Espírito

Foto de TerrArMar

Porque Hoje é o dia do orientador educacional

Porque Hoje é o dia do orientador educacional

PAULO FREIRE

Mil novecentos vinte e um decorria,
Quando Paulo Freire Nasceu,
Em dezanove de Setembro seria,
E no recife, Pernambuco, aconteceu.

Aí, sua meninice viveu,
E, a ler, sua mãe o ensinou,
Um grande volte face se deu
Quando para Jaboatão se mudou.

Aqui conheceu a dor,
Quando seu pai faleceu,
Mas a solidariedade e amor
Também ele conheceu.

Conviveu, nas suas brincadeiras,
Com os meninos das favelas,
Conheceu a vida das lavadeiras
E também aprendeu com elas.

Podemos dizer que aquela dor,
Provocada pela paterna partida,
Fez de Paulo Freire o Educador
Que Aprendeu na escola da vida.

Foi aqui que se interessou
Pela problemática do Português.
Muitas dificuldades passou,
E, ainda novo, homem se fez.

O segundo ano do secundário,
Só aos dezassete anos o começou,
Foi um homem extraordinário,
Aluizio P. de Araújo que o apoiou.

Em quarenta e quatro casou
Com Elza, uma professora primária,
Cinco filhos é a prole que ficou
Dessa relação extraordinária.

Nesse meio tempo foi convidado,
Pelo colégio Oswaldo Cruz, a leccionar
Ali se vira, outrora, abrigado
E agora, ali podia servir a ensinar.

Director do sector da educação
E cultura do Sesi, órgão recém-criado,
É a sua futura ocupação,
Mas não é homem de ficar acomodado.

Nos anos cinquenta tem projecto novo,
É no campo da educação escolarizada,
Descobre-se o educador do povo,
Faceta, em si, cada vez mais vincada.

No recife, um instituto é criado,
Capibaribe, mas não está sozinho,
Tem muita gente a seu lado,
Que quer, prá educação, outro caminho.

Paulo Freire educou a educação,
Mas também a vida politica,
Mereceu a sua atenção e dedicação,
E em prol delas sua vida sacrifica.

Ao exílio se viu condenado,
Foi um homem incompreendido,
E escreveu, já no Chile exilado
A obra “Pedagogia do Oprimido”.

Esta “Pedagogia do oprimido”
Seria a sua obra maior
Mas Paulo Freire ficaria conhecido,
Por ser um grande educador.

Este exílio lhe deu alento novo
Para explanar um projecto pioneiro,
Mas preferia dar ao seu povo
O que ensinava ao mundo inteiro.

Trabalhou com afinco e confiança,
“Cultura popular, educação popular”
E também, “Pedagogia da esperança”
Outros livros que viria a publicar.

Livros, escreveu muitos mais,
Fez poesias de cariz educativo,
Colaborou com pedagogos mundiais,
O seu método mantém-se activo.

Foi homenageado por onde viveu,
América Latina, Estados Unidos,
E outros onde desenvolveu
Projectos ainda hoje reconhecidos.

Varias escolas o adoptaram,
A Europa rendeu-se ao seu valor,
As ex-colónias portuguesas despertaram
O seu espírito de educador.

Dois de Maio de Noventa e sete,
A morte o apanha à traição,
Um enfarte do miocárdio o acomete.
Morria um nome grande da educação.

O Brasil chora a sua morte,
Mas não esquece o seu contributo,
O mundo enaltece esta alma nobre,
Que fez da educação o seu culto.

Com Ivan Illich se cruzou,
E António Sérgio conheceu,
Com mais nomes trabalhou,
A todos ensinou e com todos aprendeu.

A dizer, muito mais havia,
Mas para não ficar complexo,
As fontes e a bibliografia,
Juntámos em páginas em anexo.

Terminamos a nossa reflexão
Com uma questão sempre nova
“De que servirá a educação
Se não for, permanentemente, colocada à prova?”

Foto de YUSTAV

CRIME DE SONHAR

Vídeo-Poético:"Crime de Sonhar" by Gustavo Adonias;

CRIME DE SONHAR

"Alma
Sentinela eterna
Dos caminhos sem luar
Sempre vagando
Sem descanso
Protegendo um forte abandonado
Castelo de pedras da ilusão
Permeando o corpo
Prisão de carne
Resgatar a alma
Recuperar a chama
Abrir a cela
Libertar o espírito
Mantido trancado
Totalmente isolado
Como perigoso criminoso
Pelo crime insano de sonhar..."

(Gustavo Adonias)

Foto de Lou Poulit

TROVÃO E O SABIÁ SERENO

CONTO: TROVÃO E O SABIÁ SERENO
AUTOR: LOU POULIT

Sentada sob o alpendre da mansão colonial, sua fortaleza de toda a vida, Sinhá havia se perdido em seus pensamentos. O dia havia se despedido há pouco, com a apoteose fugaz de um céu prestante de cores e texturas, que de tudo o que pode tentou fazer para merecer a atenção da moça. Nem a sinfonia da passarada fez efeito. Tudo em vão, restaram as estrelas que nem sequer se aventuraram. A passarada se calou para dar a vez aos grilos, sapos e outros barulhentos notívagos. Sinhá revirava mecanicamente os fartos rendados da saia à sua volta, pois em espírito não estava de fato ali.
Então, passos arrastados vindos de dentro precipitaram-na do etéreo em que vagava, de volta ao corpinho magoado pela posição pouco cômoda. De tão surpresa e assustada, não teve coragem de se virar. E esperou apenas, assim como seu coraçãozinho, que esperava dentro do peito prestes a lhe saltar pela boca. Aos poucos uma luz tênue, mas capaz de expulsar soberanamente a escuridão, se aproximou. A moça temeu que se aproximasse ainda mais e explodiu em gritos nervosos: Saia já daqui! O que quer de mim, demônio? Eu não lhe chamei aqui!
A pouca distância estava parado um caboclo mulato de aspecto impressionante. Pele muito morena e os olhos claríssimos de uma onça enterrados no rosto embrutecido, como pequenas gemas raras no emboço úmido da terra, adubada pelos séculos. O velho Sereno segurava a candeia, tentando compreender, tão próxima, a moça que à distância vira crescer, como flor única naquelas glebas. Durante algum tempo Sinhá não conseguiu balbuciar mais uma palavra. Tentava decifrar como aquela figura estranha havia invadido seu silêncio, que significado poderia haver nele e se seria perigoso para as coisas ricas que guardava no segredo das suas lembranças. Porém, achando em seguida que o silêncio era ainda mais  insuportável, a moça voltou à carga: Quem lhe deu o direito de estar aqui?... Ele tentou explicar: Vim só alumiá o negrume da noite pra vosmicê, Sinhazinha... Carecia de se assustá não... Não tenho medo de nada... — Ela empinou orgulhosamente a própria fragilidade. Como poderia temer um empregado dentro da casa do senhor meu pai? Ademais, estava aqui com meus pensamentos...
O homem olhava com segurança os olhos escorridos de lágrimas da moça, cheios de brilhos amarelados pela chama da candeia. Sentia pena dela, mas sabia pelas décadas de convívio, que não se devia manifestar piedade para com os senhores. Sereno sabe que está triste, Sinhá. Ma num pode fazê nada não... — Disse ele abaixando os olhos. Mas como pode saber disso? Não lhe dou esse direito. De onde você saiu?... Ainda com os olhos baixos, ele respondeu: Sempre estive aqui, Sinhazinha. Vim pra essas terras do senhor seu pai na barriga da minha mãe, que se foi embora amarrada naquele pé-de-jurema-branca, bem ali na direção onde a lua vai nascer não demora nada. Eu era desse tamanhinho quando ela descansou, cabia no cesto onde os cavalos comiam o mio que ela dava com gosto. Naquele tempo o capataz era um homenzinho muito do ruim... Ela só queria alimentar a sua cria...
A moça ficou perplexa. Mas se refez da letargia porque lembrou-se do seu alazão, tornando a gritar: Não me fale do meu alazão. Eu amava o Trovão como se fosse uma pessoa! Ninguém montava nele além de mim! E acabaram de trazê-lo num arrasto de pau-de-mangue... Ele estava morto! Eu vou matar quem fez isso com ele... E a chorar convulsivamente ela recostou-se no portal, até sentar-se de novo no degrau do alpendre. Sereno continuou calado, imóvel, com os olhos cravados nas lajes do chão. Como se sua alma cansada procurasse uma brecha para um imenso arrependimento.
Tentando descobrir em seu próprio silêncio o que poderia fazer naquela situação triste e constrangedora, o velho caboclo foi lentamente até a arandela pendurar a candeia. Não sabia o que fazer a mais. Durante quase vinte anos quisera ajudá-la em muitas situações de perigo, mas sempre chegava alguém antes. Sereno trabalhara sempre na plantação, por vezes tratando dos cavalos doentes e por outras como mateiro. Amava a menina, antecipava os riscos que ela corria, mas haviam outros mais próximos dela. Agora o mesmo sentimento de proteção lhe parecia palpável de tão denso. E ironicamente, embora estivessem ali apenas os dois, simplesmente não sabia o que fazer.
Passados alguns poucos e imensos minutos, a moça quebrou o silêncio, mais calma, porém sem perder a altivez da voz: Como se chama?... Sereno, Sinhazinha — Disse ele. E porque está aqui, nunca lhe vi dentro de casa?... O velho empurrou a aba do chapéu para trás e coçou a calva rala da carapinha branca, como sempre fazia quando se sentia inseguro. Demorou um pouquinho mas respondeu: Eu vim de pés lá de trás da serra dos pastos... O senhor seu pai mandou que me alimentasse e ficasse por aqui até amanhecer. Ela insistiu: Mas por que veio de pés? Ah, Sinhazinha, parei no meio da mata para ouvir o sabiá-da-mata, tava cantando bem em cima de mim. Desde menino adoro os sabiás, num gaio da mangueira, por cima da minha palhoça tem um que fez ninho agora. Quando passo o café da tarde ele ta arrebentando os peitos, de tanto chamá uma fêmea pro seu ninho novinho e arrumadinho. Mas me distraí, meu cavalo assustou-se com a onça e saiu desembestado, nem sei pra onde. Mas vou lá buscar, pro seu pai meu senhor num ficá num prejuízo maió. Não é um bicho caro, é até meio capenga. Mas é um bom companheiro, num sabe?... Vendo a perplexidade dela, ele perguntou: Que foi Sinhá, com essa boca aberta, quem nem peixe morto?... A moça sussurrou: Onça? Que onça é essa, Sereno?
O velho respirou profundamente. Não haveria mais de esconder. Ela que soubesse a verdade e que fizesse o que achasse justo. Disse a ela com segurança: A mesma que pegou o Trovão... Aquele sangue todo foi porque quando cheguei ela já tinha garrado no pescoço dele... — Disse o caboclo, limpando instintivamente as mãos grosseiras nas calças. A moça mostrou-se inconformada: E você não fez nada para ajudar o coitado? Não tinha uma arma, Sereno? Sinhazinha, ele caiu por cima da bicha, esperneava como um porco endemoninhado... Endemoninhado é você, miserável! Ele era o alazão mais valente que conheci. Só que havia uma onça mordendo o seu pescoço. E um homem medroso e inútil assistindo a sua morte desesperada! Que queria que o Trovão fizesse?... Sereno, se calou constrangido e ela quis saber mais: E depois, Sereno?... Sinhazinha, num é nada fácil chegar perto de dois bichos grandes e raivosos... E eu só tinha mesmo o meu facão de mato e não queria ferir ainda mais o Trovão... Sim, mas o que você fez?... — Ela estava implacável. Eu nada, Sinhazinha, a onça é que resolveu desaparecer. Onça é um bicho covarde. Só pega pelas costas, sangra e espera morrer. Mas se sentindo insegura, ela larga e fica de longe só espiando. Esperando a hora de comer sossegada. E o outro, que também é bicho, sabe que vai morrer e que ela vai vir lhe rasgar as tripas. É só uma questão de tempo. O mundo dos bichos é assim mesmo, Sinhá. Ninguém muda não. Vosmicê ta triste e eu também. Mas o Trovão ta não... Ah, não... Ta não. Só ta esperando os primeiros lampejos do dia, pra correr por essas terras sem fim, pelos campos e pelas matas fechadas, num tem mais nada que lhe impeça... Vai conhecer todos os lugares onde nunca tinha ido, vai beber água do rio grande e vai saltar nas ondas da praia. Enquanto isso nós vai ficar aqui chorando de tristeza, porque num pensa que ele ta livre como nunca foi. É que como nós só sente o sentimento da gente, só pensa com a cabeça da gente, então acha que o Trovão ta sentindo e pensando a mesma coisa que a gente, Sinhazinha... Não tenha raiva não... Que ele não pode aparecer pra vosmicê e lhe contá como que é lá, pronde ele foi. Ele vai ficar triste por causa da sua tristeza, Sinhá...
A moça relutava, porém se esforçava para aceitar aquela sabedoria estranha que quase desdenhava os seus mais puros sentimentos. Embora não tivesse coragem de dizê-lo, até que gostava muito de imaginar seu querido Trovão suando da correria que tanto amava, brilhando ao sol e ao luar. Ele amava o vazio dos espaços, os obstáculos que vencia, amava o vento revirando as suas crinas, enchendo-lhe os pulmões no peito enorme e musculoso, e depois expirava com força fazendo seu próprio vento, era quase um deus da natureza. Ah, como ele gostava disso... — Pensou consigo. Alagada da própria ternura, disse então ao velho: Ele lutou até o último instante não foi, Sereno?
Ele era valente demais, eu o conhecia desde que era um potrinho muito abusado, sinhá... Já mais calma, finalmente ela tornou-se amigável: Sou lhe muito grata, quero que fique, se alimente bem e descanse bastante. E depois vá buscar o pangaré, antes que essa onça o coma, já que não comeu o Trovão, pois que os homens foram buscá-lo antes disso... Sereno sentia-se mais à vontade agora, já sentado também, mas no degrau de baixo como lhe convinha. E completou: Vou Sinhazinha, antes de clariá vou atrás dele. E ai dela que se meta, pois vou levar um trabuco... Faça isso por mim, Sereno... — Ela pediu ainda com raiva.
Não posso prometer, Sinhazinha... Não Sereno, não se arrisque... E se ela lhe pegar pelo pescoço, como fez com o Trovão?... Vosmicê num fique triste não, Sinhá... Também sou meio bicho, já fiz muita coisa nesse mundo de meu Deus... Já matei oito onças, seu pai meu senhor pode lhe dizer... Uma delas ia morder era o pescoço dele... É que de uns anos pra cá elas estavam sumidas, que os cachorros farejam a catinga delas de longe... Gato tem raiva de cachorro e vice-versa, num sabe?
Eu prometo, Sereno. Vou contar para os meus netinhos essa estória. E vou me lembrar de dizer que você foi um herói, que não pode salvar o Trovão, mas veio de pés buscar homens, para que ele tivesse um enterro digno. Meus netinhos vão aprender a odiar todas as onças, porque essa matou o Trovão... Mas eis que tais palavras indignaram o velho filho-do-mato, e ele quis ser exato: Não, Sinhazinha. Isso não é certo, não é verdade não... Como, Sereno? Se ela não matou o meu alazão, então quem foi?... Fui eu mesmo, Sinhazinha... A moça de um pinote ficou de pé, com o dedo em riste, e novamente enfurecida lhe disse: Seu traidor! Vá embora, suma daqui! Nunca mais quero ver sua cara! Não vou lhe perdoar jamais! Vá logo. Antes que eu grite por alguém para lhe surrar no pé-de-jurema, desgraçado! Naufragados novamente em profunda tristeza, ambos se foram. Ela se foi para chorar na cama e ele no mato. Mas nenhum dos dois conseguiu dormir.
A moça rolou na cama, sobre o lençol úmido das suas lágrimas, até que lhe viessem chamar para o almoço no dia seguinte. À tarde, na hora da refeição também não quis sair do quarto, deixando a todos apavorados. Seu pai começou a preocupar-se, vendo que as mucamas não paravam de cochichar pelos cantos. Resolveu-se a sacudi-la. Entrou no quarto como um furacão para intimidá-la e foi querendo saber o porque daquele drama. Sabia o porque, também sentia muito pelo alazão, sabia o valor que tinha, mas não queria perder também a filha. Sinhá estava desolada e não apenas pelo seu Trovão. As horas lentas da madrugada lhe convenceram de que havia sido injusta com o Sereno. Estava agora claro que quisera apenas poupar o animal de mais sofrimento. Não podia carregá-lo nas costas e com certeza não quis que o alazão assistisse a desgraçada da onça comer-lhe as carnes ainda vivas. Ela estava soterrada de remorso e com muito jeito fez o velho concordar em mandar buscá-lo quando voltasse do mato. Assim também concordou em levantar-se.
Alguns dias depois estava novamente sentada no alpendre, mas dessa vez assistiu a obra da natureza, que se comprazia em dispor da sua atenção. O dia terminou. Escureceu por completo. Ela se lembrou da noite em que se assustou com Sereno. Dessa vez queria imensamente que ele lhe trouxesse a candeia. Havia preparado algumas palavras para lhe pedir que perdoasse a grosseria. Ninguém lhe dissera uma palavra durante esses dias, tinha a impressão cada vez mais densa de que não lhe queriam falar a respeito. Uma luz veio de dentro, mas pelo andar sem botas não poderia ser Sereno. Era uma mucama, que foi dispensada. Sinhá só queria a luz do velho caboclo, como naquela noite. Agora queria gostar dele, da sua sabedoria e da sua paz. A lua começou a aflorar, derramando seu prateado pelas colinas, que abraçavam em segurança a mansão. De repente, algo se mexeu nas folhas do pé-de-jurema-branca, que pareciam lhe acenar variando o reflexo do luar.
Então, para sua imensa surpresa ouviu com nitidez o canto mavioso de um sabiá. Mas como? Sabiá cantando há essa hora? Não pode ser, já é noite... Não queria aceitar o que seu próprio silêncio lhe dizia, lutava contra com todas as suas forças. Então ouviu de novo, logo ouviu outra vez e de novo tornou a ouvir. As defesas que havia erguido em si própria foram ruindo a cada canto, como se fossem rojões de poderosos canhões. Até que não pode mais sustentar a própria razão. O sabiá só podia estar feliz. Tão feliz que nem se importava com a noite, não queria esperar o amanhecer! Se quisesse vê-lo sempre feliz, devia afastar a tristeza. Libertá-lo do próprio peito para que fosse completamente livre, para que cantasse onde quisesse e quando quisesse. E ainda voar sobre as matas e as ondas do mar. Seu canto não era triste como o de outros, mas sim vigoroso e doce como o de uma flauta da natureza.
A mucama voltou com um semblante pávido, porque viera lhe dar uma notícia. Mas quedou-se quando à luz da candeia viu que o de sua Sinhazinha sorria para a lua, já em seu esplendor. A mucama lhe disse: Sinhazinha, o seu pai mandou meu irmão e meu primo buscar o Sereno. Mas eles não querem falar, estão com medo. Medo de que? Diga logo... Não fica brava comigo não Sinhazinha... Fala de uma vez, mulher... É que a onça pegou o Sereno também, Sinhazinha...
Completamente perplexa, a mucama ouviu a Sinhá lhe dizer com doçura: Não fique assim tão triste. Há essa hora ele deve estar bem assobiando por aí... Por onde, Sinhazinha?... Pela natureza, pelo céu, pelo rio grande, ou se lavando nas ondas do mar... A pobre mucama não conseguia atinar com aquelas palavras surpreendentes e Sinhá completou: Anda, pode deixar a candeia na arandela e vá pra dentro. Se precisar eu lhe chamo, agora vá. Quando mais tarde seu pai veio lhe buscar para dentro, aliviado pelas falas da mucama, encontrou-a bem disposta, quase feliz para aquelas circunstâncias. Sinhá aproveitara o tempo para fazer uma prece emocionada, repleta de gratidão e amizade, pela alma do velho Sereno. Durante toda vida estivera bem ali e nem o havia notado. Mas havia sido de grande valia justo no momento que mais precisou. Se estava feliz a ponto de assobiar no galho do pé-de-jurema àquelas horas, então deviam estar todos felizes: O Sereno, sua pobre mãe e também o Trovão. Não, não queria mais pensar em tristezas.
Foi quando seu orgulhoso pai, sentindo necessidade de participar daquele momento lhe disse: Deixe estar, querida... Aquela maldita onça não irá longe... Eu me encarregarei disso pessoalmente.
 

Foto de Lou Poulit

O LENÇO LILÁS

CONTO: O LENÇO LILÁS
AUTOR: LOU POULIT

INTRÓITO CAPITULAR

“Seu olhar intenso e turvo vasculhava o empoeirado depósito. Era um amontoado imenso e lúgubre de lembranças. Sua memória também clareava aos poucos. Sabia agora que em algum lugar, de propósito, escondera um segredo... E agora? Em breve, muito em breve, talvez não fizesse mais diferença. Nenhuma esperança, nenhuma crença faria sentido se a crise voltasse, desta vez em definitivo. Na morte todas as coisas perdem o sentido. O sentido de morrer se basta. Talvez em breve... Muito em breve...
 
Uma multidão de recordações ia e vinha, vultos tangiam seu corpo ao passar, roçavam seus braços, os bicos dos seios. Mas só queriam distrair sua atenção, para que o tempo passasse mais rápido. Implacáveis recordações. Não era possível escapar, não havia para onde correr, a não ser para outras lembranças. Elas eram completas, dominavam o sensorial. Eram visíveis, tinham perfume e sabor, alarido de conversas, canções e choros de criança, a umidade era um abraço frio e abusado. Podia sentir suas entranhas, ao sabor do assédio de qualquer pequeno objeto que, mesmo quebrado, entretanto, não era inútil para despertar sensações. Sua intimidade tão guardada, era agora devassada. Podia sentir o esgarço desesperador de um parto e, no desvario subseqüente, a levitada paz abraçada dos seus líquidos vaginais, sem direção e sem tamanho, no fundo de um abismo paradoxal de prazer e medo. Uma ironia do destino, mas tão dissimuladamente viril e sedutora como lembrança. Por que interrompê-la? Antes, quando era jovem e belíssima, não o quisera o suficiente para romper todas as barreiras, e agora que nenhuma barreira fazia sentido, tudo parecia irremediavelmente perdido.
 
Mas desgraçadamente um corpo jazia. Dentro de uma ciranda de velas chorosas repousava, fora do alcance das mãos, a sua esperança de ser feliz. Dele vindo, perto pousou um passarinho, uma espécie de amigo antigo dela, mas de poucas falas. Lindo, de penas lilases, de olhos vivazes, sem peso, frágil. Quanto tempo passou desde a última vez que o vi... Daria tudo, para reconhecer de quem era o corpo. Via que estava em sossego, mas parecia guardar uma aflição contida. Seus medos lhe eram familiares. A massa dos minutos também assolava seus olhares. Vagos olhares diminutos, ensimesmados como os dela própria. Deus de misericórdia! De quem é esse corpo?!
 
Ouviu passos corridos do lado de fora, quebrando o silêncio quase tangível. Do nada, surge um cão malhado de pardos, escuro e grande, o mesmo de sempre. Late e rosna, enruga o focinho e mostra os dentes para a parede, onde não havia porta. A visão do animal feroz e tão próximo a assusta, rouba a voz. Mas um sentimento de segurança aflora, pois que rosna para fora. Mesmo assim, preferia que houvesse uma janela aberta... Esse pensamento, entretanto, faz o cão voltar-se subitamente. Agora late e rosna de frente! Na imobilidade do pensamento, até o tempo não mais se escoa. O medo, enfim se assenhora, se inconha... E empeçonha a alma. O medo é a humilhação da fé. A morte da mente antes forte. Ah, meu Deus, eu não queria sentir medo... Que vontade de ceder à sedução da morte. Deixar que se me esvaia o gozo fúnebre, ébrio de si próprio nesse inverno. A possuir-me, o alívio eterno... Onde está o cão?
 
Um movimento sutil, percebido no canto dos olhos. Um livro amarelado e grosso sobre um criado-mudo, ao lado da luminária à óleo, deixado aberto em duas partes quase iguais. Uma e outra folha, de vez em quando passam de um lado para o outro, espalmadas e lentas como isentas mãos de uma última expiração relembrada, de alma arrebatada por uma brisa fugida do mar. Uma corrente de ar... Então há uma entrada e uma saída! Então há vida! Mas onde? Onde? Meus Deus, tenha piedade de mim... Onde, se está tudo fechado?... Ponde Tua mão sobre mim... Não quero mais essa busca, nem segredo nenhum. Quero uma janela, de luz brusca, rasgando-me os panos que por tantos anos, me vestiram de perda e saudade. Mas não quero que seja meu aquele corpo esquálido, sem um sonho, e tão pálido.
 
