Impotência

Foto de Isa Castro

Folhear a memória

Na esperança de um novo clarear,
Desfolho as recordações que latejam,
Na minha memoria, no meu coração, no meu ser…
Revivo a coragem da tua própria impotência
Contra o fascínio do vento que te galopa velozmente.
O teu olhar desatento trilha novos caminhos.
Embalada em inseguranças e incertezas,
Carregas contigo as tuas lembranças
Que se vão lentamente dissipando no ar.
Olhando os teus olhos vejo um raio de sol que brilha.
Acalento no peito o grande tesouro que me doaste:
Um oceano de misericórdia que transborda
Em cada gota uma lágrima de saudade.

Foto de laurinda malta

amargura

Amargo coração, difícil respirar, aperto no peito, som nulo, apagado,
Sinto o mundo a desabar, sinto a vida a acabar e o sonho a murchar;
O Sol escureceu, arrefeceu, e escondeu-se solitário no meu coração esmagado,
O Luar esmoreceu, desencantou-se do seu desejo e retirou o seu véu lunar;

Onde estais astros celestiais? Aparecei! Que fazeis da vossa potência?
Não há calor, nem alegria, não há luar nem o namoro em amorosa euforia;
Está débil o caminhar, frágil o desejar, e o viver, brinca na impotência;
As raízes já amolecem, a firmeza doente a vacilar, no cantinho deste dia.

Onde estão as estrelitas que nos fazem brilhar o nosso olhar?
Onde está a alegria que nos faz rir e emergir no noso dia-a-
dia?
Onde está a beleza do Sol e da Lua e os seus raios que nos põem a dançar?
Meu Deus, tira-me este peso de cima, já sinto a alma cravada e a sangrar.

Foto de quimnogueira

Queria ser o teu sonho...(Quim Nogueira)



... Em frente ao espelho da cómoda do teu quarto, sentada num banquinho forrado a tecido de cortinado vermelho, penteavas os teus cabelos, num ritual que funciona mesmo sem dares por isso...

... a escova passava ora uma, ora duas vezes, de cima para baixo e alisava os teus cabelos sedosos, cor de mel e de marfim... brilhavam no espelho e te revias momento a momento numa expectativa de mudança, o que não acontecia pois não podias ficar mais bela do que aquilo que já eras... a beleza em ti não residia nem morava ... era!...

... a tua camisa de noite, acetinada bege, de rendas sobre o peito alvo de seios firmes e redondos, deixava transparecer a cor da tua pele suave e doce ao olhar sem ser preciso tocar...

... a tua cama de lençóis de prata, aguardava o teu corpo numa ânsia lasciva de quem à noite, só, te espera num desespero de intocabilidade ... e tu, demoravas...

... da cómoda tiraste um frasquinho de perfume e te ungiste com ele o que provocou um agradável respirar a todos os móveis que te rodeavam ... e a tua cama, ansiava pela tua presença... e o teu corpo demorava a conceder-lhe esse desejo...

... levantaste-te de fronte do espelho e te miraste novamente de corpo inteiro e gostaste da tua imagem alva e bela naquele quarto iluminado pela tua presença ... olhaste de soslaio e ... sorriste ...
... sentaste-te na beira da cama e esta suspirou docemente perante a antevisão de que em breve te possuiria. Tiraste os teus pézinhos leves de dentro dos chinelos de cetim vermelho, levantaste um pouco o lençol e te entregaste total e lentamente ao prazer de estender do teu corpo e da entrega final ao teu leito...

... a tua cama nem sequer se mexeu ... aquietou-se para não te perturbar, para que não te arrependesses daquilo que acabaras de fazer, com medo que te levantasses e ela te voltasse a perder...

... a tua cama inspirou baixinho a fragrância do cheiro da tua pele e deixou-se ficar aguardando o teu próximo movimento...

... deitada de bruços te deixaste finalmente ficar e tua cabeça leve pousada de mansinho na almofada, arfava lentamente o teu respirar de prazer por mais uma noite de descanso... e de sonhos...
... teus olhos semicerrados viram a lâmpada acesa e teu braço se estendeu ao interruptor da mesinha de cabeceira para a desligar. Os teus movimentos eram propositadamente lentos para que o tempo demorasse ainda mais do que aquele que já existia...

... e a tua cama sentia... na obscuridade do teu quarto, teus olhos semicerrados olharam o tecto e se fixaram na sua alva cor que permitia uma réstia de luz no meio da escuridão...
... olhaste a janela e pelas frinchas da persiana, divisaste a luz cinzenta duma lua crescente ... avizinhava-se uma noite de lua cheia e teu corpo descansou por um momento... a tua cama então suspirou e te abraçou fortemente...

... em suas mãos te acabavas de entregar... e o sono chegou.... adormeceste...

... não sei mais o que se passou... a noite decorreu, teu corpo diversas vezes se moveu...
... a tua cama não se movia, com receio de te acordar; abraçava-te sempre para não te deixar fugir ... sentia-te sua e possuía-te num sonho imenso de impossibilidade, de impotência, de raiva, por não te conseguir ter tendo-te ali...

... tua mente adormecida, movia-se e sabia-se que sonhavas...
... a tua cama te tinha ... ali, indefesa, sozinha...
... sonhavas e eu aqui, nada mais te pedia ... nada mais desejava...
... queria apenas ser o teu sonho..

Quim Nogueira

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