindo o mulato completou, para desespero do birosqueiro: Não virou porque sempre foi. Ou você pensa que eu esqueci de quando abriu aqui esse seu barraco? Eu fui dos primeiros a honrar sua birosca com a minha presença, seu ingrato. Nem água pra lavar os copos você ainda não tinha... Ora pois espere aí mesmo, que eu já mostro a sua honra... Para delírio da freguesia o Portuga sacudiu no ar uma garrafa vazia, porém o Cuia já se encontrava na calçada, a uma distância segura, fazendo gestos obcenos para irritar ainda mais o amigo birosqueiro. Vinde cá, ó crioulo! Vou mandar o meu São Jorge correr uma gira atrás de você!... Qual São Jorge? Esse aí cheio de poeira? Deixa de ser mão-de-porco, ó português, e dá uma lança nova pra ele. Ó que o dragão acaba comendo ele, heim...

Depois, já descendo a ladeira, com ar de satisfeito o Cuia disse ao seu amigo bebum: Bom, tomara que pelo menos você esteja certo e ela saiba acender velas. Senão, quando ele voltar aqui, vai dizer que de repente bateu um vento... Que nada, Cuia, você manja muito é de despacho, mas num entende nada de computadores. Ele vai dizer que justo quando o programa estava carregado, caiu a conexão!

Foto de Naja

MÁGOA

MÁGOAS

Mágoa , sentimento que fica
Guardado no coração
Nada falamos, não reclamamos
Mas desse sentimento, livrar-se
É a solução
Por motivos simples, quem sabe,
Machucamos, ferimos, sem nem perceber
E isso é o pior... se não entendem
que a nós também feriram, magoaram.
Significa que nada fomos, se é que algum
dia, algo significamos
Amizade talvez...mas quem pode ser amigo
De quem um dia se amou?
Isso tráz amargura, lembrança e tristeza
De um sentimento sem futuro
É sentimento nulo.
O melhor a se fazer
É lutar e esquecer
Afastar-se, deixar viver
E vivendo procurar se ver
O melhor do Ser Humano
E com a razão a reger
Fazer dessa dor, desse sofrer
Sentimentos do passado
Que se coloca de lado
Sem nada mais recordar
Esquecer e tornar viver
Para um novo ALVORECER!...

naja
Publicado no Recanto das Letras em 14/11/2007
Código do texto: T736844

Foto de Izaura N. Soares

Triste Agonia

Triste agonia...
Que vem como uma flecha certeira
Dentro do meu coração.
Tentando destruir a magia que brotara
Em meio à alegria de uma simples poesia
Que nascera de uma ilusão!

Mas essa agonia me fez procurar a vida.
Procuro viver plenamente rastreando meu
Próprio futuro.

Vou de encontro com a árvore da vida
Sentindo o frescor do vento batendo suavemente,
Sentindo-se forte e seguro.

Mas dessa triste sensação tirei proveito.
Aprendi a sobreviver.
Porque viver tão somente a vida sem senti-la
Acontecer, é dar margem à solidão seguida de dor,
Tristeza e mágoa, de não saber o que é viver.

Foto de Julieta Ferreira

PARA TI

Espreguiço-me ainda ensonada após uma noite,
perdida na solidão de um mundo alheio.

Sinto a falta da tua presença que nunca tive
Sinto a carência do teu contacto que nunca provei
Sinto a perda do que nunca me pertenceu
Sinto a mágoa de não te tocar
Sinto o pranto de não te beijar
Sinto a tristeza da tua distância
Sinto o desânimo do que não comecei.

Conheço-te!
Desses encontros num tempo e espaço desencontrados.

Tenho saudades!
Murmuro na voz sufocada pela dor da tua ausência.

Tenho saudades do amor não vivido
Tenho saudades da paixão não consumada
Tenho saudades do tempo que será
Tenho saudades do que nunca foi
Tenho saudades do desejo do teu corpo inatingível
Tenho saudades de mim abandonada no teu abraço
Tenho saudades de nós num tempo inventado pelos dois.

Imagino-te!
Traço os contornos do teu rosto no vazio dos meus enganos.

Sonho o instante do nosso encontro
Sonho os beijos que trocaremos
Sonho as carícias em que nos afogaremos
Sonho a entrega de nossos corpos ávidos
Sonho o abismo do prazer na dádiva ansiada
Sonho a realidade de uma ilusão que criámos
Sonho o que seremos num futuro apenas nosso

Espero-te!
És a realidade mais real da existência que vivo.
Só tu sabes quem és!
Só tu sabes que eu existo!

Foto de josedourondo

AMOR DISTANTE

Ao ver-me na solidão
e desolado com a tristeza,
percebi que tua ausência
se perdera na distância
bem longe do meu olhar.
Lavrava em mim a amargura
de não amar tua beleza,
turvaram os meus olhos
e a minha boca emudecida
contagiada pela incerteza
deixou a palavra adormecida
no limiar da minha razão.
Se o silêncio ateia a dor
do distante coração
que a mágoa dura e fria
arda na chama amarga do fel
e queime toda a minha solidão
e todo o meu negrume de agonia,
inundando minha vida
de outro amor e outra paixão.

Foto de jlp

Não sei ser sem ti.

Não sei ser sem ti.
Não consigo existir em ti.
Odeio-te
Na inquietação de mim,
Adoro-te
Na complexidade que atenuas.
Estou em ti
Quando me sinto
Na distancia de ti
Infinito que sou
Presente que transporto
Num tempo sempre longe
Que procuro destruir.
Medo, distancia, incompreensão
Nego ou assumo
Mágoa
Descodifica-me em ti.

Foto de jlp

Adeus

Entre as gotas de doçura
Dum sonho que já não vives
Uma lágrima se mistura
Com palavras que não dizes.

E nossos lábios se unem
Silenciando mil porquês
Pedaços soltos se fundem
No abraço pela última vez.

E nesse mesmo instante
Sinto na mágoa o vazio
Ser de mim próprio distante
Prado sem dono, baldio.

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