A multidão de vultos foi ressurgindo aos poucos, em pequenos grupos, dos amontoados de objetos, vagares tantos e tão meros. Porém agora eram silenciosos, severos. Não diziam uma só palavra e seus semblantes mostravam-se diversos, entre a complacência e a indignação. Uns algo amigáveis e voluntariosos, porém outros pareciam fazer uma cobrança com impaciência. Foram se encaminhando na direção do criado-mudo, até completar novamente o espaço, mas deixando um corredor livre, que começava aos seus pés e terminava no livro aberto sobre o móvel antigo. Os vultos se encaixavam como um jogo de quebra-cabeça que dispensasse um jogador. Havia uma luz tênue, que não vinha da luminária. E suas páginas, em movimentos irregulares e calmos, continuavam mudando de lado, como se quisessem romper o limiar de um segredo. O cão também reapareceu, por entre os vultos, e postou-se sentado ao lado do móvel. Uma visão soberana, o livro parecia ser o centro do universo. Um dos vultos puxou o lençol empoeirado que cobria outro móvel, por trás do criado-mudo. Era uma penteadeira em estilo rococó, provida de um espelho vertical alto. Como um murro na mente, veio a lembrança da arma. Uma teia de rachaduras no espelho, uma cadeia, o esforço inumano para se libertar de lembranças agônicas demais para poder raciocinar. Cansaço, esgotamento. Em breve a aranha há de chegar e inocular a morte... E o seu gozo eterno.
 
A imagem refletida no aço do espelho, como outro quebra-cabeças, este da sua própria imagem, revelava o amor e o bem amado. O amor-próprio estilhaçado e uma partida para o sempre. Nunca mais serão os mesmos... Uma mulher de meia idade, com os cabelos agrisalhados e a camisola de seda em desalinho, não escondia a maior das perdas. Com a própria juventude já havia pago parte do resgate, entretanto, permanecia refém de si mesma. Aquele era agora o seu corpo. Teimosamente vivo, depois de resistir a tantas coisas, inclusive a uma tentativa de suicídio que ficara para sempre marcada no espelho. Sua alma era um sacrário de incontáveis recordações. Os seus olhares tangidos por lágrimas temiam à distância o inevitável, o reencontro e o abraço. O passo claudicante na direção do espelho, o limiar da verdade, enfim, no exíguo espaço a perdida identidade. O livro atraía como um magneto, mas o corpo, insurrecto, resistia ainda. Os olhares de todos eram quase mãos vivas. Então uma lufada súbita de brisa mais forte virou várias páginas, deixando a descoberto um papel dobrado em quatro, na sugestiva fenda das folhas que assim pareciam para sempre seduzidas, submetidas e permissivas. Era uma carta, com certeza.
 
Então, aos poucos todos os vultos se viraram e saíram, como se lhe oferecessem privacidade. Menos o cão. Seus olhos eram fixos e negros, escondidos no focinho escuro. Mas não causavam propriamente temor. Antes ofereciam proteção. Assim, a mulher respirou profundamente, já não havia tanto peso no ar do ambiente, e deu o primeiro passo na direção do livro. Sentiu-se à vontade e, lentamente percorreu o caminho. Tudo começou a clarear em sua mente, cada vez mais liberta. Sim, era realmente uma carta. Agora lembrava-se dela. Estivera ali por muitos anos, posta por ela mesma. Pegou-a perplexa e carinhosamente. O lacre de cera, já rompido, era o do Poeta. Ainda restava uma impressão do perfume, em algum lugar entre o papel e a sua memória. Era o mesmo que usava naquela época. A carta estivera uma noite inteira entre seu seio e a roupa, bem em cima do coração. Demorou-se para abri-la, a sensação de um limiar se renovava a cada respiração. Estranha sensação. Estelinha sentia-se entre o sonho e a realidade, no meio de um caminho milenar, como sugeria a carta: o seu lacre fora rompido por ela própria, mas o seu conteúdo era um mistério. Era na verdade um limiar agônico. Para a vida, ou para a morte?...”

CAPÍTULO I 

Os primeiros lampejos da manhã já ameaçavam o azul profundo do céu. Sob o véu da bruma, um pequeno coche, ricamente decorado, puxado por um único alazão andaluz, saiu da estrada estreita e entrou no corredor lateral de uma mansão abandonada há muitos anos. Aquele lugar era tido como maldito, mas para Estelinha isso era apenas um mito sem fundamento. Viera ali sempre durante toda a infância, nunca vira nada que preocupasse. Muito ao contrário, gostava do lugar, sentia-se bem. Nos jardins internos passara muitas horas lendo livros de fábulas, escrevendo cartas para príncipes imaginários, enroscando as tranças fartas, sempre acompanhada da sua negrinha de companhia, a quem tratava carinhosamente por Branca. Essa sim, ficava tremendo por qualquer ruído estranho. Mas sua senhorinha, sempre com a cabeça nos seus devaneios e recados escondidos entre os pequenos seios, sequer se dava conta.
 
Os jardins estavam abandonados desde que a mansão ficou vazia. Porém, estranhamente, era muito bonito. Guardava dos olhares vindos da estrada uma multidão de flores silvestres, viçoso e colorido, como se um anjo-jardineiro invisível cuidasse dele zelosamente todo santo dia. Porém a negrinha via coisas estranhas. Interrogando-a, a senhorinha deduzia se tratar de fadas e gnomos que, não obstante seu esforço enorme, não conseguia ver com seus próprios olhos. Sempre sumiam antes disso. Nem as ninfas que a negrinha via no lago da fonte, essas também lhes escapavam sempre. A fonte. A lembrança daquela água completamente translúcida e doce havia lhe surgido na mente quando estava na estrada. Despertou-lhe uma imensa vontade de ver as estrelas refletidas no espelho do lago, assim que começasse a escurecer.
 
Parada em pé, junto do beiral adornado de anjos e cupidos, em mármore esculpidos, a Senhorinha era agora a prenda mais desejada de toda a região. A noite já assentava minúsculas gotas, sobre as flores do pequeno chapéu e sobre o veludo cor de vinho das ombreiras da capa, que cobria um belíssimo vestido em tons lilases. Sua mente levitada, vagava entre as imagens do cristal do lago. Nem sentia mais o corpo, mesmo enquanto caminhava entre tantas lembranças. Reviu então uma cena inesquecível. Estava ali naquele mesmo lugar há alguns anos antes, que lhe pareciam muitos anos, com o coraçãozinho assolado por uma grande tristeza. Embora fosse ainda muito jovem, andava perdidamente apaixonada por um nobre visitante estrangeiro, e acabara de descobrir que era casado em seu país. Seu mundo interior, puro e ingênuo, estava desabando aos poucos. Tinha vontade de se atirar no lago. E para se suicidar de verdade, como era raso demais para isso, teria que tampar a boca e o nariz, e ficar assim até que o silêncio se tornasse definitivo. Enquanto pensava assim, veio pousar na bandeja de mármore mais alta da fonte, um pequeno pássaro. Era delicado e lindo, de penas também lilases que balançavam enquanto fazia a sua dança ritual, prestes a se banhar na água fria.
 
De tal forma a senhorinha sentia-se tomada por aquela lembrança deliciosa, como se banhasse a própria alma no corpinho frágil e úmido do passarinho, que sentiu-se arrebatada violentamente, pelas garras contundentes de um grande pássaro noturno. Interrompendo o denso silêncio, ouvira dois estrondos quase ao mesmo tempo. Sentiu medo, muito medo, só poderiam ter vindo de duas garruchas. E não poderiam estar longe. Talvez logo adiante, nos antigos vinhedos da propriedade. Um duelo! Só poderia ser isso! Odiava duelos. Longe de seduzir-lhe a emoção, como acontecia com as jovens amigas suas, causava-lhe repulsa a idéia de dois homens arriscando tão estupidamente suas vidas jovens e sadias, quase sempre por questões que poderiam ser facilmente resolvidas, com algumas palavras cheias de dignidade e bom senso.
 
Ouvindo ruídos nas folhagens próximas, alguns minutos depois, rezou para que houvessem sido produzidos pelo cão. A Branca gemia de medo dele nos tempos da sua meninice. Era um animal arredio, tido como fera pelas pessoas, que o chamavam Lúcifer e às vezes tentavam alvejá-lo. Mas nunca conseguiam, já que sempre estava pelas redondezas. Esgueirava-se e observava, mas não se aproximava delas. Agora Estelinha não podia ter certeza de ser ele. Haviam transcorridos vários anos, talvez já estivesse velho demais ou quem sabe haja sido finalmente morto à bala, ou ainda caído numa das armadilhas que lhe preparavam. Qualquer rapaz do lugar se sentiria pleno de júbilo e orgulho, se pudesse lhe desferir um golpe de misericórdia, desde que estivesse realmente indefeso, preso na armadilha.

Mas a perspectiva do cão ter provocado o farfalhar era menos assustadora. Outros sons eram mais, esses vindos da estrada. Dois cavalos passavam trotando. A senhorinha não sabia se viriam à fonte e forçou o portão de carvalho e ferros que dava para o hall dos fundos da mansão. Era pesadíssimo e se rangesse alto talvez a descobrissem facilmente, mas se permanecesse ali certamente seria encontrada. Em desespero lembrou-se de que seu coche seria visto. Empurrou então, com toda a força que o medo lhe assegurava, diversas das muitas janelas da lateral oposta, até que uma delas cedeu. Como se ainda fosse a menina lépida e travessa de antes, entrou por ela, caindo ruidosamente sobre as coisas amontoadas do lado de dentro. Agora estava sentada no chão do salão apenumbrado. Abraçava as pernas sob os panos fartos das roupas. Sentia muita dor na altura dos rins, tanta que tinha dificuldade para respirar. A posição era dolorosa, mas por nada no mundo faria nem mesmo o menor ruído naquele momento.
 
Passaram-se alguns minutos, uma eternidade naquelas circunstâncias. Já se sentia melhor da dor e respirava mais livremente, quando resolveu que não queria ficar ali para sempre. A luz da manhã despontava lá fora, bela e suave, mas pouca diferença provocava na penumbra, porque não haviam janelas que não fossem guarnecidas por grossas e cerradas cortinas. Ia se levantando devagar, mas subitamente preferiu voltar a sentar-se. Ouvira ruídos de botas em algum lugar. Percebeu que uma das botas era arrastada e a outra calcava com força as lajes do chão. Então só podia estar vindo pela frente, as pedras da entrada da mansão se estendiam por um corredor curto e largo, provido de arandelas já há muito apagadas, que dava no salão onde ela estava. Pensou em pular para fora pela mesma janela, única que pudera abrir. Mas temeu despertar a atenção. Em uma busca mental agônica, tentava encontrar uma alternativa. Era com certeza um homem, grande e pesado, e arfava. Arfava profundamente e rosnava como um animal ferido.
 
Toda encolhida, ela chorava. Mas lutava consigo e com a própria respiração. Ele acabaria ouvindo seus soluços, mesmo contidos. O piso do salão era de tábuas corridas, e pelo pisar, agora oco, da maldita bota, ele já estava no recinto. Próximo, cada vez mais próximo. Perto demais para que ela tentasse alguma coisa. Finalmente ela se lembrou de Deus. Começou então a lhe implorar misericórdia, com a cabeça nos joelhos, como se tivesse idade para ter cometido muitos e terríveis pecados. Perguntava-se qual a razão de sentir-se tão condenada. De repente, viu as pernas de um vulto pela fresta formada entre uma cômoda e uma penteadeira de espaldar alto.
 
Ele estava de costas, curvado, a julgar pela flexão dos joelhos. Num rasgo de coragem, pensou que talvez não tivesse outra chance. Precisava aplicar um golpe forte e preciso, para que ele não tivesse possibilidade de reagir. Se falhasse no golpe, estaria perdida. Ele seria tomado de fúria e vingança, lhe espancaria com violência, e a arrastaria pelos cabelos. Sem piedade, com certeza abusaria do seu porte e força para violentá-la. E ela teria a alma mutilada. Carregaria essa desonra pelo resto da vida. Não seria mais cortejada pelos rapazes. Nem seu pai, antes tão orgulhoso e depois tendo a alma ferida de morte, poderia lhe arrumar algum pretendente ditoso. O desespero criava uma torrente imaginosa de maus pensamentos, com a velocidade de um raio. Precisava interromper aqueles pensamentos tenazes e agir logo, antes que fosse tarde demais.
 
Deu com os olhos turvos numa jarra. Enxugou as lágrimas para ver direito. Não era muito grande, mas era pesada, moldada em bronze maciço haveria de lhe servir. Inspirou todo ar que pode e levantou-se bem devagar. Na ponta das botinas caminhou dando a volta nos móveis. Acumulou toda a raiva que pode para sufocar o medo de errar. Ele estava trôpego, tentando encontrar a penteadeira para se apoiar. Meu Deus... Tem uma garrucha na outra mão! Era tarde para recuar, se ele se virasse poderia atirar. Levantou a jarra até atrás da própria cabeça e bateu com toda a sua força na base do crânio dele. O homem caiu um pouco de lado, sem emitir um ai sequer. Do jeito que caiu ficou. Escapando da palma entreaberta a garrucha escura e longa, típica arma para tiros precisos, usada em duelos.
 
Por um momento a senhorinha sentiu sair de si um peso imenso. Enfim, podia respirar aliviada. Sorriu da própria vitória, que parecia impossível. E agradeceu a Deus pela proteção. Olhou para o corpo à uma distância que julgou segura, no entanto ele nem respirava. E agora, meu Deus? Estava morto! Tremelicando de medo quis tocá-lo para ter certeza. Mas e se ele estivesse fingindo? Tangeu apenas o tecido da casaca, faltou coragem para mais. Sentiu náuseas e sentou-se em um criado-mudo que estava próximo, derrubando a luminária. Após apenas um breve instante de relaxamento, de novo a tensão. Não agüentaria mover um corpo daqueles. Tinha que sair dali o mais rapidamente possível sem deixar pistas, e sem que alguém a visse. Não queria matá-lo, mas quem acreditaria nisso?

CAPÍTULO II

 Arrumando nervosamente o desalinho das próprias roupas, lembrou-se da carta guardada em seu seio. Fora-lhe trazida assim que chegara ao sarau, pelo pajem de seu apaixonado poeta predileto, porém naquele momento não teve privacidade para abri-la. O poeta chamava-se Dhimas, era um nobre, belo e jovem homem, por quem Estelinha escondia um desejo tão louco quanto condenável: seu pai, Senhor Inácio, o Marquês de Mata Funda, nome do lugar, a prometera em casamento antes a outro nobre cavalheiro, bem mais velho e tirânico senhor de lavras de ouro. Esse nada lhe inspirava, apesar da riqueza farta. Poucas vezes permitira que o senhor Gabriel, o Visconde de Ouro Fino, lhe pusesse os olhos carnívoros, esquivava-se disso de todas as formas possíveis. Como se não bastasse, tinha contra ele a condenação de uma grosseria imperdoável, fruto da natural e exacerbada arrogância com que ele sempre tratava a todos. Fora assim...

No sarau da lua cheia anterior, o poeta havia surpreendido delicadamente a senhorinha, que tentava controlar a respiração depois de sucessivos rodopios, sentada num dos bancos do jardim, sob um caramanchão de três-marias sortidas. Apesar do rosto forte e anguloso, másculo, seu olhar era meigo como um abraço e seu sorriso algo tímido. A senhorinha admirava, sem lhe falar jamais, a erudição e, muito particularmente, as suas mãos. Muito bom observador que era, o poeta percebia o olhar dissimulado mas constante da moça, buscando o repouso das suas mãos, porém também nada falava a ela. Ele sabia serem elas bonitas, belas mãos de poeta, grandes porém delicadas. O rosado das palmas indicava sensibilidade, sentimentalismo, e uma pequena calosidade na falanginha do dedo médio denotava o gosto pela pena.
 
E foi pela pena que ele marcou aquela noite para sempre. Em uma declaração tímida, disse à ela que nem todos os rosados do caramanchão juntos, lhe tocavam mais o coração do que a beleza dela. E de repente, pediu que ela lhe desse aquele lenço lilás de recordação. A senhorinha segurava o lenço junto ao cabo do leque, no entanto, surpreendida por aquele pedido súbito e receosa do que poderia advir, preferiu se desculpar. Temeu deixar escapar que sua admiração era mais que amizade. Conhecia o orgulho de seu pai e a índole de seu prometido. No fundo quis proteger o poeta e a si própria.
 
O poeta, penitente como sua poesia, não se permitiu que o abatimento pela recusa dela transparecesse. Ao contrário, em uma nova investida, tirou do colete um papel e lhe entregou, com um sorriso sem palavra. Ela sentiu a dúvida de abri-lo, uma frieza percorreu sua pele sobre a coluna até a nuca, mas acabou cedendo ao olhar suplicante do poeta. No papel havia escrito um soneto:
 
 
O LENÇO LILÁS

Há tempos não tenho mais direito às manhãs...
As rosas prostram-se às minhas preces terçãs
E os pássaros emudecem ao me ver
Mas minh'alma, enlouquecida, inda quer viver!

Durmo tarde, esgotado, em minha escrivaninha
Nenhuma poesia dessedenta a dor
De pensar-te, senhora, sob outro senhor...
Que venha à minh'alma a morte que se avizinha!

Somente tua lembrança indelével faz
Com que eu possa sentir um fugaz refrigério;
Apenas teu sorriso me devolve a paz.

Mas mesmo sob eterno castigo tenaz
O amor resistiria em exílio e mistério
Guardasse comigo esse teu lenço lilás.
 
 
Novamente surpreendida, Estelinha não encontrava uma palavra que pudesse dizer. Sentia o sangue a lhe acalorar as faces e o coração descompassado a lhe escalar a garganta. Para dissimular andou até a frente do jardim, parando encostada na base de uma pequena escultura, que tentava imitar a famosa Vênus de Milo. Desejava desesperadamente entregar-se àquele homem maravilhoso, porém o risco de vê-lo sob as patas do orgulho e da vingança, era-lhe por demais assustador. Ao sentir chegar-lhe aos olhos a primeira lágrima incontida, derrubou o olhar pelo chão, dobrou e devolveu a ele o papel, disse-lhe que não poderia aceitá-lo porque, como já sabia, estava prometida a outro. Rogou que não a torturasse daquela maneira e que lhe desse, um dia, o seu perdão. Mas percebendo que Dhimas não se conformaria e sentindo lhe escassearem as forças, para não se lançar ao seu abraço forte, a senhorinha despediu-se constrangida e voltou apressada para o sarau.
 
Retornando também ao sarau, depois de lutar muito consigo para desfazer a tristeza profunda, pela reação da sua amada senhorinha, o poeta foi ainda mais infeliz, pois reencontrou a moça em um momento de dificuldade. A poucos metros de distância ela parecia muito envergonhada com o assédio do seu prometido senhor. A senhorinha dirigiu-se à mesa do ponche, para dissimular o desconforto, e o homem foi atrás, seguido de três outros homens, cujas amizades eram bem pagas. Muitos dos presentes ouviram quando Gabriel, fechando-lhe a passagem de fuga, exigiu em voz alta que lhe desse o lenço. Envergonhada, instintivamente a moça trouxe-o à altura do colo. Impetuoso e deselegante, o homem enorme arrancou de um só puxão o lenço da mão da moça. Sequer se dispôs a apanhar o leque que caiu no chão e, para desagrado geral, enquanto cheirava profundamente o lenço, olhava para ela com o seu olhar mais leviano, como se estivessem ali em um bordel. Vexada por demais, a senhorinha forçou a passagem e saiu dali a largos passos, rumando de volta pare casa, enquanto o homem se comprazia com seus amigos, e estes imitavam a sua gargalhada.
 
O poeta, estarrecido e indignado, não resistiu à cena e foi ao homem, para lhe dizer que seu comportamento não era digno de um recinto nobre e familiar como aquele. Como resposta recebeu um empurrão e foi ao chão estrondosa e desarvoradamente. Vendo-se sob os olhares dos presentes, levantou-se com a ajuda do pajem e, com as suas luvas, tocou o rosto do homem, num arroubo de dignidade que, aos olhos piedosos dos demais, mais pareceu um honroso e inútil prenúncio de suicídio. O silêncio tomou conta do ambiente. Todos sabiam o que aconteceria, em decorrência do que se passara ali. Mas aquele homem imponente, no centro de um semi-círculo, sorria feliz, porque tinha agora o pretexto de que precisava para eliminar o concorrente em potencial. Ninguém duvidaria disso.
 
...
 
Terminando de se alinhar para não chamar a atenção das pessoas quando saísse da mansão, a moça voltou à carta, tremulava entre seus dedos delicados, e partiu o lacre de cera rosada. Já a desdobrava para passar uma vista no seu conteúdo quando, no plano de fundo, por trás da sua mão que segurava a carta, uma outra mão lhe despertou a atenção. A arma, escapando da mão do defunto... Tinha o cabo rosado, entre os dedos do homem. Sentindo-se curiosa, foi pegá-la do chão. Entretanto, vendo-a de perto, sua alma lhe pareceu esvair-se pelos pés, como se procurasse o inferno. Aquela visão súbita aterrorizou a senhorinha. Seu coração recusava-se a aceitar a dor que dele se apossava. Sua mente procurava, desesperadamente, hipóteses alternativas nada viáveis, para não ter que reconhecer a indizível desgraça que despencara sobre sua cabeça, como uma avalanche. Um novo Vesúvio cobria tudo ao redor de uma cinza tóxica e tornava o ar de sua alma irrespirável. Era o seu lenço lilás. Precisava pegá-lo, desenrolar do cabo da arma e sair dali imediatamente.
 
Numa fração mínima de segundo, cenas sucessivas, fora da linha do tempo, ocuparam a sua mente. Soubera pelas amigas do que ocorrera no sarau entre o poeta e seu prometido senhor, porém, como nada mais fora comentado, havia crido que poderia dissuadir seu amado de participar do duelo, numa conversa em particular durante o sarau. Se necessário abriria seu coração devassadamente, revelaria todo o seu amor e sua admiração. Agora estava tudo claro diante daquele corpo inerte, apesar da penumbra reinante no salão. Um homem como o poeta não poderia ser dado à armas. Desafiara o outro por amor, apesar da imensa desvantagem, para restaurar a honra de sua amada senhorinha e tomar-lhe de volta o lenço lilás!
 
Deus!!... Depositei sempre em Tua glória e sabedoria toda a minha confiança! E enquanto meu coração Te adorava, pela mão Tu o encaminhavas docemente para esse abismo?... Então foi isso. Ele conseguiu a façanha de derrotar o adversário mais experiente e certeiro, por amor a mim superou-se. Ainda ferido, veio entregar-me o símbolo da minha honra, tão bravamente reconquistada, e eu o matei!! Covardemente matei meu amor, pelas costas, sem lhe dar uma chance sequer... Não mereço mais viver, Senhor. Mate-me, por misericórdia!
 
Andando sob convulso choro alguns passos sem direção nenhuma, deu-se com o reflexo de si própria no espelho da penteadeira. Olhou a arma de novo. Ela parecia tão pesada, mal cheirosa e rude, se comparada ao lenço delicado, duas naturezas tão opostas estranhamente abraçadas. Sim, por mais que o quisesse não havia dúvida, era mesmo o seu lenço lilás. Depois de tirá-lo a arma tornou-se ainda mais grosseira aos seus olhos turvos. Porém, recostada em suas mãos, também lhe pareceu terrivelmente sedutora. Era de cano duplo, dois cães em cima e dois gatilhos em baixo. O Senhor, invocado por seu desespero, lhe mostrava agora o que deveria ser a única solução para tão imenso tormento. Tentando conter os soluços, puxou para trás o segundo cão, encaixou o dedinho pálido no gatilho correspondente e levou os canos à boca. Sentiu o gosto ruim de óleo lubrificante e resíduos de pólvora, e a sensação inusitada do ferro frio sobre a sua língua. Viu mais uma vez sua imagem decrépita, odiável, refletida no espelho. Queria disparar, porém um medo enorme se apossou de sua alma fragilizada. Sentiu-se dividida, como se de fato fosse duas almas inconhas naquele momento, dois frutos nascidos no mesmo talo, prestes a despencar para sempre. Teria a eternidade para se arrepender por atirar... Ou poderia não atirar e arrepender-se por isso do mesmo jeito... Pareceu-lhe que não fazia tanta diferença a questão moral implícita na escolha. Apertou as pálpebras com toda força, pois sentia muito medo... Afinal, puxou o gatilho.
 
Mas ouviu somente o ruído seco e metálico do cão da arma, que já havia sido descarregada. Perplexa e assustada, teve receio de tentar de novo. Devia sentir-se feliz, mas não era assim. Por causa daquela maldita arma, tudo continuava como antes. Lá estava o defunto do nobre poeta amante, esfriando e endurecendo enquanto ela, sua assassina, escapava da morte merecida, inexplicavelmente. Com imensa raiva atirou a arma contra o próprio reflexo no espelho, que batendo no chão disparou a segunda carga em uma direção qualquer. Ela então caiu de joelhos, chorando desesperadamente, procurando em vão um ferimento, e sem saber o que fazer de si própria. Ao peso da sua dor deitou-se sobre o assoalho, imaginando-o leito definitivo do seu corpo jovem e belo.
 
Sem noção de quanto tempo permaneceu deitada ali, encolhida como um feto sobre as tábuas de pinho nobre, deu-se conta de que acabariam sentindo a sua falta e viriam procurá-la na mansão. Havia estado imersa numa espécie de dormência mental, que não levara a conclusão nenhuma. Se fosse encontrada com o defunto, ninguém acreditaria que quisera apenas se defender, não escaparia à condenação por assassinato. A imaginação das conseqüências cresciam em sua alma, a cada segundo mais aterrorizada. Tinha que sair o mais rapidamente possível, mas antes precisava se livrar de tudo que pudesse servir de pista à investigação. Sua mente fixou-se no bilhete. O pajem com certeza diria a todos que lhe entregou aquele bilhete no sarau. Olhou para os móveis, haviam muitas gavetas. Mas todas elas seriam vasculhadas. Poderia simplesmente rasgá-lo. Mas se fizesse isso destruiria o último resquício de vida, das belíssimas mãos do seu amado e infeliz poeta. Sim, devia se tratar de um soneto, mas não tinha tempo nem paz de espírito para ler versos poéticos naquele momento. Com certeza o faria noutra ocasião.
 
O criado-mudo. Era o móvel mais simples de todos, mas as suas gavetinhas seriam também abertas. No vão do criado-mudo havia uma velha e suja brochura, a julgar pela capa, com o título indecifrável, não despertaria o interesse de ninguém. Tão pouco se poderia imaginar que matassem um homem daqueles com um velho livro. Com cuidado para não desprender as teias e a poeira, pôs o bilhete entre as páginas e o colocou sobre o criado. Repôs a luminária próxima ao livro, exatamente sobre a marca deixada pela ausência de poeira, onde estava antes de derrubá-la no chão.

Olhando para certificar-se de que estava bem daquele jeito, imaginou que alguém poderia tirar a brochura do lugar e que certamente a colocaria misturada a outros livros. Sendo assim, por garantia, convinha memorizar também as primeiras páginas para identificá-lo depois. Abriu a capa e logo percebeu tratar-se de um diário. Fora escrito por uma mulher. Ou melhor, por uma jovem. Uma jovem apaixonada. Pela caligrafia e pela correção da narrativa pertencera a uma mulher culta, talvez como ela própria. Também escrevia poemas, de versos alexandrinos. Que ironia, a primeira poesia era linda, e mostrava um eu lírico muito feliz. De tal modo sentiu-se envolvida que teve vontade de levar o livro. Estava propensa a isso, mas foi arrebatada de volta a sua terrível realidade. Para seu desespero, ouviu ruídos novamente e não podiam ter sido produzidos pelo defunto. Meu Deus, procuram a ele ou a mim? Sem resposta, disse a si mesma que haveria de voltar depois, pois queria o bilhete de recordação. Já havia perdido muito tempo. Saiu apressada, pela mesma janela que lhe servira de entrada, deixando a brochura sobre o criado-mudo.

Foi-se tão assustada, que não se lembrou do lenço. O finíssimo perfume que exalava era incompatível com o odor do ambiente, há tanto tempo fechado, mesmo antes do defunto começar a apodrecer. Deixou-o caído no assoalho, como um corpo estranho, mais estranho que o do homem deitado. Pareciam pertencer a dois mundos diferentes, embora tão próximos. Em afrontosa oposição ao lenço, o defunto jazia horrível, exalava o mal-cheiro do seu sangue, muito escuro e pastoso, e das suas roupas impregnadas de suor e pólvora. Mas a senhorinha já ia longe, embora a pé, para que o barulho do seu coche não chamasse a atenção de quem fizera aquele barulho. Andando, a distância até sua casa parecia muito maior, e a vontade de chorar parecia insaciável. Passando lento, o tempo passado até chegar foi apenas uma pequena amostra da eternidade que duraria aquela aflição.

CAPÍTULO III

Os últimos doze anos da sua vida haviam sido um verdadeiro pesadelo. Foram de uma tortura diária, feita de lembranças e fantasias implacáveis, do medo de tudo e de todos, do terror de ver se concretizarem os seus sonhos, sempre muito sofridos. Via-os como presságios. Eram quase sempre repletos de vultos desagradáveis e ameaçadores. Um deles, cujo rosto nunca via, estava sempre por trás de alguma coisa, como se espreitasse um momento oportuno, era especialmente terrível e constante. Dizia à ela que sua alma não teria sossego enquanto não se vingasse.

Nos sonhos em que se revoltava e tentava lutar, já cansada de tanta perseguição, o vulto, emitindo uma risada controlada e cruel, esmerava-se na tortura, dizendo que a faria sofrer muito. E sentindo que o corpo grande e pesado do vulto, ao se esgotarem as suas forças, já se acomodara entre as suas coxas, apenas esperava, convencida de que seria preferível acabar logo com aquele tormento. Mas ele não tinha pressa e lhe dizia que mesmo quando, enfim, aceitasse se entregar, não encontraria nele nenhuma piedade. Não antes de vê-la agonizar, esvaindo-se em sangue, deformada, violentada, sem um resto de orgulho ou amor-próprio, fazendo prontamente todas as suas vontades. Todos haveriam de ver o trapo humano em que haveria de ser transformada a moça bela e vaidosa. Então o vulto desaparecia subitamente e ela acordava sentindo-se toda molhada.

Repugnava-lhe a sensação de umidade. Seria de suor ou sangue? Líquidos vaginais ou fezes? Ou seriam todos juntos? Todas as alternativas se lhe apresentavam tão terrivelmente humilhantes e irremediáveis, que somente conseguia levantar e se lavar daquela imundície depois de ver o cão por perto, na madorna que se seguia ap pesadelo, para aliviar o esgotamento extremo. Durante o dia, tudo lhe era repugnante. Não se alimentava, vomitava tudo que engolisse. Lavava-se diversas vezes e trocava suas roupas sempre por outras, sempre brancas as de baixo, mantendo enlutadas as de cima. Porém a mais desesperadora recordação desse vulto não eram tanto as das sevícias: Não lhe distinguia a face, mas via sempre as mãos do homem. Eram sujas e meladas mas, inexplicavelmente, tinham a forma bela, delicada como a das mãos que mais amou na vida. Por mais absurdas que fossem, eram as mãos do poeta! A noite chegava ameaçadora e ela ainda lutava consigo, para se convencer de que aquela semelhança seria apenas mais uma artimanha daquele vulto diabólico, que parecia saber minuciosamente como conseguir fazê-la entregar-se por esgotamento psicológico. Escurecia, o céu lindamente decorado de estrelas não lhe comovia e o falatório dos grilos a irritava. Passava várias noites em claro, mas isso lhe causava transtornos. Além do cansaço, tinha que ficar inventando mentiras para sossegar seu velho pai e as demais pessoas próximas, que ficavam intrigados com o seu sono diurno pelas poltronas.

A senhorinha já não contava seus aniversários. Estava para completar trinta anos, embora ninguém lhe desse menos de quatro décadas, até mesmo cinco, a julgar por sua aparência física e comportamento triste. Tinha os cabelos já grisalhos, o rosto marcado e, nele encovados, olhos sempre ensimesmados como se não vissem o que olhavam. Seu corpo virginal ainda era bonito, porém magro e de movimentos lentos. Não gostava de olhar para si própria. No máximo usava um pequeno espelho que cabia em sua mão. Não era mais nem uma pálida sombra da moça radiante que encantava a todos. Pessoas nem tão próximas tinham-na como antipática e arredia.

Apenas seu velho pai, praticamente cego, como que por ironia conseguia enxergar-lhe a meiguice, que em alguns momentos se insurgia e logo se recolhia novamente ao íntimo. Contudo ele nada lhe dizia. Mesmo sem saber o que ocorrera, sentia muita pena dela e não queria constrangê-la ainda mais. Afinal, também lhe pesava no velho coração a ausência de fartura e felicidade, como houvera no passado. Condenava-se por isso. Os familiares eram afastados. Sua esposa falecera quando a filha tinha apenas três anos, mas então ele era jovem, rico, e dispunha do interesse de muitas mulheres, dentre amigas e até empregadas. Havia sido um homem de muitas e bem guardadas amantes. Mas agora era tudo passado. Canalizava seu afeto todo para a filha e sentia sua falta quando ela se ausentava.

Nos últimos anos essa ausência havia se tornado freqüente. Alguns meses depois dos acontecimentos na mansão abandonada, a senhorinha recebera orientação médica para fazer viagens, como terapia anti-depressiva. Nos primeiros anos essas viagens foram rápidas e curtas, tendo como destino outras propriedades próximas. Mas como não surtiam nenhum efeito, ela fora aos poucos aumentando os trajetos e permanências. Chegando ao limite de influência da família, resolveu ousar e se arriscar em cidades distantes e desconhecidas. Finalmente, rompeu o limite do seu idioma e lançou-se a outros países. Conhecera muitos lugares, gastara muito dinheiro, mas o sofrimento a acompanhava onde fosse. Como se não bastasse, retornara da última viagem muito doente. Os médicos não chegavam a um acordo a respeito da causa, mas eram unânimes em considerar o risco como altíssimo. O próximo acesso poderia ser fatal e era completamente imprevisível. O pai então lhe proibiu de se afastar, até que estivesse curada. Entretanto ela, preferindo as viagens à mesmice dos seus antigos aposentos, revoltou-se. Em contido desespero, o Marquês lhe apertou a verba a cada dia. Ele sentia que aquela situação poderia precipitar o fim, mas não conseguia encontrar uma alternativa prática. Não queria estar longe, caso ela precisasse, mas também já não tinha saúde para acompanhá-la em viagens prolongadas. Ele sempre dizia, fazendo um tipo de humor negro que lhe era peculiar, que já não suportaria carregá-la, se houvesse necessidade, como no tempo que era uma menina travessa. Mas então eles viviam o auge da fartura e da felicidade, os parentes apareciam de quando em vez, os empregados eram muitos, e todos se sentiam bem mais dispostos a rir das piadas do velho.

CAPÍTULO IV

Para além dos pastos, na vertente da confluência entre dois montes era adornada por uma pequena mata. A água que descia a vertente, vinda de uma fonte escondida no alto do monte mais alto, era cristalina, e os empregados mais antigos diziam que tinha propriedades curativas para todos os males. Senhorinha não acreditava nisso. Mas no fundo da vertente havia uma grota ampla, ainda escondida na mata, onde o córrego repousava dos seus saltos e rodopios. Ali formava-se um pequeno lago, lindamente iluminado pelo sol das manhãs, como se a água nele relutasse, antes de aceitar voltar para a escuridão da terra e seguir seu destino. Aquele era o lugar para onde ela se dirigia quando estava triste. Fazia uma manhã mais quente do que as outras quando, habitualmente, todos os pássaros da redondeza vinham buscar a sombra e a água, em troca dos seus cantos mais bonitos. Ao encanto visual, ela somava os mitos sobre a existência ali, em tempos remotos, de fadas dançantes e gnomos ranzinzas. Mas o que a senhorinha mais desejava naquela manhã não conseguira ainda: ver mais uma vez um seu amigo muito particular, que já havia visto algumas vezes noutros lugares, um passarinho que, definitivamente, não era um passarinho como os outros. Mas por mais que lhe pedisse o seu coração fragilizado, a avezinha não lhe aparecia.

No casarão, o velho Inácio perguntou à cozinheira, Vó Mocinha, pela filha. E ao saber dela que havia saído em direção aos pastos, ele sentiu como se uma pedra imensa o aterrasse. Sentou-se no sofá da sala para não cair. Uma brisa suspeita passando pela janela, fez dançar sugestivamente as rendas da cortina, como um presságio. Uma vez, há muitos anos, havia visto a mesma coisa, e não demorou para que um empregado lhe chegasse pondo os bofes pela boca e lágrimas pelos olhos: sua senhora fora encontrada por tropeiros de ouro, morta, no fundo do lago. Nunca se soube ao certo se ela morrera por acidente ou fora morta pelos próprios tropeiros. Porém, que importância isso poderia ter naquele momento? A simples presença de Estela naquele lugar lhe era torturante. Seu pai nunca lhe contara como sua mãe havia morrido, e os empregados foram sempre proibidos de dizê-lo. O homem não suportou a idéia de perder também sua filha no mesmo lugar em que sua mãe Dalva, seu mais verdadeiro amor na juventude, havia partido tão feliz e bela, aos dezenove anos. Assim, do seu desespero tirou as forças que lhe faltavam para ir buscá-la, sussurrando preces para que já não fosse chegar tarde demais.

Ao ver que não havia por perto nenhum dos empregados, foi ele mesmo pegar um coche. E vendo que Estela fora à pé, ficou ainda mais assustado. Subiu no coche dela, que estava pronto, com tanta dificuldade que deixou a bengala lhe escapulir da mão, mas seguiu mesmo sem ela. À certa distância o Eufrásio, um dos empregados que vinha da pocilga com um cesto de tripas lavadas, gritou para que esperasse, pois queria conduzir o coche. No entanto, a mente de Inácio estava de tal modo ocupada, que sequer ouviu os gritos. Passou o chicote na orelha do andaluz, que saiu numa carreira perigosa para um homem da sua idade. Ao sair da estrada e entrar nos pastos, a lembrança do corpo submerso de Dalva se tornava a cada solavanco mais clara. Sentiu medo de cair e morrer, mas prosseguiu sem dar trégua ao animal. Não queria pensar mais na ex-mulher, e só tinha pensamento para Estela. Uma das rodas do coche começou a travar, depois de passar por um atalho esburacado, porém o Marquês foi adiante mesmo assim, achando que qualquer risco era pequeno.

Do alto da ribanceira que terminava no lago, Inácio avistou um vulto que só poderia ser da sua filha, recostada numa pedra à beira da água, a mesma pedra sobre a qual lhe disseram os tropeiros ter caído Dalva, depois de escorregar. Não podendo fazer o coche descer até lá, resolveu descer a pé pelo barranco. Àquela distância Estela devia escutar seu chamado, mas a voz do velho homem não saía, devido ao descontrole da respiração. Já a meio caminho, convencido de que a filha havia caído também e podia estar morta, o pobre Inácio sem o apoio da bengala sentiu os seus joelhos se dobrarem involuntariamente e, derrubado pelo cansaço, rolou o que restava da ribanceira.

De tanto procurar seu amigo passarinho, mesmo nos galhos cada vez mais altos da grota que subia entre os montes, Estelinha recostara-se para acomodar o pescoço e adormecera com as pernas na água da lagoa. Em seu sonho rápido viu finalmente a avezinha, para sua imensa alegria, contudo, em vez de vê-la vindo, via a ave voando para longe, e Estelinha em frustrada busca não conseguia compreender o significado disso. E dessa aflição foi bruscamente arrancada, para uma outra ainda maior. Ao reabrir os olhos, assustada com o barulho, um corpo veio rolando pelo barranco, chocou-se numa pedra ao lado, passou a menos de um metro e foi parar dentro do lago. Ela ficou sem reação durante alguns segundos, até que reconheceu seu próprio pai, afundando na água. Então conseguiu escapar das correntes do susto e foi puxá-lo para fora. Com esforço trouxe-o para a beira e, consumindo as suas últimas energias, retirou o pai da água, pois que estava vivo. Isso era maravilhoso, contudo, ele precisaria de atendimento médico e, olhando de baixo, a ribanceira parecia ainda mais alta. Zonzo demais para coordenar as palavras, Inácio dizia coisas que Estelinha não entendia. O que poderia haver entre aquela situação desesperadora e Dalva, sua mãe falecida havia tantos anos? Precisava agir rápido, o velho talvez morresse em decorrência dos ferimentos, mas antes tinha que encontrar um jeito de tirá-lo dali e era evidente que não conseguiria carregá-lo de barranco acima. Parecia impossível, mas o andaluz aproximou-se da beira alta do barranco e ela agradeceu a Deus por aquela visão salvadora. Uma corda... Tinha de haver uma corda na bagagem do coche.

Estelinha encontrou facilmente uma corda, mas para sua decepção era curta demais. Então sentou-se no barranco, triste e desanimada. Ficou vendo o corpo do Marquês, que tentava se levantar sem conseguir. Não estava acostumada a ver seu pai, que para ela sempre fora um estereótipo de força e poder, debatendo-se contra a própria debilidade, incapaz sequer de se levantar. Um poderoso sentimento de solidão e inutilidade crescia dentro dela, enquanto a luz do dia escasseava. Sobre eles vinham chegando nuvens densas e escuras, em breve choveria muito e uma tempestade era o que menos precisavam para subir o barranco. Antes da chuva vieram as suas lágrimas. Então, de repente julgou ver seu amigo num galho, próximo ao corpo do pai. Mesmo sem poder enxergar direito, essa impressão foi suficiente para lhe renovar as forças. Foi ao coche, pegou a corda desatou o andaluz do mastro e começou a fazê-lo descer o barranco. Quando enfim chegou lá embaixo, a avezinha havia sumido, mas Estelinha já sabia o que fazer. Viu que Inácio perdia sangue e encontrou uma fratura pouco exposta em uma das pernas. Precisava de um talo de madeira e de amarras, mas estava cada vez mais escuro e tinha de subir antes da chuva cair. Assim, preferiu amarrar o velho por baixo dos braços e fazer o cavalo içá-lo para o alto da ribanceira. O animal estranhou a situação mas era valente. Estelinha rezava para que o andaluz não escorregasse, porque se caísse sobre o corpo do velho seria o fim. Aquilo era um procedimento muito perigoso, mas não havia mais tempo para pensar noutro, os primeiros pingos já se faziam sentir. Era necessário chegar ao alto antes que a chuva criasse barro na encosta. Foi para a frente do animal e tentou ajudá-lo como pode. Durante a subida lenta, contra o tempo, sentiu na alma uma brisa de felicidade e gratidão, que a colocava acima de todo o seu sofrimento humano: Seu amigo passarinho ainda era seu amigo, apenas havia se afastado um pouco.

Faltava bem pouco quando chegaram os ventos mais fortes e logo depois a chuva grossa. Enfim, chegaram ao coche e agora ela teria que erguê-lo para dentro. Inácio não podia mais conter seus próprios gritos. Estelinha estava a ponto de desistir de colocá-lo dentro do coche quando ouviu as patas de um cavalo. Era o Eufrásio, que viera procurar por eles. Porém ela não permitiu que ele ficasse. Assim que conseguiram por o velho no coche, ela mandou que o empregado voltasse na frente e não perdesse mais tempo, fosse buscar o médico, enquanto ela levaria o pai para o casarão. O homem não queria deixá-los naquela tempestade, mas Estelinha foi imperativa e ele partiu forçando o animal.

Já a caminho de casa, ela achou que fizera todo o possível e que valera a pena, estava se sentindo mais tranqüila. Precisava agora somente chegar no casarão. Mas sua tranqüilidade não durou muito tempo, porque num dos solavancos seguintes uma das rodas travou e o coche quase adernou. Descendo, ela viu que estava desgastada, rachando, prestes a sair do encaixe do eixo. Estava evidente que não poderia prosseguir naquelas condições. Ela recostou a cabeça desoladamente no corpo do coche e sentiu se esvair o ânimo. Não podia acreditar que ainda tivesse força para por o pai sobre o dorso do andaluz. Nem a lembrança do passarinho dessa vez surtiu algum efeito e ela disse a si mesma: Meu Deus, não sei mais o que fazer. E voltou a chorar até cair de joelhos, na poça em que havia parado, recostando-se na roda enviesada. A chuva continuava copiosa, pingos pesados surravam seu rosto e seus seios, arrancavam-lhe as lágrimas e escorriam por dentro da roupa. A sensação de impotência e a perspectiva de não poder salvar o próprio pai, eram-lhe muito dolorosas e se mesclavam com os sentimentos guardados desde o tempo da tragédia cuja lembrança a perseguia. Sentia-se um traste inútil, alguém que sempre tomava a decisão errada e merecia por isso tanto sofrimento.

Inácio interrompeu suas auto-condenações com um chamado. Juntando-se a ele viu que havia muito sangue e ainda teve que rasgar a costura da calça, o inchaço na perna fraturada estava enorme e sob pressão. Mas estranhamente ele já não reclamava tanto de dor. Então Estelinha se ajeitou com o pai no chão do coche, de modo a acomodar a sua cabeça no seu colo. Tentou acalmá-lo, dizendo que logo chegariam para resgatá-los. Mas Inácio lhe pediu que se calasse, porque era hora dele falar e ela devia apenas escutar, sem fazer perguntas. Ele falava com um fio de voz, soprada com dificuldade, e o barulho do vento e da chuva tornava ouvi-lo e compreendê-lo uma tarefa difícil. Durante um bom tempo, entre relâmpagos e trovões que fendiam a alma, Inácio falou sobre Dalva, e por vezes falava como se ela estivesse no lugar de Estelinha. Esta apenas o escutava, na verdade já sabia de muitas das coisas que ele falou, até certo ponto. Surpreendeu-se quando a sua pequena estória chegou ao dia da morte de Dalva. Então compreendeu porque ele fora lhe procurar e novamente sentiu-se em parte culpada por tudo aquilo. Mais que isso, sentiu-se como num abismo de sentidos vagos, quando o ouviu dizer que o lenço que lhe dera de presente era para ele uma recordação do tempo em que eles ainda namoravam, pertencia a Dalva, e ainda, que aquele pequeno pedaço de seda havia causado uma tragédia. Nesse ponto Estelinha tremeu da cabeça aos pés, pensando que ele se referia à tragédia da qual havia sido a protagonista. Porém, como não teve coragem de falar sobre isso, ele foi adiante e ela percebeu, no prosseguimento da narrativa, que ele se referia a uma outra tragédia. Esta, entretanto, ele não teve tempo de contar. Quando o Eufrásio finalmente os encontrou, apesar do véu negro da noite, o Marquês de Mata Funda já não precisava mais de nenhum médico. Havia expirado nos braços da filha e inexplicavelmente levara consigo os relâmpagos. Estelinha, triste e perplexa, não conseguia entender as suas últimas palavras.

CAPÍTULO V

Inácio conhecera Dalva ainda muito nova. Ela não nascera em família nobre, era filha de posseiros e vivia com os pais e os irmãos num casebre, escondido na mata, na beira de uma lagoa. Inácio, um rapaz rico mas ainda sem título nobre, vira a moça involuntariamente quando, de passagem, deixara seu cavalo de rédeas soltas para procurar água. O animal encontrara a lagoa e Inácio o grande amor de sua vida. Mas no início a relação fora muito difícil. Dalva ainda não compreendia bem as intenções do rapaz e a família, acostumada ao isolamento, compreendia mas não aceitava. A primeira reação do pai dela, o Miguel da Grota, fora dizer à mulher, Petina, que era mais fácil dar-lhe um tiro na cara do que a mão limpa da filha. Ele usara então, apesar da rudeza, uma expressão simbólica. Dalva, única filha dentre os cinco irmãos, era tida como uma santinha. Até ocorrer a primeira menstruação, ela se dividia entre o mundo dos familiares e um outro mundo particular, no qual convivia cotidianamente com fadas, ninfas e gnomos. Mesmo depois, ainda mantinha contatos, porém mais raros. Era no entanto comum perceber que os passarinhos continuavam não tendo medo dela, e um deles era constantemente visto ao alcance das suas mãos, onde por vezes comia frutas silvestres e mel. Aí estava o simbolismo. Suas mãos limpas eram uma referência à sua pureza. Entretanto, com exceção do caçula, seus irmãos não gostavam deste caráter místico, pois atribuíam a ele o que julgavam serem regalias injustas das quais Dalva dispunha. Fedo não, estava sempre à sua volta, como se fosse outro dos seus amigos misteriosos. Alfredo era o menor de todos, na verdade, apenas amava a irmã, sentia mais afinidade com ela, sem entender o enredo em que estavam inseridos.

Porém os apaixonados não pensam como as demais pessoas e Inácio estava louco de amores pela moça arredia. Passou a ir à lagoa sempre que podia, muitas vezes em vão. E com o passar de alguns meses, acabou por convencê-la de que não era perigoso. Mas só mesmo uma grande paixão para fazê-lo suportar a existência de um mundo paralelo, e dos seus amigos em paralelo, que pareciam mais influentes do que poderia ter o próprio pai da moça de poderoso, com seu arcabuz debaixo do braço. Numa manhã, Inácio lhe trouxera um lenço de seda branca de presente e depois se desculpara, dizendo que tinha posses para lhe dar presentes mais caros, porém não o fazia porque isso despertaria o julgamento dos seus pais, e não queria aborrecê-los. Então, para sua surpresa, ela lhe respondeu que se assim o fizesse antes despertaria o julgamento de outros, que não se interessavam pela sua riqueza. O rapaz, perplexo, pediu uma explicação e a moça, parecendo confusa em como responder, alegou que dissera apenas o que Joaninha lhe pedira para dizer. Curioso, ele perguntou quem era. E Dalva lhe disse com um imenso sorriso de satisfação, que era a fadinha que estava escondida atrás da pedra para a qual apontava. Indo até lá, Inácio não viu fada nenhuma, mas o futuro homem de negócios se convenceu de que colocar-se contra os amigos dela não seria uma boa maneira de manter a sua confiança. Não tocou mais no assunto, a moça guardou o lenço, e continuaram encontrando-se na lagoa.

Miguel andava desconfiado de que os dois estavam se encontrando às escondidas, essa intuição o deixava furioso e Lúcio, seu filho mais velho e ajudante nas caçadas, partilhavam muitos sentimentos e a partir de então tinham esse sentimento. Por diversas vezes tentaram surpreendê-los no lago, sem êxito apenas porque Dalva era alertada a tempo por seus amigos. Contudo numa dessas ocasiões, logo depois de ser alertada por uma ninfa do lago, a menstruação de Dalva desceu e ela pensou, a princípio, que o alerta era devido a isso. Quando ouviu, dessa vez claramente, que seu pai estava chegando escondeu-se na mata em disparada. A moça sabia que Inácio estava para chegar e teve medo de que seu pai o encontrasse e então, na falta de outra alternativa, fez uso do lenço branco que o rapaz lhe dera. Miguel passou bem perto já com a arma pronta e Lúcio mais distante, como se espreitassem algum bicho. Não acharam nenhum bicho, nem ninguém, mas Miguel recolheu de sobre um tronco deitado na mata o lenço que, na fuga, Dalva esquecera ali. Lúcio olhou para o pai e perguntou o que era aquilo. O homem, com os olhos vermelhos de raiva, gritou que Inácio havia abusado da sua filha e o jurou de morte.

Escondida na mata, Dalva escutara o pai indignada, não se atreveu a interferir, mas pediu a seus amigos que desviassem Inácio para outro caminho, antes que fosse tarde. Entretanto já era tarde. Lúcio o viu primeiro e apontou a garrucha. Inácio, desarmado e desmontado, correu de mata acima. Perseguido, arrependeu-se de subir e deu a volta numa pedra, mas Lúcio percebeu o ardil, veio correndo atrás e esteve por atirar. Percebendo que a vegetação à frente logo ficaria baixa demais, antes que a mata alta acabasse Inácio desviou para trás de um tronco grosso e Lúcio passou por ele sem notar dessa vez. Inácio respirou aliviado, mas logo em seguida ouviu um tiro. Sua suspeita imediata era verdadeira. Pensando que Inácio corria na frente, Miguel atirara no próprio filho por entre a vegetação. E para seu desespero acertara.

Ao chegar em casa com Lúcio no ombro, Miguel estava colérico. O rapaz ainda respirava, mas o homem sabia que talvez não resistisse. Sua mulher acabara de ouvir de Dalva, entre lágrimas, em poucas palavras o que ocorrera, e Miguel chegou aos berros para confirmar a sua própria versão. Furioso demais para raciocinar, não queria ouvir as ponderações da mulher e, numa atitude definitiva e irrefletida, prometeu matar a filha também, caso Lúcio morresse. Sentada no canto da cama e sentindo-se indefesa, a moça conhecia a ira do pai e implorava ajuda aos seus amigos, apavorada com o que ouvira dele. Miguel avançou ameaçadoramente para Dalva, porém a mulher entrou em sua frente exigindo antes ver o tal lenço. Ao tirá-lo do bolso da calça, entretanto, viram todos com espanto não mais que um lenço de seda lilás, ao invés de branco, mas limpo e sem nenhuma mancha de sangue, como ele havia descrito. Miguel entrou em desespero, atirou o lenço na direção de Dalva e foi tentar salvar o filho agonizante.

Alertada de que o irmão não resistiria, durante a madrugada Dalva preferiu fugir com Inácio, que sabia estar esperando aflito e esgotado, escondido do lado de fora, no meio do sapê. A moça esperou o momento mais oportuno deitada junto da mãe, que na sua cama esperava o marido cansar, já que ele não a quisera ajudando em nada. Na verdade ambas fingiam dormir, assim como os demais três filhos no outro cômodo. Todos se perguntavam o que aconteceria quando o dia raiasse. Só mesmo a moça sabia, pelo menos da própria parte. Quando Miguel finalmente pregou os olhos, Dalva beijou a mãe, que triste ainda a viu descendo para fora pela janela.

Parados diante da lagoa, onde Inácio encontrou seu cavalo, estavam diante do futuro sem saber como seria. Dalva chorava em silêncio e Inácio, olhava ensimesmado o reflexo do céu no espelho da água. Como que por solidariedade, a mata, a lagoa e tudo mais permaneciam em um espaçoso silêncio. Pensativo, Inácio perguntou à moça se a maior das estrelas refletidas na água era a estrela Dalva. Mas a Dalva cuja responsabilidade ele estava assumindo em silêncio lhe respondeu, balançando a cabeça, que não. Ao que o rapaz retrucou, sem saber exatamente do que estava falando: Então vou chamá-la de estrela e pronto, Estela, daqui pra frente ela se chamará Estela...

De repente o rapaz pareceu alfinetado. Sentindo necessidade de maior segurança, disse que não deviam ficar ali por mais tempo, pois seria fácil demais achá-los. Não tinha outra alternativa imediata senão levar a moça para morar na mesma casa em que morava e, durante o longo trajeto até lá, teria que pensar em como explicar tudo ao pai, que era um homem correto, cristão e muito respeitado. Inácio entendia que aquela situação era arriscada, do ponto de vista da distinção com que viam seu pai, no entanto, acreditava poder convencê-lo de que devolvê-la àquele imbecil raivoso seria muito mais arriscado. Também teria que tecer argumentos para evitar que a entregassem numa igreja ou outra instituição e, para isso, não teria dúvida em manifestar sua intenção de casar-se com ela. Assim todos ficariam bem e não teriam que ouvir cochichos, nem de familiares nem de empregados.

Com o apoio do pai, preocupado mas compreensivo e orgulhoso da dignidade de Inácio, conseguiram convencer um padre amigo da família, e eles se casaram seis meses depois, numa cerimônia restrita e simples. Uma semana depois, foram morar numa propriedade distante, também pertencente à família, onde, no ano seguinte, nasceu Estela, durante uma madrugada muito fria mas de céu límpido. Depois que se acabou o corre-corre e as parteiras já iam tomando o seu caminho, Inácio sentou-se na varanda da frente do casarão e acendeu sozinho um charuto, imitando o que seu pai fazia acompanhado de amigos. No céu profundo e distante, uma estrela lhe chamou a sua atenção, fazendo com que se recordasse da madrugada em que fugiram. Só poderia se tratar da mesma estrela. Estrela... Dalva era a sua estrela predileta, porém agora teria duas estrelas para cuidar e proteger, Dalva e... Estelinha.

CAPÍTULO VI

Como já era normalmente enlutada, pouca coisa mudou, na aparência, em razão do falecimento de Inácio. Porém no íntimo sim, mudou muito e para pior. Estelinha logo descobriu que seu pai era ainda mais importante do que imaginava. E que, ao partir, levara consigo a mais importante das arcas da casa, a memória de tantas coisas que pareciam antigas e passadas, mas que com certeza seriam capazes de esclarecer quase todas as dúvidas e mistérios que a torturavam. Ah, como lamentava tanto agora, por defesa dos seus próprios dramas, não ter sido mais tolerante com ele. Teria dado a si mesma muitas oportunidades de saber os detalhes daquela estória e, de certa forma, de compreender a si própria. Mas não restava mais ninguém e, para complicar, teria então resolver sozinha os problemas que antes ocupavam a ele. Especialmente as dívidas, que jamais pensou serem tão altas, e que a levariam ao desprazer de se expor para negociar. Em um primeiro contato, o banqueiro já se mostrara muito interessado na propriedade, como forma de resolver todos os problemas da herdeira de uma só vez. Contudo Estelinha sentia muito medo de fazer isso. Induzida pelo banqueiro, chegou a se reconhecer interessada em trocar sua propriedade por outra menor, o velho casarão abandonado havia tanto tempo pareceu estar lhe esperando. Era um lugar lindo e bem menos trabalhoso para se cuidar. Mas de imediato reconheceu também, que não poderia viver fisicamente no lugar em que já habitava a parte mais dolorosa da sua memória. Seria como levar seu padecimento a um estágio mais insuportável do que já era. Por isso tratou de afastar essa hipótese em caráter definitivo.

Porém não pode resistir por muito tempo. O banqueiro era um homem tenaz e muito hábil nesses assuntos. Para ele, uma mulher só, fragilizada e sem tarimba em negócios, haveria de ser uma presa fácil. Era apenas uma questão de tempo. Três meses depois, resguardando um período mínimo para o luto, ele lhe apresentou uma atualização das dívidas, anexando cálculos e artifícios financeiros minuciosamente construídos, de modo a não serem compreendidos por ela. Nomes técnicos e números múltiplos lhes pareceram entrecortar-se como num mapa misterioso, no qual ela só podia discernir um caminho, o da miséria, caso não cedesse. Estelinha pediu ajuda a um advogado que fora seu amigo na juventude. Porém, ingênua e desesperada, não achou importante o fato de haver desprezado as intenções amorosas dele, naquela época, como as de muitos outros. Mas ele era um homem rancoroso e ela uma mulher envelhecida, o advogado julgou negócio melhor aliar-se à trama do banqueiro, que logo concordou em lhe ser compensador em nome da lealdade.

No final da semana seguinte, à tardinha, pouco faltava para o sol mergulhar nas serras, vinha chegando uma brisa gelada e a cozinheira veio lhe trazer uma xícara de chá. Sentada no sofá, ela olhava as rendas da cortina da janela, tingidas pelo por do sol. Dizia a si mesma que gostaria de ter uma outra solução para aquela casa, as plantações, os pastos, a lagoa... Para os empregados que não poderia levar e para os seus filhos ainda pequenos. Perguntava-se a razão de ser sempre ela a parte obrigada a ceder, à força de circunstâncias que não quis e cujo enredo impediria se soubesse como. No dia seguinte, ironicamente o banqueiro lhe cederia um contrato de quitação e um largo sorriso, ornado de bigodes fartos, para esconder os dentes amarelados de chupar os nervos da miséria de outras pessoas. Mais uma vez não havia alternativa a não ser ceder. Com a chegada da noite se deitaria para dormir, e talvez ainda tivesse que ceder de novo, aos pesadelos que já não lhe causavam tanto pavor, para dar à manhã mais uma chance de revê-la, ainda viva. Até quando?

Ainda cedo, ao retornar do banco a senhorinha, agora revestida de autoridade e responsabilidade como nunca antes, mandou que se reunissem todos os empregados em frente à varanda principal, porque ela tinha notícias importantes. Viram-na sair para a varanda com a cabeça baixa e depois despejar um olhar cheio de tristeza e piedade sobre cada um deles. Olhos e ouvidos ávidos, todos sabiam do que já corria à boca-pequena, mas não sabiam ainda a verdadeira extensão do problema. Senhorinha respirou fundo e lhes disse com a voz trêmula: Não queria que fosse assim... Todos aqui são antigos, muitos nasceram aqui, assim como eu, e se acostumaram a gostar deste lugar e das pessoas, no entanto não posso mais manter esta casa e, embora com o coração tão pequenino, para onde vou... Bem, não poderei levar a todos comigo...

Um murmúrio partiu das mulheres, mais acostumadas ao convívio diário dentro da casa, contudo o seu sentimento era partilhado por todos. Senhorinha levantou com brandura a mão, e depois do silêncio continuou a sua fala:

Preciso levar nossa cozinheira Vó Mocinha e nosso cocheiro Eufrásio, que são sozinhos... Mas também irei precisar de outras três mulheres para a manutenção da nova casa, das que já fazem isso aqui, e de mais um homem dentre vocês, para cuidar dos jardins e da propriedade, desde que não se importem em ir sozinhos, já que não terei como alojá-los. Mas calma... As três mulheres e o jardineiro terão até o almoço para se apresentar. Quanto ao demais, peço que esperem até depois de amanhã, quando chegará o malote do banco, para que possam receber o que lhes for devido como salário, porém há com vocês uma dívida minha que jamais poderei pagar, relativa à dedicação e à lealdade de cada um... A todos vocês... E às suas crianças rogo que me perdoem. E, caso o aceitem também, ofereço o alento de que tendo esta casa outro proprietário, do mesmo modo este necessitará de empregados. Meu agradecimento a todos, em meu nome e em nome de meu falecido pai, o Marquês de Mata Funda.

Com o coração ainda oprimido, Estelinha voltou a sentar-se no sofá e pediu um pouco de água açucarada, a cozinheira foi até uma moringa de barro que havia sempre sobre a mesa de refeições, entre duas fruteiras, e lhe trouxe uma caneca pela metade, ainda remexendo no fundo o açúcar mascavo. A senhorinha bebeu com avidez e ficou esperando sentir-se melhor. Quando puxou uma almofada para recostar a cabeça no espaldar do sofá, viu com surpresa um vulto passar por trás das cortinas da janela. Era uma mulher negra, magra e baixa, que veio calma e cabisbaixa pela varanda, até se postar em frente à porta principal da sala, onde parou e manteve-se cabisbaixa. Julgando não conhecê-la através das rendas da cortina, Senhorinha chamou pela cozinheira e perguntou quem era. Vó Mocinha veio sorrindo com as mãos na boca, e lhe perguntou se não a reconhecia, pois era a Branca, sua antiga companhia.

Perplexa e emocionada, Senhorinha soltou as amarras da tristeza que lhe prendia ao sofá e correu ao encontro da negra, que se assustou ao ver sua senhorinha rompendo subitamente as cortinas. Ficaram longamente abraçadas. Do lado de dentro, a velha cozinheira sorria de satisfação, por ver algo que já não via há tantos anos: Senhorinha tão feliz... Vó Mocinha ainda a achava linda, especialmente quando libertava o seu sorriso de mocinha, que noutros tempos era como um sol, correndo dentro da casa e iluminando por onde passava. Que bom, se fosse sempre assim.

Estelinha trouxe Branca para dentro e começou uma saraivada de perguntas. Queria saber de tudo desde de que haviam se separado, porque o Marquês achara que mais convinha que fosse acompanhada por uma pessoa mais experiente nas suas viagens. A negra não podia responder a todas ao mesmo tempo, mas foi narrando os acontecimentos, na medida em que sua senhorinha o permitia. Para espanto de sua senhorinha, estivera todo esse tempo em outra propriedade, porém, muito mais perto do que podia imaginar.

Vó Mocinha já pusera o almoço sobre a mesa quando vieram duas mulheres, Antônia e Zinha, e um rapaz, Homero, para lhe dizer que estavam dispostos a ir para a casa nova. Senhorinha perguntou pela terceira e Antônia, a mais velha, respondeu que Maria Quina havia desistido, pois vira chegar a Branca. Então Estelinha balançou a cabeça e perguntou à Branca se ela gostaria de ir também. A negrinha tímida abriu o maior sorriso que era capaz de sorrir, e Senhorinha mandou dizer à Joaquina que, se ainda quisesse, poderia ir também. Antônia e Zinha saltitaram de alegria e já iam saindo quando Senhorinha alertou: Amanhã saio às oito, para não viajar sob o sol muito quente. Hoje à noite tratem de dormir cedo, porque vão dar uma boa limpeza naquela casa. Também há vários jardins lhe esperando, Homero. Não esqueçam de levar nada. Homero foi o último a pedir licença e Senhorinha foi para a mesa de refeições. Mas queria que Branca lhe contasse mais coisas, por isso mandou que trouxesse um dos banquinhos da cozinha, se sentasse ao lado e continuasse contando de onde havia parado.

CAPÍTULO VII

No dia seguinte, quando o almoço ficou pronto o sol já estava baixo e a noite não se demoraria muito. Ainda havia muita coisa para fazer, até mesmo dentro do casarão, pois Senhorinha os dispensara de alguns cômodos e os proibira de mexer no salão dos fundos. Assim, ela julgou que já havia condições minimamente razoáveis para a mudança. Tinha prazo contratual de um mês para fazê-la, mas a esta altura, queria terminar logo. Mandou que chamassem a todos para a refeição, o serviço por enquanto estava terminado. Precisava retornar, pois no dia seguinte teria que fazer, pela primeira vez, o pagamento dos empregados. Depois, isso vinha a calhar, porque desta forma protelaria por mais um pouco a experiência de passar ali uma noite inteira. Sentia desconforto com respeito a essa idéia, embora sabendo que teria que enfrentá-la.

Alguns empregados recolhiam e arrumavam ferramentas, outros simplesmente se acomodaram de barriga cheia. Todos esperavam a ordem da senhorinha para tomarem o caminho de volta. Mas Estelinha estava no jardim dos fundos, próxima do lago da fonte, onde estivera naquela noite até ouvir os disparos. Sua mente submergira lentamente no realismo quase palpável das lembranças, como se entrasse no lago, que de tão raso houvesse se tornado infinitamente profundo e escarpado. Apesar da intensidade emocional, foi capaz de perceber a imensa distância que havia entre a senhorinha daquela época, e aquela que fora produzida por tantos anos de sofrimento e silêncio. Não se tratava de uma mudança meramente física. Embora tão íntima, a moça cheia de sonhos e vaidades, parecia ser outra pessoa. Desejou que o fosse, que aquela fosse a estória de uma amiga distante, porque assim não teria mais o que esconder, nem o que temer e agora, com a volta de Branca, poderia retomar o fio da vida, deixando para trás como num vácuo todo aquele passado.

A última cena que relembrou foi o momento em que pôs os canos da garrucha sobre a língua. Então não pode mais resistir e, lutando com agonia, rompeu o limite íngreme de volta à realidade do presente. Sentou-se no beiral do lago, até que passasse uma leve vertigem. Procurou regularizar a respiração, enquanto sentia um imenso arrepio, a lhe percorrer o corpo lentamente. Sabia que o dia fora quente e que tudo ainda guardava um resto de mormaço sob o manto da noite, que acabara de chegar. Não havia nenhuma brisa refrescante ainda mas, estranhamente, Senhorinha sentia frio. Um frio de dentro para fora. Assustada, deu meia volta para retornar, e deu de frente com um vulto parado a alguns metros atrás. As luminárias não haviam sido acesas e a luz que existia era a das estrelas, mas não obstante o susto logo reconheceu Branca. Sentiu vontade de conversar com a negra, única remanescente da trama além dela própria. Alguém que estava sempre ao seu lado em todo lugar, mas que, justamente naquela madrugada não estava. Agora lhe parecia um anjo protetor, que se ausentara apenas por alguns momentos, o suficiente para sua vida se degenerar. Não... Estava tarde para falar sobre isso, precisavam retornar. Deu nela um abraço silencioso e grato, e mandou que reunisse todos, porque já estava partindo de volta.

Após o último empregado receber seu dinheiro, Estelinha levantou-se da velha escrivaninha, onde acabara de saber como se sentia seu pai ao conduzir os negócios. Esgotada mas serena, largou-se no sofá. Descobrira que pagar os salários dos empregados dava uma imensa satisfação de dever cumprido, porém, fazê-lo naquelas circunstâncias era doloroso. Era uma forma de despedida e no fundo não queria separar-se deles. Mas lembrou-se da noitinha anterior, na beira do lago da fonte. Queria lutar para se desprender do passado e ser feliz, pelo tempo que ainda lhe restasse, ainda que fosse muito pouco. Deu-se conta de que a muito não sofria um novo acesso da sua misteriosa doença, então precisava ser objetiva e rápida.

Todavia ela precisou de mais três dias para organizar e efetuar a mudança. Nunca imaginara haver tantas coisas, nem ser tão difícil desprender-se de coisas tão pequenas. Explicou à Branca que nas viagens que fazia, não sentia como se houvesse um desligamento. Sabia que cada coisa estava ali, no mesmo lugar, lhe esperando. Agora era muito diferente, pois tinha certeza de que estava rompendo muitos laços, e romperia em definitivo com a materialidade de cada pequena coisa. Julgava ser uma espécie de preparação. A perspectiva de uma morte súbita pela doença, a levava a considerar a necessidade de desprender-se também de tudo mais, até de si própria.

Na tarde do domingo seguinte, quando todos repousavam da semana muito trabalhosa e de um almoço farto, já na casa nova, Senhorinha ficou só na varanda. Sentia-se dividida, pois por um lado algo lhe atraía para o salão dos fundos, porém, de outra parte sentia medo e sempre protelava isso. Durante as últimas noites, havia dormido pouco, mas sem aqueles pesadelos horríveis, justamente quando temeu que eles ficassem muito mais intensos. Temia que voltar lá fizesse com que eles retornassem. Não estava chovendo, mas no céu havia muitas nuvens, como se esperassem uma hora pré-determinada para se transformarem em chuva. Foi então arrancada da lerdeza dos seus pensamentos. Branca subiu à varanda e quis saber se poderia fazer uma pergunta. Ela assentiu e ficou ainda mais surpresa: Branca perguntou por que razão sua senhorinha não permitira que limpassem o salão dos fundos, onde havia muitas coisas antigas, mas belas e aproveitáveis. Estelinha precisou de um tempo para decidir o que dizer e dirigiu um olhar vago, perdido na direção do infinito. Depois, curiosa, perguntou como poderia saber tão bem das coisas que haviam por lá se, pelo menos que soubesse, ela nunca houvera entrado naquele salão.

Pega de surpresa, desta vez foi a negra que hesitou em responder. Acabou explicando que entrou há muitos anos, mas, como a casa permanecera fechada, devia estar tudo do mesmo jeito. Esta revelação fez com que Senhorinha insistisse, agora queria que lhe contasse tudo muito direitinho. Com receio de ser repreendida, Branca relatou o que acontecera numa das madrugadas em que voltavam de um sarau. A mando da própria Senhorinha, fora acompanhar Marina, amiga de sua senhorinha, até sua casa, que ficava próxima. Lá lhe emprestaram um pangaré e assim voltava para casa. Mas quando passava em frente ao casarão onde estavam agora, teve a impressão de reconhecer o coche que estava na entrada lateral da casa. Queria ir verificar se era o coche da Senhorinha, mas também queria surrar o pangaré na direção de casa, porque ouvira sons muito parecidos com dois disparos de arma de fogo pouco antes. Preocupada com a possibilidade da sua senhorinha estar em perigo, acabou optando por voltar. Logo viu que era mesmo o coche dela e convenceu-se de que teria que entrar na casa para procurá-la. Mesmo tremendo de medo de encontrar o demônio daquele cão, foi devagar até os fundos, mas não viu ninguém nem nos jardins nem nas fonte. Então benzeu-se três vezes antes de empurrar uma das três portas da frente, tendo escolhido a menor, abaixo da escada da varanda, por onde deviam passar os empregados nos bons tempos. A porta não estava trancada, mas haviam colocado uns caixotes por trás.

Interessada em cada palavra, rebuscando a memória e tentando encaixar os elementos, Estelinha já estava convencida de que o barulho que a assustara e fizera sair aos saltos pelo mato da estrada, havia sido feito por Branca. Então, pensou consigo, se não imaginasse tratar-se de alguém perigoso, poderia ter saído calmamente e voltado pra casa no próprio coche. Ora, bolas!... Entretanto, estava agora mais interessada no resto da estória, e a negra, crendo que não mais receberia uma espinafração, narrava sem intervalos e plena das suas emoções.

Com emoção e receio Branca chegou ao que julgava mais importante: O momento em que descobriu o corpo de um homem no chão do salão. Ele estava morto e havia sangue à sua volta. Só podia ter sido morto pelos disparos que ouvira. A negrinha sentiu-se apavorada. Se chegasse alguém ali naquele momento? Queria ir embora logo, porém algo a prendeu. O espelho, estava quebrado, mas não havia um buraco de bala. Chegando mais perto, entretanto, encontrou junto ao pé do espelho uma garrucha. Então pensou que devia deixar aquilo ali mesmo e sair, antes que estivesse envolvida e na obrigação de dar explicações que não saberia dar. Em princípio achou que não tinha nada a ver com aquela estória. Porém, logo teve que reconsiderar essa conclusão: Na saída, encontrou no chão o lenço de sua senhorinha, e portanto, de alguma forma já estava envolvida, ao menos por sua lealdade. Com a cabeça zonza e sem saber o que fazer, Branca decidiu-se por guardar o lenço e a garrucha na primeira gaveta que encontrou e em seguida saiu dali o mais rápido que pode.

Estelinha quis que a negra lhe dissesse em que móvel, em que gaveta guardara a arma e o lenço, insistiu muito mas ela não conseguiu lembrar-se. Julgou então que havia se passado tanto tempo, que isso poderia esperar mais um pouco. No dia seguinte tentaria lhe refrescar a memória levando-a até o salão. Já no sua cama, pronta para dormir, o sono estava distante. Sua mente vagava no tempo, ao sabor de uma seqüência pouco lógica de lembranças. Numa pequena fração de segundo deixava um determinado lugar, para reaparecer em outro, noutro horário. Em certos momentos fazia um desses deslocamentos mentais motivado pela sua lógica, mas não encontrava respostas que se encaixassem e era novamente arrastada involuntariamente. Desgastada, física e psicologicamente, adormeceu de repente, sem nenhuma conclusão.

CAPÍTULO VIII

Depois de mais de uma hora abrindo e fechando gavetas, arrastando móveis e separando coisas julgadas interessantes, finalmente Branca deu um grito de satisfação, porque estava convencida de que sua senhorinha já duvidava de que houvesse dito a verdade. No entanto, faltava algo importante. Numa gaveta estreita de escrivaninha estava a garrucha. Porém, disse duas coisas que deixaram Estelinha muito intrigada e preocupada: Primeiro, o lenço não estava na gaveta e, segundo, embora não se lembrasse da gaveta em que os colocara, Branca tinha certeza de que não fora naquela gaveta. Estelinha ficou de tal forma perplexa, que desistiu de fazê-la se lembrar da gaveta certa. Mais importante era tentar encontrar respostas possíveis para as novas perguntas que se impunham. Com certeza, alguém investigou as circunstâncias da morte do defunto que encontraram, mas não fora esta pessoa, com absoluta certeza, quem pegara o lenço e deixara a arma. E ainda que o fora, por que recolocaria a arma noutra gaveta?

Cansada da emoção das lembranças, de tantas perguntas e tão poucas respostas, Estelinha sentou-se num canapé que havia num dos cantos do salão. Deste lugar tinha uma visão mais ampla. Viu que Branca, vindo sentar-se próxima, esperava que lhe dissesse alguma coisa, mas o que deveria dizer a ela? Não tinha respostas nem para si própria. Por outro lado, não julgava conveniente revelar tudo o que sabia. Passaram-se alguns longos minutos, e quando Estelinha já reunira na cabeça algumas palavras para dizer à negra, o cocheiro chegou-se à entrada do salão e chamou por ela. Um caboclo velho estava na frente da varanda, dizendo que precisava falar com a dona da casa e que se chamava Alfredo. Estelinha não se lembrava de alguém com esse nome. Sua primeira intenção foi dar uma desculpa para não atendê-lo, entretanto, subitamente lembrou-se de um sonho recente, no qual alguém desconhecido lhe chegava trazendo na mão um passarinho morto, ou doente. Resolveu dizer então que o mandasse esperar, porque dentro em pouco seria recebido na varanda. Mandou que os dois fossem na frente e foi para seu quarto, levando consigo a garrucha.

Da distância e altura da varanda, Estelinha olhou detidamente para aquele homem já bem grisalho e vestido com roupas de estilo muito ultrapassado. De onde haveria saído aquela figura que, entretanto, tinha um sorriso discreto por trás do olhar misterioso? Ela tinha a impressão de que o homem a admirava em silêncio, como se naquele encontro tivesse motivo para satisfação. Por pura curiosidade Estelinha quebrou o silêncio, perguntando-lhe a que viera. Então o homem respondeu dando um sonoro bom dia e depois fazendo outra pergunta: Disse que vinha vagando de longe, há meses, procurando por uma mulher de nome Dalva. Disseram-lhe que havia morrido há muito tempo, mas deixara o marido com uma filha. Depois lhe disseram que o marido havia batido as botas também e por último que a tal filha havia enlouquecido se mudado... Com expressão desanimada completou, dizendo que se a senhora não pudesse lhe dar alguma informação aproveitável, lhe seria grato mesmo assim... Mas desistiria, voltaria para sua casa e diria à sua velha mãezinha que morresse conformada, porque não há mais a quem encontrar.

Estelinha se demorou tentando entender aquilo, a partir do sonho do passarinho morto. Não quis dispensá-lo, afinal, Dalva era o nome de sua mãe. Antes seria preferível mandar que ele subisse à varanda e se sentasse, bebesse um pouco de refresco de limão e respondesse às perguntas que queria fazer. O homem entregou o cordame que lhe servia de rédea a Eufrásio, tirou da calva o chapéu sem aba e subiu, como ela havia autorizado, mas o cocheiro ficou ali mesmo segurando o cavalo, só olhando, desconfiado do seu dono.

Sentando-se noutra cadeira, Estelinha lhe disse, tratando-o de sr. Alfredo, que sua mãe chamava-se realmente Dalva, mas que infelizmente morrera quando ela tinha três anos. Quanto a seu pai, Inácio, o Marquês de Mata Funda, também era verdade que havia falecido recentemente, bem como, que ela, Estela, depois resolvera se mudar para aquela casa onde estavam. Depois quis deixar o homem embaraçado, perguntando-lhe se lhe parecia uma louca. Mas, em vez disso, foi surpreendida pela sua risada solta e desdentada. Era pura alegria, sua penosa missão havia finalmente terminado. O velho caboclo recompôs-se para explicar: Então também era verdade que lhe tratavam de Estelinha... Bem, senhora... Eu sou irmão de sua mãe, eu gostava muito dela e éramos como unha e carne, até que ela fugiu com seu pai Inácio. Estelinha franziu a testa e ele continuou, explicando que dona Petina, sua avó materna, que nunca mais viu Dalva, estava muito velhinha e doente. Todo dia diz que vai morrer, mas nem que vire pedra, não bate as botinas antes falar com uma mulher sua descendente. As pessoas acham que ela já não está falando coisa com coisa, mas que ele havia lhe prometido que vinha procurar sua irmã. Andava há meses de propriedade em propriedade, trabalhando um pouco para ter o que comer sem roubar, e voltando depois para a estrada. Estava muito cansado, mas era grato a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque ao menos havia encontrado uma netinha de sua mãezinha. Por fim, ele perguntou se ela sabia que era então a única mulher que descendia de sua mãe.

Com os olhos arregalados de tanto espanto, Estela não sabia o que dizer, enquanto esperavam por alguma palavra, além de Alfredo, os empregados da casa, por trás das cortinas e no vão de sob a varanda. Durante estes imensos segundos, Alfredo reparava em como Estela parecia com Petina. Embora um pouco mais alta e descontando o negro excessivo das roupas, o formato triste dos olhos e o modo de olhar enquanto falava eram idênticos, assim como os dentes da frente, que restaram na avó. Suas mãos era bem mais jovens e, ao contrário das da avó, estava evidente que jamais trabalharam usando a força, porém ainda assim eram muito semelhantes. Como estava naquele momento, reflexiva, como se procurasse encontrar algo muito distante no horizonte, era uma cópia de Petina, sentada na pedra que havia em frente ao casebre, faltando apenas o cigarro de palha de milho para completar a imagem que ele guardava. Petina não subia mais naquela pedra, nem fumava a sua palha. Na verdade sequer descia da cama, Alfredo esperava que ainda estivesse viva.

De repente Estelinha rompeu a quietude e, tratando-o de tio Alfredo, pediu para lhe dar um abraço, com a mesma doçura que ele adorava em Dalva. Os olhos dele agora é que se mostravam rasos, enquanto revelava que Dalva lhe chamava de Fedo, e que, quando criança, ele gostava de ver o biquinho que ela fazia para falar o seu apelido. Estelinha sorriu ao mudar o tratamento para tio Fedo, tentando imitar o biquinho, e dizer que nunca soubera de ninguém com esse nome. Para fazer graça, ele concordou e disse que também não. Como então já se sentiam à vontade, Eufrásio foi levar o cavalo para a cocheira, e Vó Mocinha trouxe mais refresco, com o seu sorriso simpático e desdentado. Para responder a uma só pergunta dela, sobre o que dissera a respeito da fuga de sua mãe, tio Fedo começou uma narrativa de tudo o que ele se lembrava daqueles dias já tão distantes. E Estelinha o ouvia avidamente, sem se importar com o interesse de Vó Mocinha, em pé, com as mãos dobradas sobre os rins. Estela entendia que a velha cozinheira só conhecesse a estória a partir de quando seus pais foram morar juntos, depois do casamento. Branca veio e sentou-se no chão, próxima a sua senhorinha, mas Zinha e Antônia permaneceram ouvindo da sala, pela renda da cortina. De vez em quando, Homero passava por baixo da varanda, fingindo que trabalhava, mas também interessado na conversa.

Três coisas na narrativa de Fedo se acumularam para arrancar lágrimas de Estelinha: a amizade de Dalva com o passarinho, o mistério da cor do lenço, e as mortes de tio Lúcio e do avô Miguel, um pelo ferimento e o outro de tristeza e revolta. Quase um mês depois, Miguel da Grota passara a beber tanto que um dia deitou-se na beira do lago, abraçado ao seu trabuco, para nunca mais acordar. Quando Fedo o encontrou, compreendendo que estava morto, como não podia carregá-lo ficou sentado ao seu lado abraçando os próprios joelhos, olhando os reflexos do sol, no lago que a brisa encrespava suavemente e nas últimas lágrimas do pai, densas, acomodadas no canto fundo dos seus olhos baços e inchados, imóveis e ermos. Tantas vezes ele vira nos olhos dos bichos que o pai caçava a mesma expressão desesperançada da vida, mas agora eram os olhos do seu pai. Nenhum sangue, nenhuma explicação, e nenhuma certeza do futuro. Somente mais tarde o moleque correu para encontrar alguém que o ajudasse, antes que escurecesse.

CAPÍTULO IX

Com os olhos fixos, esvaídos pela janela afora, num céu cuja luz parecia vir recolher a sua prece silenciosa, transpassando corpo inútil, Petina não percebeu a chegada da neta. Adamastor e Manoel, tratado de Neco, se revezavam na atenção que a mãe exigia, e no momento apenas Neco estava em casa, enquanto o outro ocupava-se das suas plantações, era meeiro em pequenas lavouras de cereais. Perplexa diante da extrema simplicidade em que viviam os seus ascendentes, Estelinha assustou-se ao ser tocada no ombro e apresentada ao seu tio Neco. Mas na verdade o ambiente era de surpresa para todos, como se ninguém ali jamais imaginara estar em tal situação.

Levada ao quarto, ela parou no portal, guardado por uma cortina de pano listado já roto pelo tempo. O cômodo era minúsculo, o chão de terra batida e úmida, paredes de pedra e telhado aparente de sapê. Na cama engastada entre as pedras, o corpo pálido e galhudo de Petina não mostrava mais nem sombra da mestiça forte e altiva que fora. A sua quietude serena velava uma vida inteira de luta, para criar cinco filhos e perder dois tão cedo, para manter limites de dignidade no convívio difícil com o marido temperamental e, depois, para transformar a viuvez num embate diário pela sobrevivência de todos os que haviam restado. Porém, para além da aparência débil e solitária, Estelinha via nela força soberana de uma leoa.

De repente os olhos de Petina marejaram e uma lágrima desceu espalmada entre as suas rugas. Penalizado, Fedo levou Estela até a beira da cama e anunciou a chegada da neta. Só então Petina virou lentamente o rosto, olhando-a como se enxergasse além dela. Estela não conseguia dizer uma palavra, embora, em sua emoção, sentisse vontade de pegá-la no colo e abraçá-la. Sabia que sua avó chorava porque entendera que Dalva não voltaria nunca mais, e lamentava não poder compensar essa dor. Enfim, depois de muito esforço, conseguiu chamá-la de vovó e dizer que era Estela, filha única de Dalva e Inácio. Em seguida sentou-se na beira da cama, pegou sua mão fria e emudeceu, porque não obstante a diferença de idade eram mãos parecidas demais. Ainda em silêncio, Petina assentiu com a cabeça e Estela lhe contou que ela havia sido muito feliz ao lado de seu pai, mas que infelizmente falecera havia muitos anos, e seu pai também, havia apenas alguns meses. Continuando, disse que pensava estar só no mundo, já que os parentes da parte dele estavam afastados, mas que então, do nada aparecera o tio Fedo e ela ali estava, muito feliz por conhecer a mãe de sua mãe.

Rompendo finalmente o próprio silêncio, Petina lhe disse que também se sentia muito feliz, e que no íntimo sentia que não veria mais sua filha tão querida e injustiçada, apenas não era capaz de aceitar a própria intuição. Em seguida disse ser grata a Deus por tê-la ali a tempo, porque precisava muito lhe falar algo antes de partir, e que ela poderia ir ao encontro da filha mais tarde. Então, respeitosamente deixaram-nas a sós no quarto e, depois de uma breve pausa, Petina pediu à neta que lhe ajudasse a suspender a trouxa que servia de travesseiro e em seguida que lhe desse um pouco de água da moringuinha que ficava ao lado. Começou a falar, pedindo que Estela escutasse com muita atenção.

Do lado de fora do casebre, de cócoras no meio do sapê, Adamastor esperava para entender o que estava acontecendo dentro de casa. Não era hábito deles receber visitas naquele fim de mundo. De quando em vez, passasse um viajante, mesmo que apeasse para uma informação ou uma cuia d’água fresca, não se sentiria à vontade para ficar muito tempo. Isso foi um procedimento adotado por Petina e os três filhos, depois da morte de Miguel da Grota, mas apenas por insegurança. Afinal, o marido não era apenas o provedor. Era conhecido ao longe por sua valentia e intemperança, estava sempre armado e, certo ou errado, o fato é que sua presença era vista como garantia da segurança de todos. Adamastor era, dentre os filhos vivos, o mais puxado ao pai, e agora espreitava o movimento estranho que podia ver na entrada do casebre. De onde estava podia distinguir pelo menos um homem e uma mulher do lado de fora da porta, que pareciam empregados e estavam desarmados, porém, com certeza havia mais gente estranha dentro da casa, a deduzir pelo coche. Decidira esperar, mas os minutos passavam e seu instinto crescia, dentro dele o medo animal rosnava, fazendo com que segurasse com firmeza o trabuco, já pronto para qualquer eventualidade.

A cozinha do casebre era uma extensão externa, contígua à sala, feita de toras vazadas, também coberta de sapê, em que não cabia muito mais do que o fogão à lenha com fumeiro, a tina de madeira, uma prateleira e uma bancada à guisa de mesa. Ao reconhecer o irmão Neco preparando café, Adamastor imaginou que o almoço que viera da lavoura buscar seria servido aos visitantes. E como qualquer bicho do mato, essa perspectiva o deixava raivoso, na medida em que sentia que seu estômago estava de pleno acordo. Não seria justo que o filho mais velho de uma viúva ficasse sem a sua refeição. Trabalhava mais do que qualquer um naquela casa, na verdade o seu trabalho sustentava a todos, e ainda tinha que proteger a mãe, responsabilidade que os irmãos não demonstravam, a julgar pela presença daquela gente estranha e ameaçadora.

Petina falava pausadamente, pois sua respiração era curta. Com espanto, Estela a escutou fazer uma revelação que parecia sintetizar quase tudo em sua vida: As mulheres daquela família vinham ao mundo para lutar contra uma maldição, que as perseguia já há muitas gerações. Quando Dalva fugiu para escapar da ira de Miguel, ela já sabia da maldição, mas não tivera oportunidade de passar para Estela. Petina fez sinal com a mão para conter a reação da neta, que mostrava os olhos enormes e a boca entreaberta, e depois continuou explicando que: Há muito tempo, muito antes de haver essa gente se conhece hoje em dia, essas cidades e tudo mais, existia um lugar lindo onde habitavam diversos deuses da natureza. Nesse lugar uma sacerdotisa muito bela, chamada Estrela Dourada, representava uma deusa, adorada pelo povo daquela época, como a deusa da beleza. Essa deusa ia ali para receber os sacrifícios de pássaros e peixes, bichos de pena e escama, que lhe fazia a sacerdotisa, mas ela morava mesmo era nos rios, nas fontes e nos lagos, na chuva e no orvalho. Em todas as formas de água doce da natureza. O sacerdote, que também era o rei, desejava Estrela como mulher e queria transformá-la na sua sacerdotisa pessoal, a partir de quando morresse. Estrela não queria isso nem sua deusa o aprovava, no entanto o rei, sacerdote do maior dos deuses da natureza, era um homem velho mas muito poderoso, acostumado a conseguir tudo o que quisesse.

Numa bela madrugada, todos aguardavam os primeiros lampejos da manhã para começar o ritual de sacrifícios feito pelo rei, no qual várias virgens eram deitadas numa pedra grande, como uma mesa, onde eram então drogadas e possuídas pelo sacerdote, em volta das oferendas no centro da mesa, e depois sacrificadas em honra ao grande deus da fertilidade. Por ter descoberto que Estrela amava um homem do povo e por pensar que ela houvesse cedido a ele, o rei, sentindo-se humilhado, quis vingar-se dela. Então quando trouxeram as virgens para os sacrifícios ele pegou Estrela pelos cabelos e mandou que a amarrassem antes das demais. Aquilo causou grande estranheza, mas como era o rei, ninguém se atreveu a dizer uma palavra contra. Quando em prosseguimento ao ritual, ele chegou perto para possuí-la, Estrela se debatia desesperadamente, gritava que aquilo era uma violação e que sua deusa não o aceitava, porém seus gritos eram abafados pelos sons do ritual. E o rei, drogado pela bebida sagrada, se comprazia na sua vingança, porque para uma sacerdotisa, ser sacrificada como uma moça comum era o mesmo que uma humilhação, além do que, quando o sacerdote saísse do seu corpo, estaria simbolizada a perda de todos os poderes que a deusa lhe dera, e que assim passariam para ele.

Todavia, quando Estrela, já sem forças para resistir, sentindo-se sob o peso do homem e na iminência de ser submetida, gritou pelo nome do seu amado, oferecendo somente a ele a sua virgindade, um dos pássaros da oferenda voou subitamente do centro da mesa. Surpreso, o rei parou para entender aquilo por alguns segundos apenas, mas tempo suficiente para que Estrela lhe tomasse a lâmina sacrificial da cinta e a enterrasse toda no dorso do rei.

Todos viram a luz da manhã romper as trevas da madrugada, com mais força do que todas as tochas juntas. Os raios da manhã chegaram como um exército invencível, cravando em todos a perplexidade, o silêncio e o medo diante daquela situação inusitada. Pela primeira vez o ritual do grande deus não havia se concretizado. E no imenso silêncio que se fez, todos ouviram a maldição que o velho sacerdote lançou sobre Estrela, antes de morrer no lugar onde arrancaria os corações das virgens: Ela e todas as suas descendentes perderiam seus amados ainda jovens e haveriam de sofrer a vida inteira, até que a manhã virasse noite, sem que houvesse a tarde.

Depois de longos segundos de silêncio de parte à parte, Petina pediu mais água da moringuinha e Estela se demorou a entender, de tão ocupada que estava com os seus pensamentos confusos. Vendo-a assim absorta, sem saber com exatidão sob que peso na alma, a velha mestiça acabou de beber a água para perguntar à neta se sabia o que significava o nome de sua mãe. Prontamente Estela respondeu que Dalva era nome de estrela, assim como Estela. Petina balançou a cabeça aquiescendo e perguntou sobre o seu próprio nome. Surpresa porque era justamente sobre o que pensava naquele momento, Estela disse, com um sorriso tímido no semblante, desconhecer uma estrela chamada Petina. A velha também sorriu, e depois disse que embora ninguém mais se lembrasse disso, fora batizada com nome de Vespertina pela mulher de seu padrasto, que a encontrara ao entardecer na beira de um rio, quando ainda era um bebê. E vendo novamente aqueles olhos enormes da neta, logo acrescentou que ele era um rico senhor de terras, e tendo posto para correr um grupo de posseiros e índios das suas terras, no retorno para casa a encontrou justo no lugar em que a tropa ia atravessar o rio. Então apiedou-se do bebê vestido de panos rotos, e ordenou a um dos seus homens que o recolhesse e deixasse no vilarejo, por onde passariam antes de chegar na fazenda. A noite já se anunciava e podiam ver pegadas de um lobo à sua volta. Mas o mateiro não se lembrou, tomaram outro caminho que não passava pelo vilarejo e Petina acabou sendo criada na fazenda.

Varado de fome, um homem de arma em punho que chegara sem ser percebido perguntou rispidamente a Eufrásio e Branca o que faziam ali há tanto tempo. Como conhecia o jeito pouco sociável do irmão, Neco se apressou em pedir-lhe que se acalmasse, e em explicar que eram da casa de Estela. Mas como Adamastor não conhecia nenhuma Estela, Fedo veio para anunciar que a sobrinha deles viera visitá-los, que se chamava Estela, era a única filha de Dalva e Inácio, e que estava no quarto conversando com a mãe deles. Estupefato, o homem não conseguia acreditar e fez menção de ir ao quarto, mas Fedo explicou que haviam saído para que elas pudessem conversar a sós. Então Estelinha saiu do quarto, para dizer que sua avó estava chamando tio Adamastor. A velha lhe apresentou sua neta e depois lhe mandou que fosse ao riacho pegar todos os peixes de escama que estivessem no curral, para que comessem um bom guisado. Indisposto, o homem alegou só haverem bagres e cumbacas na armadilha, mas sua mãe foi definitiva, repetindo que fosse e fizesse o que havia dito. Para descontrair Neco fez graça, revelando que ela comia, havia meses, quase o tanto quanto abarrotaria um passarinho. Ao que Petina asseverou que naquele dia comeria, para o resto da vida. Então o homem se foi, naturalmente emburrado como era seu falecido pai.

Quando chegou, Adamastor mostrou a todos três traíras enormes, incomuns naquele rio fora da época das chuvas. Ainda estavam todos conversando e, ao saber dos peixes que ele trouxera, Petina sorriu dissimuladamente para Estelinha. Depois pediu que Neco fosse prepará-las e lhe disse que, ao final, usasse o caldo para fazer um pirão bem forte, acrescentando um punhado de manjericão bem lavadinho. Estelinha foi com Neco e, na cozinha, sussurrou ao ouvido dele que nunca vira colocar-se manjericão em peixes. Tio Neco, retrucou que também não, mas docilmente foi tratar das traíras no terreiro, à moda da roça, de modo a deixá-las sem espinhas e a casa sem mal cheiro. Ela quis acompanhá-lo e ele acabou levando-a para conhecer a lagoa, a pretexto de encontrar um pé de manjericão pelo mato.

CAPÍTULO X

Antônia nunca vira aquele homem e sentiu-se desprotegida, pois Homero não estava por perto e Eufrásio estava com a senhorinha, sabia Deus onde. Era um homem alto e magro, barbudo e maltratado, coberto com um manto cinza empoeirado, apesar do calor que fazia. Olhando bem, estava mais para um daqueles mendigos que vira uma vez na cidade, do que para um andarilho inofensivo. Ele lhe pareceu misterioso e queria falar com o dono da casa. Logo Zinha aproximou-se e Antônia sentiu-se menos insegura, mas disse que o dono da casa não estava. O homem sentiu que viera em hora errada e resolveu voltar para o seu caminho.

As duas ficaram olhando enquanto ele se afastava, até passar pelo portão e ganhar a estrada. Zinha chamou Antônia para dentro, mas ela, pensativa, gostaria de ter certeza de que fizera a coisa certa. Quando finalmente entrou em casa, foi a vez de Vó Mocinha perguntar quem era o tal desconhecido, de quem Homero havia falado. Ao ouvir de Antônia que o homem perguntara sobre o dono da casa e lhe dissera que não estava, também ela achou que talvez fosse melhor saber mais sobre ele e o que desejava, antes de deixar que se fosse. Agora era tarde demais, ele já se fora. Contudo, a certa distância o homem ainda observava a casa.

Sentada na beira do lago, era Estelinha quem observava. Sentia-se extasiada com a visão da tarde morna naquele recanto. Era como se já conhecesse o lugar de longa data, mas achava que isso se devia à semelhança com o lago da casa antiga, onde nascera e fora criada, onde sua mãe falecera e depois Inácio se acidentara à sua procura, antes de lhe contar tantas coisas para morrer em seguida. Parecia que de repente todos queriam lhe contar alguma coisa, algum pedaço da mesma estória, e que, de alguma forma, ela estaria destinada a montar as peças, para só depois poder entender o que significava aquilo tudo. Embora a topografia fosse algo diferente, havia ali a mesma aura. A mesma sensação indevassável de que o passado, o presente e o futuro, simplesmente não existiam, como se as coisas e as pessoas, incluindo seus sentimentos e atitudes, pertencessem a uma linha de sucessividade atemporal, em que suas auto-identidades deviam perder parte do sentido pessoal, para que pudessem ser compreendidas dentro de um enredo que transpassava em muito a vida cotidiana de cada um, tomada pelo que era compreensível e previsível. Perguntava-se, diante daquele espaço místico maior que a sua materialidade, povoado de identidades reconhecidas apenas pela sugestão do seu subconsciente: O que viria agora? Qual seria a próxima fatalidade, ou a próxima descoberta, a ser encaixada naquele jogo de incertezas?

A superfície absolutamente imóvel da água, se apoderava do movimento de tudo o que havia em volta, a própria sucessividade lhe parecia pertencida, na medida em que o lago oferecia o seu reflexo como alternativa de entendimento, fantasioso para a mente temporal. Buscando-se da alma a sua visão mística, o corpo etéreo do lago, plácido, morno como sangue, vivo, parecia sugerir que os reflexos não vinham de fora, mas de dentro, da sua profundidade, que assim já conteria todas as coisas mesmo antes de acontecerem. Quisera ser como o lago. Se pudesse, afundaria para sempre naquele espelho tudo o que lhe fazia mal, tudo o que lhe perseguia a alma, a sua culpa e o seu próprio reflexo envelhecido de tristeza e remorso, para dele retirar a própria alma regenerada, feliz e luminosa, a ponto de não precisar da luz do sol para receber o que viesse de peito aberto. Sem medo de ser manhã e depois noite, sem passar pela tarde.

Tio Neco veio tocar-lhe para que voltassem, arrancando-a dos seus pensamentos. E para responder a ela sobre o que havia de tão especial naquele lugar, acabou por lhe contar os acontecimentos e equívocos que culminaram com a fuga de Dalva, e logo depois as mortes do seu tio Lúcio e do seu avô Miguel. À mente ávida de Estelinha, tudo parecia uma sucessão de enganos fatídicos, como o fora matar seu próprio amado. E se a estória de Vó Petina for exata, uma sucessividade imensa, repleta de humanidade e susceptibilidade, teria nascido de outros enganos de parte de outras pessoas. Ou não seriam outras? Estela não descartava esta possibilidade, mas julgava que as identidades não eram tão importante, pois que o mais importante, se possível fosse, seria interromper a sucessividade amaldiçoada, arrancá-la da vida das pessoas, fossem quem fossem, e devolvê-la ao fundo da água, de onde, agora, fazia sentido para ela que houvesse partido.

Seus tios comeram repetidamente, a ponto de reconhecerem que o inusitado tempero de manjericão tornara o pirão delicioso. E garantiram a Estelinha que nem quando a mãe deles era jovem, jamais viram-na comer tanto pirão. Sobre a mesa pequena e tosca encostada numa das paredes da sala, restara somente as gamelas vazias e o pequeno arranjo de margaridas amarelas e flores de manacá, que tio Neco se esmerara em arranjar, sabendo serem as preferidas da mãe. Ele sabia de tudo o que ela gostava. Mais tarde, quando já escurecia, uma estrela tangendo a linha do horizonte chamou a atenção de Estelinha. Era sem dúvida a estrela vespertina. Estelinha sentiu-se invadida por uma felicidade súbita, que fez com que corresse impulsivamente para o quarto de Vó Petina e lhe contasse repetidamente como aquela estrela era tão grande e linda. Só depois de cansar de repetir seu deslumbramento e esperar em vão ao menos um maneio da sua cabecinha já branca, Estelinha percebeu o tombo no abismo em que se sentia naquele momento. Nunca mais ela lhe contaria as tantas coisas que haviam ficado para serem contadas depois. Que golpe duro... Estivera distante tantos anos e Vó Petina estava bem ali, guardando como um livro antigo todas as certezas que lhe faziam tanta falta. E justo então, que a descobrira e descobrira o seu saber, conviera a Deus levá-la assim. No fundo aquela era uma visão bela, o corpo gasto, a pele ainda arrepiada pela frieza da morte, e os seus olhos, que durante toda uma vida haviam visto o mundo ávaro dos homens com generosidade, haviam se fechado sozinhos, e felizes. Aliás, feliz havia de estar o seu estômago, depois daquele repasto. No cômodo reinava uma aura de serenidade, que não deixava brecha para nenhuma revolta.

Entretanto, viu-se que tio Neco era realmente o filho que se tornara mais apegado à mãe, embora todos, ao jeito de cada um, cuidassem dela. Ele reagiu como se não pudesse aceitar o fato, como se não fosse previsível. Estava evidente que seus irmãos não partilhavam o desespero. Estela percebeu que, embora nenhum deles houvesse se casado e constituído outra família, tio Neco talvez não o fizesse jamais. Havia absorvido o caráter da mãe de tal modo que, como ela, exilara-se para dentro, tornando omissa grande parte da sua natureza, dos seus potenciais e das suas exigências, substituídos pelos dela. Então para ele, embora os irmãos não o compreendessem ou não aceitassem, aquela não era apenas a perda de um ente querido, mas sim de um conjunto de referências que dava sentido à sua auto-estima. Sem ela, quem seria ele?

Acomodado num tronco deitado que, como ele, fora um dia uma árvore forte e cheia de vida, o estranho homem ainda tinha os olhos no casarão. Não quisera que a empregada que o atendeu se sentisse admoestada, porém, sua intuição o mantinha preso ali. Em algum lugar próximo deveriam estar as respostas de que sentia necessidade. Àquela distância não seria percebido pelos que estavam dentro da casa, mas dali poderia, se quisesse, deduzir o que faziam a julgar pelas suas sombras, projetadas nas cortinas pelas lamparinas. Porém não era o que pretendia. Na verdade não sabia ainda o que pretendia, apenas seu íntimo lhe dizia que seria bom se estivesse com eles. Fazia uma verdadeira peregrinação nas brumas da sua memória, mas não conseguia encontrar elementos que estabelecessem uma relação lógica entre ele e o casarão.

Não dispunha de um relógio, mas podia ter certeza de que a noite já ia alta. A posição das estrelas no céu límpido, de luar ausente, não deixava dúvida a esse respeito. Ademais, seu estômago jamais perdia a noção de tempo. Naquela noite não teria nem mesmo a compania da lua. Enfiou a mão na sua algibeira de couro cru e gasto, na esperança fugidia de encontrar alguma sobra que pudesse comer. Encontrou uma bolacha de milho que já se esfarelava e, com todo o cuidado, retirou o que ainda não era farelo para comer. Não era muito, na verdade era quase nada, mas àquela hora ninguém mais o receberia e ainda menos se prontificaria a lhe arranjar uma refeição. Num sache de veludo apalpou duas moedas, mas naquele momento eram inúteis. Seu fiel e voluntarioso estômago teria que se contentar com aquele pouco, pelo menos até que clareasse o dia. Em pensar nisto, teria que decidir o que faria quando viesse a manhã, pois ficar ali indefinidamente com certeza não daria um bom resultado. Esfregando as moedas uma na outra para distrair-se, pensou que talvez devesse procurar outros casarões naquela região, antes de voltar definitivamente para a cidade. Possivelmente, sua memória funcionasse melhor noutro lugar. Puxou o manto para cobrir a cabeça e acomodou-se melhor para tentar dormir um pouco.

CAPÍTULO XI

Preocupado com o trabalho nas plantações, Adamastor não via porque prolongar por mais tempo aquela situação desagradável. Não tinham parentes nem mesmo amigos próximos, assim que Fedo chegasse com a rezadeira, dona Filó, ela que encomendasse logo a alma de sua mãe e pronto, ninguém poderia fazer mais nada além de enterrar seu corpo ao lado do pai. Ele pensava no seu silêncio emburrado, que o único bem a ser herdado não poderia ser repartido como fariam com uma abóbora, entretanto havia muito trabalho. Com certeza seus irmãos não aceitariam trabalhar como empregados, não iniciariam sozinhos seus próprios plantios e ele, Adamastor, não se sentia obrigado a sustentá-los depois da morte da mãe. Neco e Fedo não tinham capacidade de produzir e comercializar o suficiente para si, não tinham empregados nem sócios, nem conheciam comerciantes. Adamastor já se preparava para o que haveria entre eles depois do enterro. Teria que obrigá-los a decidir o que prefeririam para si próprios.

Abraçada a Branca, com Eufrásio por perto, Estela não se cansava de olhar o corpo da avó, enrolado em lençóis dentro de um caixão rústico de toras verdes, amarradas com cipó, com o fundo forrado com barba-de-velho, ramos de alecrim-de-vassoura e folhas novas de canela. Em seu íntimo, aquilo lhe parecia menos um caixão, dos que já havia visto, e mais uma gaiola. Ela estava como uma juriti dentro de uma gaiola de bico-de-lacre. Vó Petina parecia ainda menor, de tão espremida. Apenas seu rosto e suas mãos eram visíveis fora dos panos. A expressão fisionômica permanecia bela, porém para Estela mais lha atraíam as suas mãos.

Tio Neco espetou flores entre as toras, em volta da caixa e em cima da tampa, que assim ficaria parecendo de vez com uma bela touceira de mato, quando fosse fechada. As mesmas flores que na véspera haviam composto a rara impressão de fartura da mesa de refeição, agora serviam de enfeite para os restos guardados na caixa fúnebre, atribuindo-lhe um ar de graça e pureza. Quando dona Filó chegou, apesar do seu jeito severo e aparência rude, trouxe um delicado amarrado de lilases-do-campo bem claros, quase brancos, que ela teve o esmero de ajeitar entre os dedos da falecida, antes de começar o seu singelo ritual.

O homem parou como se não houvesse visto uma parede que estivesse à sua frente. Um detalhe que não fora percebido a não ser pelo seu subconsciente agora parecia algo muito familiar: No jardim de um casarão que já havia ficado para trás, existia uma escultura que parecia representar a deusa Vênus. Em princípio relutou em caminhar de volta, porém não conseguiu resistir ao seu íntimo. Dirigiu-se ao portão principal e chamou por alguém de casa várias vezes. Como não obteve resposta, empurrou com força o portão de ferro, pesado e emperrado por falta de uso. Preocupado com ser tomado como um ladrão ou coisa parecida, foi entrando devagar, como se procurasse por alguém conhecido, até convencer-se de que ninguém viria lhe dar atenção. Diante da estátua obteve clara certeza de que já estivera naquele lugar, apesar da sujeira encardida que a deusa ostentava. Naquele casarão parecia vagar algo, com um poder de atração que ele não podia evitar. Sua alma confusa tinha sede de encontrar alguma coisa, que não lhe trazia ao consciente, e ele foi entrando pelo corredor lateral até chegar aos fundos da casa. Sentia-se como se houvesse bebido, ou ingerido alguma droga, em quantidade suficiente para lhe turvar a memória e tornar seu raciocínio claudicante.

Para além dos caramanchões que encontrou nos fundos, que formavam um conjunto em semi-círculo, viu uma boa extensão de terra. Entretanto estava agora ressecada e cheia de mato, como também os caramanchões e os jardins da frente. Não poderia haver por lá nada de interessante. A casa sim o atraía. Era alta, portentosa, até mesmo vendo-se dos fundos. Estava toda fechada, pelo jeito havia muito tempo, e um silêncio impressionante parecia ser seu único e pouco sociável habitante. Por um momento, o homem julgou a vida muito injusta. Enquanto ele dormia toda noite ao léu, o proprietário daquele imóvel imenso dormia noutro lugar. Mas logo em seguida achou que, ao contrário, devia sentir-se mais feliz do que ele, já que talvez tal senhor estivesse morto e, nesse caso, com certeza morava num lugar bastante apertado e abafado. Então ele reconheceu que poder tomar qualquer direção e respirar todo o ar do mundo eram coisas maravilhosas. A rigor, não precisava de um casarão daqueles. Não poderia mesmo carregá-lo nas costas, nem tinha parentes para que o ocupassem.

Mesmo usando de toda a sua força, não logrou abrir o portão dos fundos. Viu que as laterais eram guarnecidas de muitas janelas altas, mas logo desanimou, crendo que, além de fechadas, tudo por ali estivesse emperrado. Embora seu coração lhe implorasse que permanecesse e continuasse sua busca, a sua razão estava esgotada, e a medida que se afastava pela estrada convencia-se de que fora um tolo, por deixar-se arrastar daquele jeito. Correra um risco desnecessário. Se o dono aparecesse e o denunciasse à polícia, àquela altura talvez já estivesse atrás das grades. Não, era preferível a liberdade, afinal, mistérios e segredos podem prender uma alma muito mais que correntes de ferro, que só prendem membros e pescoços. Sua vida toda já era um enorme mistério. Para que mais?

O caminho de volta parecia muito maior, apesar de ser o mesmo da ida. Não conseguira convencer nenhum dos seus tios a ficar por um tempo em sua casa e isso preocupava Estelinha, porque achava que eles poderiam se desentender, sem a figura sábia e respeitável de Vó Petina. Queria que a memória dela fosse o bastante para evitar problemas, mas não tinha certeza disso. Tio Adamastor lhe parecera insensível, certo de que precisava menos do que os seus irmãos. Assim seguia o pensamento dela, distante da estrada de terra em que o coche saculejava, até que começou a sentir-se mal. No início foram apenas náuseas, tidas como naturais da viagem, mas logo se transformaram em tonteiras e sensação de desfalecimento. Branca, sentada ao lado, acabou percebendo e perguntando o que queria que fizesse. Mas sua senhorinha já tinha a visão escurecida e o controle motor comprometido. A negrinha gritou para que Eufrásio surrasse o animal, pois precisavam chegar o mais rápido possível. O homem fazia o possível para não perder o controle do andaluz, porém as condições do caminho eram muito difíceis. Senhorinha desfaleceu por completo em pouco tempo.

Sob a enorme pressão da situação, embora acostumado a esperar e atender as ordens dela, Eufrásio tomou coragem e arriscou tomar uma decisão por sua conta. Logo à sua frente, havia uma serrinha. Se subisse e descesse, do outro lado poderia pegar uma estradinha ainda mais estreita, quase um picada, mas que os levaria direto para a única cidade próxima, onde sabia que morava um dos médicos de sua senhorinha, o doutor Bustamante. Teria a vantagem de pô-la mais rapidamente aos cuidados do médico, mas estava assumindo os riscos de atravessar a serrinha, e forçar ainda mais o coche e o animal. Faria todo o possível para não quebrar, ou demorariam muito mais e não queria ter essa culpa.

Na calçada onde se sentara, em frente à bodega, o homem esperava pela senhora que lhe atendera e prometera lhe trazer alguma coisa para comer e beber. Mas não estava pensando no que ela poderia trazer. Na verdade, estava convencido de que conhecia aquela senhora, apesar dela não ter demonstrado a mesma impressão. Ela parecia muito envelhecida, mas alguns traços eram inequívocos. Logo ela voltou com uma gamela, onde havia um bom pedaço de pão, um peixe e umas bananas, e uma caneca de leite avinhado. O homem agradeceu e teve vontade de tentar descobrir de onde a conhecia, mas depois desistiu, com receio de ser mal interpretado, parecendo ingrato ou inconveniente. Contudo, antes que ela se virasse, uma garotinha veio correndo dos fundos da bodega, pelo lado de fora, e com um sorriso banguela e simpático disse a ela que seu pai a estava chamando, tendo-a tratado por tia Marina. O homem então teve certeza de que realmente a conhecia. Enquanto comia ali mesmo na calçada, ele lamentava a desgraçada da sua memória. Quem era Marina?

CAPÍTULO XII

O sorriso de Vó Mocinha ia de uma orelha à outra, já Maria Quina só sabia sorrir com os olhos enfiados no chão. Mas elas ainda não sabiam que Estela, deitada em sua cama, não podia ver mais do que os seus vultos muito turvos. Senhorinha tentou sentar-se na cama, porém logo se deu conta de que também estava muito fraca. Branca chegou às pressas para dizer que não poderia se levantar ainda, porque eram ordens do doutor. Estelinha sentia-se confusa, pois a última lembrança que tinha era a da partida triste da casa de sua avó. Seus olhos marejaram e aos primeiros soluços dela todas três se acercaram da cama, para confortar sua senhorinha. Por natural hierarquia, foi Vó Mocinha quem começou a explicar o que havia acontecido, entretanto, alertando previamente de que o doutor a havia proibido de ter emoções muito fortes, sob pena de se perder seu trabalho de quase três meses. Senhorinha levou um susto tão grande que tentou levantar-se de novo, e de novo voltou a largar-se na cama. Estava impaciente, queria saber logo o que estava acontecendo. A velha negra então retomou o fio da explicação.

Estelinha sofrera outra crise da sua doença, quando voltava da viagem. Por felicidade, segundo o doutor, Eufrásio salvara a sua vida levando-a diretamente para a casa do médico, na cidade. Ela chegara lá desacordada e como o doutor já tinha conhecimento do seu caso, prestou-lhe um primeiro atendimento e depois solicitou ajuda a um outro médico, tido como especialista em casos como o dela, e que estava por uma temporada a passeio, numa fazenda próxima. Havia se passado mais de dois meses, o doutor Amon só respondia que Estelinha estava em coma e, como ninguém ali sabia que doença era essa, apenas faziam exatamente o que lhes era recomendado. Contudo, agora achavam que podiam confiar nele.

Senhorinha não conseguia dizer uma palavra, nem saberia o que dizer. Aquela era uma situação nova, pois das outras vezes não perdera a consciência por tanto tempo, nem tão pouco a haviam posto naquela escuridão. Vó Mocinha então continuou, contando que há dois dias passados ela já dava bons sinais, mas ainda não falava coisa com coisa, nem abria os olhos. O doutor mandou dar pela sonda uma nova receita de sopa coada, mais forte, retirou dois dos remédios, e finalmente ela voltara a si, para a alegria de todos. Precisava dar ao doutor a boa notícia, ele estava vindo a cada três dias, mas ela não queria esperar por ele. Afinal, fora muito dedicado, inclusive se comprometendo a não voltar para a sua casa, enquanto não se tivesse uma solução para a tal doença. Estelinha concordou e mandou que enviasse Homero assim que amanhecesse, pois queria conhecer o tal médico e lhe demonstrar sua imensa gratidão, mas que tratassem de acender logo ao menos uma vela ou candeia. Então espantou-se, porque nem fizeram isso nem lhe disseram uma palavra. A felicidade das três havia sumido de repente. Tendo finalmente compreendido que sua querida senhorinha, embora lúcida, não estava enxergando, Vó Mocinha tentou acalmá-la alegando que já havia uma melhora muito grande, e afirmando agora a sua fé incondicional no doutor.

No dia seguinte, o dr. Bustamante chegou logo cedo. Após um exame rápido, se disse muito satisfeito com o progresso da paciente, porém não quis arriscar nenhuma previsão. Diante da insistência dela, explicou que, apesar da medicina estar avançando a passos largos, acreditava que, no futuro, os médicos poderiam contar com recursos tecnológicos desenvolvidos para aumentar a precisão do diagnóstico. As drogas podem parecer miraculosas em muitos casos, mas administrá-las a partir de um diagnóstico impreciso também pode ser fatal. No caso dela, como no de outros males ainda desconhecidos, o diagnóstico é muito difícil e o médico não quer correr o risco de perder nem a paciente nem a sua própria reputação. Então pediu a ela que tivesse paciência e pensamento positivo, pois estivera à beira da morte e melhorara. Mas tudo que se podia ter como cientificamente certo, era que a crise partia de um processo que associava fortes impactos emocionais a desequilíbrios fisiológicos súbitos, que a debilitavam drasticamente. Durante todo aquele período o dr. Amon a houvera mantido viva, sem usá-la como cobaia de drogas agressivas. Ele era mesmo um grande médico.

Ouvindo falar nele, Estelinha quis saber quando viria vê-la. Entretanto, para sua decepção, o velho médico explicou que precisara retornar para casa, já que a nova situação o permitia. Porém, que deixara consigo instruções completas para o caso dela e ficara de voltar, assim que conseguisse por em dia seus compromissos com outros pacientes, prejudicados que haviam sido pela permanência mais prolongada. Estelinha aceitou a justificativa por absoluta falta de opção, mas mostrou-se triste. Queria muito conhecê-lo pessoalmente, mesmo sem poder vê-lo, ao menos poderia agradecer.

Com o passar dos dias, que eram para ela noites também, a melhora se fazia sentir na disposição física, entretanto, sua visão não voltava e isso a obrigava a uma imobilidade torturante. Branca, Vó Mocinha e Quina estavam sempre à sua volta, mas ela desejava fazer diversas coisas que não podia delegar a ninguém. Além do que, precisava lutar psicologicamente contra a possibilidade da cegueira se tornar uma seqüela irreversível, pelo menos até que se restabelecesse a ponto de poder viajar, para ouvir a opinião de um especialista de olhos, inexistente na região em que morava. Havia agora uma solidão ainda maior, que não mais se restringia às noites de sono desregulado e que se manifestava em forma de desânimo.

Mas numa daquelas manhãs em que Senhorinha teimava em não pegar sol na varanda, apesar da exigência médica, foi duplamente surpreendida justamente pelo dr. Bustamante. Não esperava a chegada do médico, mas surpresa maior foi o que ele lhe disse, como se estivesse contando uma piada: O Bustamante relatou que estivera na cidade há alguns dias, que lá soubera do caso de um mendigo desconhecido, que fora escorraçado do lugarejo por iniciativa do dono da bodega, sob a acusação de estar importunando uma senhora respeitável. Estelinha quis saber o tal mendigo fizera, mas sem dar muita importância ao caso. Entretanto, quando o médico disse que a senhora respeitável fora dona Marina, então Senhorinha reagiu, aprumando-se na cadeira de balanço. Bustamante explicou que o louco abordara Marina num momento em que ela estava sozinha na bodega. Ao ouvi-la pedir que não incomodasse os fregueses e fosse embora, ele a deixou assustada por tratá-la pelo nome. Em seguida ele explicou que ouvira a menina chamá-la assim e que não queria assustá-la, que era muito grato pelas refeições que recebia, e que sairia assim que ela lhe desse alguma informação sobre uma conhecida em comum. Naturalmente, Marina quis saber de quem se tratava mas, por receio do desconhecido, mentiu que não sabia nada sobre a tal pessoa quando ouviu seu nome. O louco então deixou que lhe caísse a máscara de bonzinho, e passou a exigir o que antes pedira tão educadamente. O vozerio chegou aos fundos e, vendo o maltrapilho todo sujo dentro da sua loja, o bodegueiro tratou de pô-lo de porta afora. Mas mesmo da rua, o homem ainda insistia. Então juntaram-se vários para escorraçar o estranho, como um cachorro pestilento. Para responder sobre quem o mendigo insistia em que Marina lhe desse conta, o Bustamante disse, fazendo graça que, por uma incrível coincidência, pois era um nome muito raro, procurava uma tal de Estela.

Senhorinha emudeceu e recostou lentamente a cabeça no espaldar de palha da cadeira. Tentando falar de coisas que fossem mais agradáveis à sua paciente, o médico contou várias outras coisas. Depois, convencido de que não tinha um assunto capaz de melhorar seu humor e retirá-la do silêncio em que se refugiava, o Bustamante alegou que precisava atender outras pessoas também. Mesmo muito além da partida do seu médico, Senhorinha continuava muda, com a alma soterrada ao peso de sentimentos confusos. O homem por quem ela mais desejava ser procurada, não podia ser um mendigo. Nem mesmo um príncipe. Estava morto. Que ironia enorme... Queria tanto que fosse aquele homem, ainda que sujo e maltrapilho, por maior loucura que isso pudesse parecer. De madrugada, sentada em sua cama, lembrou-se de que Branca lhe contara sobre alguém que também havia lhe procurado, e fora despachado por Antônia. Seria o mesmo? Mas o que um mendigo poderia querer, além de comida ou dinheiro?

CAPÍTULO XIII

Semanas se passaram até que Estelinha começou a sentir alguma melhora da sua visão, contudo, ainda muito turva e alternando momentos de diferentes graus de nitidez. Em seguida, além dos vultos das pessoas com as quais convivia e nas quais confiava, passou a ver outros vultos. Destes, não podia duvidar de que os via, mas eram estranhos, não podia confiar e sentia medo de alguns deles. Ela dizia então a si mesma que não sabia o que era pior. Para não impressionar as pessoas não contava nada, mas aquela mistura de vultos era terrivelmente confusa em certas ocasiões.

A princípio desconfiando mas depois convicta, para sua preocupação, percebeu que os empregados lhe escondiam alguma coisa. Perguntando a eles diretamente, suas respostas eram claramente evasivas. Conhecia muito bem cada um deles e, por isso mesmo, às vezes temia descobrir. Fosse lá o que fosse, era algo capaz de despertar a preocupação deles, um sentimento de proteção. Até que numa noite, quando se preparava para deitar-se, Branca trouxe, como sempre fazia, uma xícara de leite morno e os remédios prescritos. Sob o peso da expectativa de mais uma madrugada mal dormida, a lhe torturar a alma, Senhorinha resolveu ir às últimas conseqüências e manteve a negrinha sob pressão, até que ela acabou por lhe contar o que preocupava a todos: Um homem de má aparência havia sido visto nas imediações do seu casarão, por diversas vezes. Por duas vezes Homero saíra, a pedido de Vó Mocinha, para ir ver de quem se tratava e o que queria, mas o perdera de vista. Antônia garantia que era o mesmo que ela havia despachado e, embora os demais não o pudessem reconhecer, todos achavam que se tratava do tal maluco, que fora banido do vilarejo. Com certeza era por isso que ele evitava ser abordado escapando dissimuladamente pelo mato.

Então Estela reconheceu que seus temores por descobrir o tal segredo eram fundados. Imaginou que, como não saía de casa, se ele quisesse teria que vir a ela, e seria muito bom se ele resolvesse fazer isso como todo mundo, entrando pela porta da frente. Sua casa era grande, o terreno muito maior, e não tinha empregados para se prevenir de tantas possibilidades. O pior de tudo: Devido à deficiência da sua visão, só poderia perceber a presença dele quando já estivesse perto demais. Entretanto, nas semanas seguintes o homem reduziu a freqüência das suas aparições, como se houvesse feito um recuo estratégico. Ao menos era nisso que Estelinha acreditava.

Todo aquele conjunto de preocupações já faziam reverter o seu quadro clínico. Os dias se sucediam sem que ela pudesse avançar um só passo, na direção das respostas cuja falta ou imprecisão atormentavam sua mente. Como se não bastasse, na noite anterior o mais cruel personagem dos seus pesadelos havia reaparecido. Depois de longa ausência, ele voltara. Já estava para amanhecer quando Senhorinha pegou num sono pesado, como um desmaio súbito. E logo viu que ele não viera para as suas brincadeiras de mal gosto. Como se a abstinência das suas maldades o houvesse deixado sedento do sofrimento dela, mesmo depois da senhorinha aceitar submeter-se às suas vontades promíscuas, não conseguia saciá-lo. Finalmente, quando o sol já seguia alto, o cão também reapareceu. Minutos depois Branca entrou no quarto fazendo graça, dizendo pensar que sua senhorinha só despertaria no dia seguinte. Porém logo percebeu que não havia humor para brincadeiras e que sua senhorinha transpirava abundantemente. A negrinha não imaginou o quanto, naquele momento, ela gostaria de dormir assim, um sono restaurador, mesmo que demorasse vários dias, e desde que não tivesse que se submeter de novo a tudo aquilo. Mais uma ironia, dizia Estela a si mesma, passara tanto tempo inconsciente em decorrência da última crise e, ao despertar do coma, não sentiu o tamanho cansaço que aquele miserável era capaz de produzir na sua alma humilhada, em uma única manhã de sono, aceita como um prêmio às avessas, ingenuamente, pela noite em claro. Estelinha via nisso mais uma faceta da maldição revelada por sua avó: Era preciso submeter-se para poder tomar-lhe o punhal. Era necessário expor-se. E sendo assim, a expectativa mais terrível não seria a de expor-se, nem mesmo submeter-se, mas a de falhar.

O rastejar dos dias era, ao menos sob um aspecto, vantajoso para a senhorinha, pois serviram para que ela tornasse definitivamente concreta a idéia de reverter aquela situação. Estava determinada a sair de baixo dos próprios medos, convencida de que ou ela acabava com todo aquele sofrimento, ou seria ela a se acabar. Assim, quando numa manhã sentiu-se despertando e de imediato percebeu que sua visão havia melhorado consideravelmente, não quis esperar por uma melhora maior, pois de outras vezes isso já havia acontecido mas fora por muito pouco tempo. Precisava aproveitar aquela oportunidade como se fosse a última. Não sabia exatamente o que lhe seria exigido a mais, ou se sua determinação tornaria tudo ainda mais difícil, porém agora estava definitivamente decidida. E a primeira coisa a fazer, segundo a sua intuição, era voltar ao salão. Sentia como se algo a arrastasse para lá, como se estivessem naquele amontoado de energias antigas todas as respostas que lhe faziam falta. Estelinha chamou por Branca, mas ela não veio. Chamou de novo, gritou por duas vezes e, para a sua perplexidade, ninguém veio lhe atender. De repente lembrou-se de que na véspera havia incumbido Antônia e Zinha de fazerem compras na cidade e Eufrásio de levá-las, e exigira de Vó Mocinha fosse com elas para se distrair um pouco, já que a velhota se recusava a deixá-la com Branca e Homero apenas.

Resolveu então que não esperaria pelo retorno deles, nem pela presença de Branca. Mais tarde seria tarde demais caso a cegueira voltasse. Ainda em trajes de dormir desceu os segmentos da escada que dava na sala de estar. Mais uma vez gritou pela negrinha em vão, então desistiu dela e tomou o caminho do salão dos fundos. Ao segurar as maçanetas para abrir as portas largas do salão, sentiu uma corrente de ar frio alisar as suas canelas. Seria um tipo de aviso? Talvez, mas ela queria enfrentar o medo, por isso entrou e fechou a porta por dentro. Teve a impressão de que a cegueira acabara de voltar, mas refletiu que precisava apenas esperar um pouco, logo seus olhos se acostumariam com a penumbra causada por estarem fechadas as cortinas e janelas do salão. Para ter um pouco mais de luz abriu uma das bandas da porta, porém desistiu, porque aquele vento gélido continuava do lado de fora esperando uma oportunidade. Achou que a escuridão era menos pior, afinal, já estava acostumada a ela, havia tempos fazia parte do seu cotidiano. Onde estaria Branca? Nesse momento precisava muito da sua companhia, e podia precisar dos seus olhos perfeitos.

CAPÍTULO XIV

Seu olhar intenso e turvo vasculhava o empoeirado depósito, amontoado imenso de lembranças. Sua memória também clareava aos poucos. Sabia agora que em algum lugar, de propósito, ela escondera um segredo... E agora? Em breve, muito em breve, talvez não fizesse mais diferença. Nenhuma esperança, nenhuma crença faria sentido se a crise voltasse, desta vez em definitivo. Na morte todas as coisas perdem o sentido. O sentido de morrer se basta. Talvez em breve... Muito em breve...
 
Uma multidão de recordações ia e vinha, vultos tangiam seu corpo ao passar, roçavam seus braços, os bicos dos seios. Mas só queriam distrair sua atenção, para que o tempo passasse mais rápido. Implacáveis recordações. Não era possível escapar, não havia para onde correr, a não ser para outras lembranças. Elas eram completas, dominavam o sensorial. Eram visíveis, tinham perfume e sabor, alarido de conversas, canções e choros de criança, a umidade era um abraço frio e abusado. Podia sentir suas entranhas, ao sabor do assédio de qualquer pequeno objeto que, mesmo quebrado, entretanto, não era inútil para despertar sensações. Sua intimidade tão guardada, era agora devassada. Podia sentir o esgarço desesperador de um parto e, no desvario subseqüente, a levitada paz abraçada dos seus líquidos vaginais, sem direção e sem tamanho, no fundo de um abismo paradoxal de prazer e medo. Uma ironia do destino, mas tão dissimuladamente viril e sedutora como lembrança. Por que interrompê-la? Antes, quando era jovem e belíssima, não o quisera o suficiente para romper todas as barreiras, e agora que nenhuma barreira fazia sentido, tudo parecia irremediavelmente perdido.
 
Mas desgraçadamente um corpo jazia. Dentro de uma ciranda de velas chorosas repousava, fora do alcance das mãos, a sua esperança de ser feliz. Dele vindo, perto pousou um passarinho, uma espécie de amigo antigo dela, mas de poucas falas. Lindo, de penas lilases, de olhos vivazes, sem peso, frágil. Quanto tempo passou desde a última vez que o vi... Daria tudo, para reconhecer de quem era o corpo. Via que estava em sossego, mas parecia guardar uma aflição contida. Seus medos lhe eram familiares. A massa dos minutos também assolava seus olhares. Vagos olhares diminutos, ensimesmados como os dela própria. Deus de misericórdia! De quem é esse corpo?!
 
Ouviu passos corridos do lado de fora, quebrando o silêncio quase tangível. Do nada, surge um cão malhado de pardos, escuro e grande, o mesmo de sempre. Late e rosna, enruga o focinho e mostra os dentes para a parede, onde não havia porta. A visão do animal feroz e tão próximo a assusta, rouba a voz. Mas um sentimento de segurança aflora, pois que rosna para fora. Mesmo assim, preferia que houvesse uma janela aberta... Esse pensamento, entretanto, faz o cão voltar-se subitamente. Agora late e rosna de frente! Na imobilidade do pensamento, até o tempo não mais se escoa. O medo, enfim se assenhora, se inconha... E empeçonha a alma. O medo é a humilhação da fé. A morte da mente antes forte. Ah, meu Deus, eu não queria sentir medo... Que vontade de ceder à sedução da morte. Deixar que se me esvaia o gozo fúnebre, ébrio de si próprio nesse inverno. A possuir-me, o alívio eterno... Onde está o cão?
 
Um movimento sutil, percebido no canto dos olhos. Um livro amarelado e grosso sobre um criado-mudo, ao lado da luminária à óleo, deixado aberto em duas partes quase iguais. Uma e outra folha, de vez em quando passam de um lado para o outro, espalmadas e lentas como isentas mãos de uma última expiração relembrada, de alma arrebatada por uma brisa fugida do mar. Uma corrente de ar... Então há uma entrada e uma saída! Então há vida! Mas onde? Onde? Meus Deus, tenha piedade de mim... Onde, se está tudo fechado?... Ponde Tua mão sobre mim... Não quero mais essa busca, nem segredo nenhum. Quero uma janela, de luz brusca, rasgando-me os panos que por tantos anos, me vestiram de perda e saudade. Mas não quero que seja meu aquele corpo esquálido, sem um sonho, e tão pálido.
 
A multidão de vultos foi ressurgindo aos poucos, em pequenos grupos, dos amontoados de objetos, vagares tantos e tão meros. Porém agora eram silenciosos, severos. Não diziam uma só palavra e seus semblantes mostravam-se diversos, entre a complacência e a indignação. Uns algo amigáveis e voluntariosos, porém outros pareciam fazer uma cobrança com impaciência. Foram se encaminhando na direção do criado-mudo, até completar novamente o espaço, mas deixando um corredor livre, que começava aos seus pés e terminava no livro aberto sobre o móvel antigo. Os vultos se encaixavam como um jogo de quebra-cabeça que dispensasse um jogador. Havia uma luz tênue, que não vinha da luminária. E suas páginas, em movimentos irregulares e calmos, continuavam mudando de lado, como se quisessem romper o limiar de um segredo. O cão também reapareceu, por entre os vultos, e postou-se sentado ao lado do móvel. Uma visão soberana, o livro parecia ser o centro do universo. Um dos vultos puxou o lençol empoeirado que cobria outro móvel, por trás do criado-mudo. Era uma penteadeira em estilo rococó, provida de um espelho vertical alto. Como um murro na mente, veio a lembrança da arma. Uma teia de rachaduras no espelho, uma cadeia, o esforço inumano para se libertar de lembranças agônicas demais para poder raciocinar. Cansaço, esgotamento. Em breve a aranha há de chegar e inocular a morte... E o seu gozo eterno.
 
A imagem refletida no aço do espelho, como outro quebra-cabeças, este da sua própria imagem, revelava o amor e o bem amado. O amor-próprio estilhaçado e uma partida para o sempre. Nunca mais serão os mesmos... Uma mulher de meia idade, com os cabelos agrisalhados e a camisola de seda em desalinho, não escondia a maior das perdas. Com a própria juventude já havia pago parte do resgate, entretanto, permanecia refém de si mesma. Aquele era agora o seu corpo. Teimosamente vivo, depois de resistir a tantas coisas, inclusive a uma tentativa de suicídio que ficara para sempre marcada no espelho. Sua alma era um sacrário de incontáveis recordações. Os seus olhares tangidos por lágrimas temiam à distância o inevitável, o reencontro e o abraço. O passo claudicante na direção do espelho, o limiar da verdade, enfim, no exíguo espaço a perdida identidade. O livro atraía como um magneto, mas o corpo, insurrecto, resistia ainda. Os olhares de todos eram quase mãos vivas. Então uma lufada súbita de brisa mais forte virou várias páginas, deixando a descoberto um papel dobrado em quatro, na sugestiva fenda das folhas que assim pareciam para sempre seduzidas, submetidas e permissivas. Era uma carta, com certeza.
 
Então, aos poucos todos os vultos se viraram e saíram, como se lhe oferecessem privacidade. Menos o cão. Seus olhos eram fixos e negros, escondidos no focinho escuro. Mas não causavam propriamente temor. Antes ofereciam proteção. Assim, a mulher respirou profundamente, já não havia tanto peso no ar do ambiente, e deu o primeiro passo na direção do livro. Sentiu-se à vontade e, lentamente percorreu o caminho. Tudo começou a clarear em sua mente, cada vez mais liberta. Sim, era realmente uma carta. Agora lembrava-se dela. Estivera ali por muitos anos, posta por ela mesma. Pegou-a perplexa e carinhosamente. O lacre de cera, já rompido, era o do Poeta. Ainda restava uma impressão do perfume, em algum lugar entre o papel e a sua memória. Era o mesmo que usava naquela época. A carta estivera uma noite inteira entre seu seio e a roupa, bem em cima do coração. Demorou-se para abri-la, a sensação de um limiar se renovava a cada respiração. Estranha sensação. Estelinha sentia-se entre o sonho e a realidade, no meio de um caminho milenar, como sugeria a carta: o seu lacre fora rompido por ela própria, mas o seu conteúdo era um mistério. Era na verdade um limiar agônico. Para a vida, ou para a morte?

Porém, nem mesmo entre os mais antagônicos conceitos humanos, parecia agora haver distância maior do que aquela que havia até a carta. Sentia-se tão perto da morte que podia tocá-la. Quase íntima, por que temê-la? A vida não a exclui, ao contrário, viver mantém a perspectiva da morte viva! De certa forma, estava morta havia tantos anos, estivera em coma por meses fazia tão pouco tempo, sua dignidade morrera tantas vezes durante os seus pesadelos, as pessoas mais importantes do seu passado estavam mortas, perdera a avó recém descoberta! Desgraçadamente havia matado seu amor de mulher... E todos agora, ironicamente, demonstravam temer a sua morte, apenas porque seu corpo era portador de um mal desconhecido... Ora, morrer não podia ser tão terrível... O conteúdo daquele papel amarelado não poderia fazer mais do que matá-la mais um pouco.

CAPÍTULO XV

Ao pegar, com o frêmito dos dedos delicados, o livro de sobre o móvel, Estela viu que a carta repousava sobre versos manuscritos à pena. Forçando a vista tanto quanto lhe era possível, reparou que o traço, típico de um bico gasto, sugeria terem sido reescritos muitas vezes. A tinta rala guardava a sensação de uma longa espera, e a ausência de um título a incerteza de que quem os escrevera, a cerca da sua forma final. Não pode resistir a eles. Mas ao terminar a leitura veio a maior surpresa, outra vez os imensos dedos de uma brisa súbita desfolhou o livro, revelando adiante somente páginas em branco. Então, deduziu Estela, aqueles foram os últimos versos escritos. E estiveram naquele mesmo lugar durante tanto tempo, parecendo esperar por quem se dispusesse a escrever o seu final. Pensou que gostaria de fazê-lo. Mas como? Só uma deusa poderia saber o final que não seria jamais reescrito. Não ela, que nem sabia o passado. Não uma mulher tão submetida ao incerto e que esperava um golpe de misericórdia. Alguém que já nem era capaz de discernir entre o sonho e a realidade:

Por que choras assim tão docemente
Se rente ao rés da vida sempre escapas
Se a tua prometida está ciente
De ser tua pertencida nas lapas?

Quando delas descer a serra, bela
Rompendo as janelas a ti cerradas
Verão que o cravo da sua lapela
É branco e brancas são suas floradas...

Qual nas quedas, deveras destemidas
Em que vestidas as águas de lirismo
Como a luz se espalmam, sobrevividas.

Porque a vida não é promessa vã
Nem para o grão, no mais profundo abismo...
Eis que, a despencar-se, nasce a manhã.

Belos decassílabos... Porém agora não tinha mais tempo para eles. Recolocou o livro sobre o criado-mudo. O papel dobrado, enrijecido pelo tempo, parecia sentir pudor em ser aberto, resistindo aos seus dedos, e a sua textura, como num arrepio tão sutil quanto absurdo, mostrava-se mais grosseira. Era como uma carta viva, que se sentisse molestada, ou ao menos sestrosa do seu interior. Com extremo cuidado Estela a abriu, enquanto tudo em volta se fechava na mais absoluta escuridão. Rever a caligrafia do seu amado poeta foi como um salto da alma, sem direção. Não para baixo, nem para cima. Mas um salto para dentro, para o lugar onde guardava tantas recordações, para a sua memória psíquica e sensorial, onde suas lembranças pareciam reunidas, prontas para um espécie de celebração íntima e indizível.

Amada Senhorinha,

Venho por meio desta rogar-vos perdão, se alguma generosidade eu puder merecer. O senhor meu pai resolveu exigir de mim mais do que eu daria a ele por vontade própria. Obrigou-me a uma viagem imediata e covarde, sob a alegação de que seria para o meu próprio bem.

Repudio com toda a veemência da minha alma amante essa justificativa, entretanto, não posso desonrá-lo, como jamais desonraria o senhor vosso pai. Quando receberes esta já estarei longe. Mas parto com o coração apunhalado, sem poder ver-te mais uma vez e sem saber de mais nada, pois até este momento ainda não me foi dito para onde estou sendo enviado, tão pouco posso saber quando poderei voltar ou, ainda pior, se não hei de voltar em vão. Oh, meu amor, como me dói o peito! Portanto, perdoa-me por partir tão indignamente, como forma imaginativa de me sentir algo aliviado. Estou sendo coagido a fazê-lo.

Já vêm chegando a minha escolta, não quero que saibam desta missiva. Um dia haverei de rever-te, nem que me sobrevenha a noite eterna, súbita e aterradora sobre a mais bela das manhãs. Terá valido à pena.

Deus vos abençoe e vos guarde, até que eu possa voltar.

Com todo amor de um coração tão doce quanto doído, do vosso poeta para sempre apaixonado,

Dhimas.

Então era isso... Senhorinha sentou-se às pressas num lugar qualquer, já se sentido desequilibrada por uma vertigem. A visão tornou a escurecer, mas isso no momento não importava, pois sua mente estava assoberbada. Não queria morrer agora, não achava mais que a morte fosse um tipo de solução. Aquela carta tinha o poder de mudar quase tudo. Não, agora não... Queria apenas ficar ali mesmo, até que pudesse organizar suas idéias, sob o assédio caudaloso de tantas lembranças. Precisava recompor o quebra-cabeça, com encaixes alterados pelo conteúdo daquele velho papel. Se ele havia viajado, por mais que se sentisse indigno de ser amado, antes assim, porque não poderia ter sido morto por ela naquela madrugada. Deus, a maldição dos equívocos mostrava novamente a sua feição sarcástica. Se matar aquele infeliz fora um erro, carregar durante tantos anos a culpa equivocada de ter assassinado seu amado havia sido custosa demais.

Mas será, perguntou-se ela, que aquela descoberta mudava as coisas da mesma forma para ele também, mesmo depois de tantos anos? Por que ele não fizera algum tipo de contato durante todo aquele tempo? E se seu pai houvesse interceptado cartas dele? Sem obter retorno, Dhimas pensaria com certeza que não deveria ser insistente, a ponto de se tornar constrangedor. Perguntas e mais perguntas se sucederam, até que Estelinha foi arrebatada do seu próprio interior por um tipo de ruído, algo parecia debater-se em algum lugar não muito distante. Como não podia novamente enxergar direito para saber de quem se tratava, ela então julgou mais seguro procurar tateando um caminho de fuga entre os móveis. Porém foi surpreendida por algo que estava no chão e no qual tropeçou. Era um corpo e emitia grunhidos abafados. Pelo tato do corpo e pelo rendado das roupas só poderia se tratar de Branca, estava amarrada com cordames... E também amordaçada!... Mais ruídos: Havia mais alguém no salão e estava se aproximando. Estelinha tentou desatar a mordaça, mas estava apertada demais. Convenceu-se de que não haveria tempo e preferiu seguir na direção da porta. Entretanto, quando já se imaginava bem próxima do seu objetivo, sentiu sua cabeça bater em um corpo em pé. Assustada, perguntou quem era, mas não obtendo nenhuma resposta empurrou desesperadamente a pessoa, e ao ouvir o estrondo da queda, dele e de algumas coisas arrastadas por ele, Estelinha animou-se a procurar as maçanetas.

Já na metade da escada, pode ter certeza de que era seguida, e precisava chegar ao seu quarto, onde sabia estar a garrucha, sua única chance de defesa. A arma não havia disparado quanto quisera se suicidar, contudo, seu perseguidor não poderia saber disso e assim, ainda poderia ao menos intimidá-lo, até que encontrasse uma outra solução. Então, para sua surpresa, ainda de baixo, ele a chamou pelo nome. E por mais assustador que parecesse, o timbre de voz era muito parecido com o de Dhimas, seu tão amado poeta. Porém, temendo ser isso um truque daquele homem demoníaco ou mais um equívoco seu, ela preferiu prosseguir para o quarto. Sua mente se dividia entre buscar alguma forma de escapar e, desesperadamente, convencer-se de que aquilo tudo não passava de mais um pesadelo, apesar de parecer tão absolutamente real para ela. A arma estava atrás e embaixo do travesseiro, entre a cabeceira da cama e o colchão, mas não teve tempo de alcançá-la.

À beira da cama foi fortemente empurrada pelas costas. Ao sentar e virar-se sentiu em cheio no rosto um tapa tão forte, que seu corpo caiu de bruços novamente sobre a cama. Ainda atordoada, percebeu que seu agressor a amordaçava com a fronha que arrancara do travesseiro, e isso foi para Estelinha muito mais desesperador. Jamais, em seus pesadelos, fora amordaçada. Neles o vulto não se preocupava com que ouvissem os seus gritos, ao contrário, comprazia-se em ouvi-los e criava formas de fazer com que ela saísse da letargia do sofrimento. No entanto, desta vez ele não queria que alguém a ouvisse, e isso era uma evidência de que não se tratava de mais um pesadelo.

Ela sentiu quando ele começou a levantar suas roupas alvas e já não tinha mais esperança de que seu amigo cão pudesse interromper aquela tortura. Porém, de repente o homem parou, porque se lembrou de ter visto algo ao pegar o travesseiro para tirar a fronha, e tateando encontrou a garrucha. Para ter certeza, puxou os cães da arma e constatou que os dois cartuchos estavam marcados pela agulha, indício de que já haviam sido disparados, e que assim a arma não oferecia nenhum perigo. Então, com um sorriso de satisfação ele jogou a garrucha sobre a cama e recomeçou os seus carinhos abusados. De bruços e amordaçada, incapaz de evitar aquele homem, sentia-se novamente sob a maldição de ceder, mas desta vez era real. Estelinha apenas chorava, lamentosamente soluçava. Teria sido preferível, pensava ela, que aquela maldita garrucha houvesse disparado no dia em que tentara atirar na própria boca. Agora achava que Deus e o diabo, assim como o sonho e a realidade, eram a mesma coisa, e que ambos eram igualmente cruéis. Tanto quanto a mordaça o permitia, em seu desvario cheio de auto-piedade e revolta, maldizia a Deus e repudiava a sua divina misericórdia. Diante da própria censura, que surgia como um lampejo súbito na sua mente, estava convencida de que tinha motivos para justificar aquele pecado seu e que não lhe importava o julgamento de quem quer que fosse. Nem mesmo o do próprio Deus. O sofrimento acumulado por longos anos, naquele momento extremo parecia haver tornado comprometidas todas as estruturas ideológicas e morais, nas quais vicejava o encanto e a auto-estima da mocinha jovem e bela do passado, cujo resto estava agora prestes a ser para sempre possuído. Por uma pequena fração de tempo, Estelinha imaginou-se no corpo submerso de Dalva, afundando eternamente na profundidade turva e escura da lagoa.

CAPÍTULO XVI

Inesperadamente, ela sentiu o corpo do homem sair de cima do seu e em seguida se esbater violentamente contra o chão. Estela sentou-se novamente na cama e encontrou instintivamente a garrucha. Ela podia ver então os vultos de dois homens que se esmurravam como dois animais ferozes, ouvia suas vozes e se desesperava porque não podia distinguí-los. Pensou por um momento em aproveitar para fugir, mas um deles obviamente aparecera para defendê-la, e talvez precisasse de ajuda. Enfim, um deles se ergueu e aproximou-se da beira da cama. O silêncio de um sepulcro milenar ocupou o quarto. Estelinha não conseguia articular uma palavra e trêmula apontava a arma para ele. Implorava a Deus, em seu íntimo, que ele dissesse alguma coisa. Porém ele também tinha motivos para emudecer naquele momento.

As lágrimas que abarrotavam os olhos dela turvavam ainda mais a imagem do homem que lenta e delicadamente sentou-se na beira da cama, com as mãos espalmadas na altura do próprio plexo. Com auxílio de uma das mãos Estela arrastou-se na cama mais para trás, para manter uma distância segura. Disse-lhe que se afastasse ou atiraria. Não podia confiar nele e esteve por puxar o gatilho, apenas para convencê-lo de que estava disposta a fazê-lo. Então ele cuidadosamente tirou da casaca algo que lhe mostrou ao alcance da mão. Ela perguntou o que era aquilo e ele apenas lhe disse que se pegasse saberia o que era. Depois de alguns segundos de indecisão ela resolveu pegar. Apalpando, apertando entre os dedos, não era capaz de crer que fosse o que parecia tão óbvio. Por mais absurdo que fosse, era um lenço de seda. Com certeza aquele homem lhe oferecera cavalheirescamente o seu próprio lenço apenas para que enxugasse as lágrimas, sem saber o que poderia significar para ela. Ela pensou que poderia ser também um último e demoníaco embuste. Então ela o ouviu repetir com doçura peculiar, capaz de fazer ruírem todas as suas defesas, algumas poucas palavras, no entanto de imenso significado: “Mas mesmo sob eterno castigo tenaz / O amor resistiria em exílio e mistério / Guardasse comigo esse teu lenço lilás”...

Ao som daqueles versos, um turbilhão avassalador de emoções passadas irrompeu no seu íntimo. Estelinha lutava com todas as forças que lhe restavam para raciocinar, mas não conseguia. Então ela viu ressurgir ameaçadoramente, por trás dele, o vulto do outro, com os braços levantados e alguma coisa nas mãos. Foi arrebatada da sua perplexidade pelo instinto de atirar e, para a surpresa de todos, a arma disparou. Com o soco da detonação e o susto, a garrucha saltou das suas mãos, nas quais restou apenas o lenço. Em seguida o corpo do homem caiu lentamente, arrastando-se pela parede.

Passaram-se segundos infindáveis, até que ela enfim se entregou, atirando-se nos braços dele. Branca chegou correndo à porta do quarto e gritou por sua Senhorinha. Logo em seguida chegou Vó Mocinha e se espantou também por encontrar sentado na cama o dr. Amon, desculpando-se com ele por não tê-lo visto chegar. Estelinha afastou-se recompondo-se. Embora confusa, ainda tentando juntar os pedaços do quebra-cabeças, ela preferiu se desculpar com ele, alegando a sua deficiência visual como razão de tê-lo confundido com outra pessoa. Porém com o passar dos segundos, para a sua surpresa, pode aos poucos distinguir os traços fisionômicos que estavam velados não apenas pela sua cegueira, mas também pelo tempo. Nem a barba bem cuidada, antes inexistente, acompanhando o grisalho dos cabelos ainda fartos, nem as rugas, que agora emolduravam a doçura do olhar, poderiam impedi-la de reconhecer o homem que amara em segredo durante tanto tempo. Uma claridade inexplicável reinava no quarto diante de todos mas, subitamente, Estelinha puxou para si o lençol de sobre a cama, envergonhada que se sentiu quando se deu conta de que ele também podia ver o que o tempo e o sofrimento haviam feito com a sua própria aparência.

Mas ele não achava assim. Havia reconhecido sua amada desde o primeiro momento, ainda durante o estado de coma, no entanto, em razão de não saber como seria recebido e da necessidade clínica de evitar emoções fortes, preferira manter o tratamento mais respeitoso. Porém agora, sob a luz daquele momento, ele a via ainda mais bela. E compreendendo o seu constrangimento, resolveu lhe explicar que ela não havia se enganado, e que culpava-se a si próprio porque nunca lhe dissera que Dhimas era apenas um dos pseudônimos que usava para assinar poemas. Na verdade era o seu predileto, tanto que era tratado assim por várias pessoas. Para consubstanciar essa preferência, explicou que esse era o nome do ladrão de bons sentimentos, perdoado por Jesus e levado aos céus, estereótipo que usou muitas vezes como “eu” lírico, embora ninguém o percebesse. E justificou-se, afinal, dizendo-se convencido de que era melhor médico do que poeta. Estela pegou as mãos dele, cujos detalhes já podia ver perfeitamente. Estavam algo mais encorpadas, mas eram as mesmas mãos que nunca lhe saíram da cabeça. O longo abraço que se seguiu fez com que todos deixassem o quarto um a um, entre o espanto e a felicidade. Tudo seria tão perfeito, não fosse aquele trágico corpo no chão. Porém Estela achou que muito mais trágico fora todo o seu passado, e que, por nada no mundo, sacrificaria um pedacinho daquele momento tão feliz.

CAPÍTULO XVII

O médico não teria uma explicação científica para a recuperação que sua querida Senhorinha tivera em tão poucos dias. Em uma semana era uma mulher completamente nova, irreconhecível até para os seus empregados. Antes mesmo da elucidação do caso pelo delegado, que viera da capital com essa missão específica, ela já se apresentava com o ar jovial mais condizente com as vestes descontraídas que mandara fazer. Com o retorno da visão, ela reconhecera Gabriel, seu agressor, ainda no chão do seu quarto, porém somente pelo trabalho do delegado veio a saber que ele arruinara a fortuna da família e depois a própria vida, e que cometera diversos crimes, escondendo-se por isso sob a identidade de um mendigo sem memória, que usava diversos nomes falsos, e que não fazia assento em lugar nenhum para não ser reconhecido. O jovem poderoso a arrogante havia passado anos vivendo nas estradas e dormindo ao relento. E toda a sua desgraça havia começado na madrugada em que participara de um duelo, matando um tal de João Parede.

Amon não conhecia esse homem, mas convenceu-se de que fora contratado por seu pai para duelar em seu lugar, e honrar a dignidade de seu filho, devolvendo à sua dona o lenço lilás. O jovem poeta não concordaria jamais com isso, caso lhe dessem alguma escolha, porém agora respeitava a memória do pai falecido, que fizera de tudo para que se formasse e se tornasse um médico respeitado, longe daquele contexto conflituoso. Por seu lado, Estelinha também preferira não explicitar as verdadeiras condições da morte do tal João Parede. Estava determinada a se desancorar das tristezas torturantes do passado. A última surpresa triste fora a prisão de Homero, sob acusação do delegado de ter facilitado a aproximação de Gabriel. Dizia a si mesma que bastava de tristezas. Amon se mostrava convencido de que sob boas condições emocionais não teria mais crises. Ela não tinha tanta certeza, julgava que a convicção dele era mais afetiva do que científica. Por via das dúvidas, queria viver cada minuto que tivesse pela frente, queria apenas ser feliz. Fora uma moça notável mas, como mulher, na realidade não havia sido feliz, e não media esforços para isso agora.

Cinco meses depois, Estela e Amon estavam de casamento acertado, ele a convencera a ir morar em sua casa, de modo a não se afastar dos seus pacientes. Mas enquanto a venda do casarão e a mudança definitiva não acontecia, sempre que podiam eles saiam para passear pelas redondezas. Com surpresa, Estela descobrira que nas terras ainda pertencentes à família de Amon, havia um recanto extremamente agradável. Um rio de águas límpidas passava sob uma ponte tosca e antiga, onde eles se sentavam para descansar e fazer planos. Seus passeios terminavam ali, eram programados para isso. Ela gostava de se acomodar sobre a ponte no sentido do rio, de modo a ficar olhando as águas se afastarem até desaparecerem numa queda que ficava adiante. Ele não podia compreender a relação de sua amada com aquelas águas, mas também gostava muito do lugar, que lhe fazia recordar da sua infância. Próximo da curva que se seguia à queda do rio, havia uma laje sobre a qual sentava-se para escrever seus primeiros versos. Porém isso não era mais importante, se Estelinha preferia a ponte, então era ali mesmo que ficariam até quando pudessem.

Eles se casaram na fazenda da família dele, às vésperas da viagem, numa festança que fez recordar as comemorações dos natais e a abastança do passado, e deixou os tios dela encabulados com tanta coisa. Mas na véspera da cerimônia, estando os dois sentados na ponte pela última vez antes da viagem, a tarde findava numa belíssima aquarela de tons lilases que se esparramava na superfície do rio. De repente, ela emudeceu e tornou-se ensimesmada, deixando Amon preocupado. Mas em vez de explicar a ele os seus motivos com palavras, Estelinha retirou do vestido o lenço lilás, ergueu-o entre os dedos e deixou que a brisa o levasse até cair suavemente na superfície do rio. Ela lhe pareceu tão feliz, e seu rosto, iluminado pelo meigo sorriso que ele aprendera a amar, demonstrava isso claramente. Amon imaginou que podia compreendê-lo perfeitamente, e calou-se também. Acompanhando a trajetória do lenço pela escuro que a noite prometia transformar em breu, ele quis chamar a atenção dela para uma coincidência que julgou curiosa: na queda d’água, o lenço sumira na posição exata onde se via o reflexo de uma estrela enorme, a maior delas, que despontava no horizonte, logo acima da cadeia de serras.

Estelinha assentiu com um olhar feliz, que bastou a ele como resposta, e depois pediu que voltassem antes que ficasse tarde demais. Na saída da ponte, Amon quis olhar mais uma vez para o reflexo da estrela. Acompanhando-o, Senhorinha percebeu que, sobre a areia clara que circundava a outra margem da curva do rio, havia um cão escuro. Ela receou que Amon o visse também e, para defendê-la, quisesse admoestá-lo. Mas como ele não reagiu, ela deduziu que não o havia visto. Melhor assim, pensou ela. Fazia questão do caráter protetor de seu amado, entretanto, no caso daquele cão, isso não seria nem um pouco necessário. A noite, que viera sobre a sua manhã, cedera finalmente a uma manhã luminosa e constante, que não dependia da posição do sol, porque habitava o seu coração regenerado.

Foto de Osmar Fernandes

O Repórter de São Pedro

O Repórter de São Pedro

Não perdia um velório. Era figurinha carimbada em todos daquela região metropolitana. Entusiasmado pelo clima fúnebre, anotava todo o acontecimento em sua caderneta. Sujeito excêntrico, sem amigos; gostava do que fazia. Chamava a atenção pelo seu trejeito e pelo traje que usava: uma túnica de cor branca, um cinto de pano vermelho amarrado em sua cintura e calçando uma alpargata desgastada e marrom.
Seu Leleco, que já o tinha visto em vários velórios, intrigado, aproximou-se, e, no pé do seu ouvido, perguntou:
- O senhor é parente do defunto?
O homem lhe respondeu, indiferente:
- Não é da sua conta!
Seu Leleco, irritado, então, disse:
- O senhor é muito mal-educado! Só estou lhe perguntando porque já o vi em muitos velórios. Sempre vestido desse jeito, esquisito, com esse livrinho relatando não sei o quê e com esses gestos inquietantes... Desse jeito o senhor incomoda todo o mundo. Chama mais atenção que o defunto. O senhor por acaso é policial, agente funeral ou agente de seguro?
O homem, franzindo a testa, respondeu, imediatamente:
- Não sou nem uma coisa, nem outra.
Seu Leleco insistiu e perguntou:
- Ah! Então o senhor é amigo do peito de Pedro, não é?
O excêntrico lhe respondeu na bucha:
- Do Pedro sim, mas, do defunto não.
Seu Leleco ficou com a resposta engasgada e, irado e meio confuso, persistiu:
- Como assim? Se o Pedro é o defunto e o senhor não é nem parente, nem amigo, então o que faz aqui?
Dessa vez, em tom menos agressivo, o homem de alpargata desgastada, respondeu:
- Não sou nem parente, nem amigo, nem nunca o vi nem mais gordo, nem mais magro em toda a minha vida. Estou aqui a serviço do céu.
Seu Leleco espantado com as respostas do excêntrico, dessa vez quase foi à nocaute, e, encabruado que era, respirou forte, impostou a fala e disse:
- O senhor está delirando... A serviço do céu?! O senhor quer dizer que não é deste mundo?
O homem de branco, percebendo sua gafe, meio desnorteado, fitou-o e disse:
- Não! Quer dizer, sim!... Já fui há muito tempo atrás. Hoje não pertenço mais a este mundo pecador, violento e desalmado.
De cabelos em pé, parecendo um espantalho, e com “a pulga atrás da orelha”, seu Leleco, trêmulo, mastigando a voz, falou:
- Então quer dizer que o senhor já viveu aqui, morreu, e agora é um espírito. Por isso, faz essas anotações. Prá quem? Por quê?
O homem, enfurecido, respondeu:
- Sim! Quer dizer, não!... É isso mesmo! Já vivi aqui, morri, e agora sou o Repórter de São Pedro. Tenho que anotar todo o acontecimento da história do falecimento. Desde o seu último instante de vida, às causas da morte, às lamentações... Tudo o que parecer interessante, curioso ou triste. Tenho que levar o relatório para o secretário de São Pedro, antes que a alma abandone o seu corpo.
Seu Leleco, assustado e já desconfiado dessa conversa, disse:
- O senhor está com lorota comigo, está blefando, só pode estar. Isto é brincadeira de mal gosto. É coisa impossível! Nunca ouvi ninguém dizer nada igual antes. Morto não volta pra contar histórias, nem fazer relatórios... Isso é uma piada mal contada. Nem na Bíblia Sagrada li nada igual. Esse é o maior absurdo que já ouvi em toda a minha vida. Fale que é mentira, pelo amor de Deus!
O repórter de São Pedro, enfaticamente, disse:
- Quem vê demais, ouve demais, nunca mais dorme em paz. Não estou brincando. O senhor está vendo o que realmente é.
Seu Leleco, que era manco, angustiado balançou a cabeça desaprovando aquelas palavras, e replicou dizendo:
- O senhor é muito estranho, não fala coisa com coisa. Se não quer chamar a atenção, venha vestido como todo mundo; seja um de nós, um igual. O diferente atrai, naturalmente, a curiosidade. Ainda mais em se tratando de um velório. Com uma conversa dessa, sem sentido, dizer que é Repórter de São Pedro e que a alma... Que besteira! Que loucura! Nem sei porque estou emprestando os meus ouvidos a tanta asneira.
O repórter de São Pedro, disse:
Já dizia o profeta: “Virá o Senhor daquele servo num dia em que não o espera, e à hora em que ele não sabe.” (Mt.24:50). Por isso, estou relatando a despedida do morto e revelando a reação de cada um aqui, inclusive a sua. Ser ou não ser diferente não é o caso. O caso é tão somente transladar o acontecimento para a minha agenda e endereçá-la depois para o meu superior... Nunca gostei de me aparecer quando era vivo, nem mesmo nas comemorações dos meus aniversários. Afirmo que somente o senhor está me vendo. Não sei o porquê, mas só o senhor pode me ver.
Engasgando-se nas próprias salivas, seu Leleco, arregalando seus olhos negros, surpreso, indagou-o:
- Puxa! Então o senhor é um anjo do céu mesmo? É aquele que veio buscar a alma do morto?!
O repórter de São Pedro, respirou, e disse:
- Não. Ainda não conquistei esse poder tão miraculoso. Quando olho ao páramo e o vejo tão lindo, entendo o poder de Deus. Estou trabalhando para que um dia eu possa alcançar esse objetivo. Estou numa dimensão divina, mas desejo a purificação total. Fiz boas obras na terra... Mas, adentrar a porta do céu é muito difícil, ela é muito estreita... ficar na fila já é difícil, mas, ser escolhido é quase impossível... depende muito da alma de cada um.

Nesse momento seu Leleco silenciou-se... e sua consciência lhe confidenciou: “Este homem não é doido. É um sábio ou um profeta, ou um santo; mas, doido não é.” E perguntou:
- Tire-me uma dúvida: como São Pedro pode ter o relatório de todos os defuntos do mundo? Afinal, são milhares por dia, não é? Morremos de tantas formas: de doenças, de fatalidades, de balas perdidas; e de tantas guerras: a da fome, a da frustração, a da ignorância, a do tráfico de drogas, a do trânsito e a de guerras de nação contra nação, enfim, são tantas formas de morrer por dia, como enumerá-las, registrá-las?
O repórter lhe respondeu, dizendo:
- O senhor tem toda a razão, não sou doido... Faço parte da O.N.E.C. – Organização Não Espiritual do Céu... Sou um voluntário a serviço de São Pedro. Todo voluntário, seja na terra ou no céu, é bem visto pelos olhos de Deus. Por isso, em cada velório, chovem candidatos. Para cada morto disputam, no mínimo, sete candidatos, um instrutor e dois ajudantes; um anjo só vem fazer este seviço quando se trata de um espírito superior... quando o caso é especialíssimo.
Seu Leleco, curioso que era, perguntou:
- Mas, o que o voluntário e o morto ganham com isso?
O repórter, enfaticamente, respondeu:
- Cada um ganha o que merece... O voluntário recebe uma espécie de bonificação dos pecados... O morto, através deste dossiê do adeus, que é uma espécie de folha corrida, ganhará ou não uma senha para entrar na fila do céu.
Seu Leleco enrugou a testa e disse:
- Mas, além do homem “bater as botas” ainda vai ter que passar por essa peneira... Coitado! O senhor não acha que todo o pobre deveria ir direto para o céu, sem passar por esse vexame?
O repórter, entendendo a simplicidade e a ignorância do seu Leleco, disse:
- Cada alma será julgada de acordo com o que semeou na terra. Afirmo para o senhor que felizes são aqueles que têm a chance de ir para a fila de São Pedro. Muitos desejam isso, mas, poucos conseguem entrar na fila, e somente os escolhidos, a dedo, conquistam esse direito. Nesse caso não conta a questão financeira, política, bens materiais, o que conta é o que foi o coração da pessoa, se foi bom ou mal.
Seu Leleco, de supetão, perguntou ao repórter:
- O senhor lê o pensamento de todo mundo?
O homem do além, meio encabulado, pego de surpresa, respondeu:
- Não. Nem sempre. Faço isso somente quando tenho a permissão do meu superior.
Aproveitando a oportunidade, seu Leleco perguntou:
- Dói morrer? Ou a passagem dói muito mais?
O repórter de São Pedro disse categoricamente:
- Dói muito. Mas, triste mesmo, é assistir ao sofrimento dos que ficam perfilados na rua do inferno, chorando, clamando perdão tardiamente... Essa é a pior dor, é dor infinita. A passagem é como uma viagem virtual, como um passeio, mas, que, ao despertar, vai conhecer a sua fila: ali começa o céu ou o inferno.
Seu Leleco, impressionado com essa resposta, pensou: Vou procurar uma igreja hoje mesmo, vou buscar a palavra de Deus para ser a minha luz, o meu guia e minha salvação.
O repórter de São Pedro, terminando o seu trabalho, disse para o seu Leleco:
- O corpo morto ficará no esquecimento. Na sepultura não terá momento. Não fará mais obras, nem indústrias, nem ciência, nem coisa alguma, porque não será mais existência. Tornar-se-á pó. Sua sorte estará lançada... Sua alma é que será julgada conforme sua encarnação. Que os vivos sejam inteligentes, porque é melhor ser um cão vivo do que um leão morto.
E, falando isso, desapareceu.

Foto de Osmar Fernandes

Ninguém tem culpa do rosto que tem, mas é responsável pela imagem que constrói...

Ninguém tem culpa do rosto que tem, mas é responsável pela imagem que constrói

Ninguém tem culpa do rosto que tem, bonito ou feio, ele é precioso. Cabe ao seu dono valorizá-lo, zelar dele como uma jóia rara, como um diamante estupidamente extraordinário. Ele é a fotografia de sua existência, de sua vida. O seu rosto é o jardim do seu corpo, o espelho... O corpo é a casa da alma.
Este conjunto de órgãos amado por uns e detestado por outros, é o milagre de Deus. É uma máquina perfeita de músculos, com um cérebro possante (com cem bilhões de neurônios...) que pensa, fala, premedita, vive ou vegeta... É possuído por um espírito único e inimitável.
Tem gente que só vive reclamando da vida que leva, e pouco ou nada faz para melhorá-la. Ao invés de ficar lamentando, choramingando pelos cantos do mundo, não seria mais sensato inventar um sonho e correr atrás de sua realização? Quando você se olha no espelho, a imagem que vê é real, não é? Logo, o seu mundo tem a sua imagem. Reflita!
Certo dia assisti a uma cena cinematográfica no centro de Curitiba. Vi um homem sem pernas e sem braços, sentado em sua cadeira de rodas, transbordando de felicidades... Aproximei-me e lhe perguntei:
- De onde vem tanta alegria? Você não tem raiva de Deus? Não sente amarguras por ser assim?
E, ele calmamente, como um anjo, respondeu-me:
- Não, moço! Eu sou feliz porque nasci. Eu posso ver e contemplar toda a beleza da natureza... posso ouvir e compreender o que me falam, posso falar “eu te amo!” para as pessoas que amo; sou um ser humano que não tem pernas, nem braços, mas tenho uma mente sadia e um coração repleto de amor. Não tenho parte do meu corpo, sou aleijado mesmo, porém minha alma é perfeita e só posso agradecer a Deus por ter me dado a chance de ter nascido, e poder conhecer e desfrutar as maravilhas deste mundo.
Juro, fiquei boquiaberto com a resposta daquela grande alma. Pude entender um pouquinho mais da vida, como ela realmentre é. Mais adiante dali, a alguns metros, notei um cidadão sentado no chão e pedindo esmolas para os transeuntes. Aproximei-me e lhe perguntei:
- Por que um senhor tão saudável e forte pede esmolas?
Ele, irritado, respondeu-me, dizendo:
- O senhor não tem nada com isso, a vida é minha e faço dela o que eu quiser e bem entender...
E, disparou um monte de palavrões.
Saí educadamente... e concluí que a sabedoria não precisa de belos órgãos para embelezar os olhos da felicidade e de Deus. E pensei como um verdadeiro filósofo: “Ninguém tem culpa do rosto que tem, mas é responsável pela imagem que constrói.”

Foto de Osmar Fernandes

Otimista X Pessimista

Otimista X Pessimista
O otimista tem como lema: Vencer ou vencer! Julga tudo o melhor possível; é um líder nato do pensamento positivo; em tudo tem bom ânimo; é o engenheiro do sonho. Sua motivação está sempre em sintonia com a natureza... tem beleza de vida eternamente. Transforma sementinhas de sonhos de esperanças em árvores milenares de frutos doces. Tem a tendência privilegiada em ver o belo, o lado glorioso da luta; o êxtase da vitória.
Por outro lado, o pessimista tem como lema a palavra : Não!... Não vai dar certo; não adianta nem tentar... Acha tudo péssimo e espera o pior de tudo. Tem como receita o comodismo, a preguiça, a inveja. É a derrota em pessoa. Costuma tanto ovacionar a vitória dos outros que se esquece da sua. Seu espírito de negação sistemática é a sua marca registrada. Seu baixo astral é tanto, que, aonde põe a mão, tudo dá errado. Seu pensamento negativo é o seu maior adversário.
Para vencer na vida é preciso antes de mais nada ser 100% otimista e ter fé naquilo que faz. Já dizia o mestre: “Se você quer, você pode, é só acreditar que pode...”. A decisão do ponta-pé inicial, depende, essencialmente, do querer, da atitude, da iniciativa, da força de vontade e do desejo de realizar o sonho. O sábio é aquele que sabe o que quer, gosta do que faz, e realiza o que sonha.
Os dez mandamentos de um vencedor:
01) Compreender o seu livre-arbítrio, ter um sonho e descobrir o seu dom;
02) Ter iniciativa e atitude e traçar objetivos e estratégias para atingir o êxito;
03) Acreditar em si mesmo, e se preparar devorando conhecimentos;
04) Ter entusiasmo, confiança e liderança;
05) Ter consciência de que fracassar mil vezes não significa perder o sonho;
06) Ter humildade, simplicidade e persistência;
07) Não ser afoito e respeitar a intuição;
08) Ter organização;
09) Ter l00% de otimismo e
10) Desejar o troféu da vida.

Foto de Cecília Santos

VÍDEO POEMA (CINZAS AO VENTO)

CINZAS AO VENTO

Pedra Grande, a cidade inteira, a seus pés,
Vento cantando, e o sol intenso a brilhar.
E nesse recanto tranquilo, e mágico que a natureza criou.
Você se transformou, em milhões de pontos cintilantes.
Cada partícula de cinza, do que se transformou seu corpo,
Foi levado pelo vento, livre e solto pelo ar.
Nas asas transparentes, de um anjo lindo à voar.
E recebendo os raios do sol, ia se transformando.
Em milhares de borboletas coloridas, que voavam pelo céu.
Nesse lugar lindo e imenso, que quase se mistura ao céu.
Com certeza você, vai continuar a voar,
por entre as nuvens brancas de algodão.
Por entre as pedras esculpidas, pelo força da chuva, e do vento,
Vai cantar e dançar, com a brisa leve, e perfumada.
Fará parte do dia, da noite, do sol, e será arco-íris colorido.
Depois que a chuva cair, como uma gigante gota transparente,
Flores nascerão por entre as pedras.
E a vida vai permanecer, sobre esses rochedos.
Assim como as ervas daninhas, e as flores, você também viverá.
Pois o espírito não morre nunca, é eterno.
E no espaço, e no tempo, você se eternizou.
Reluzirá em cada raio do sol, todos os dias.
E cada estrela do céu, terá o seu brilho.
A brisa será leve, e perfumada como seu riso.
As chuvas que cairem, serão suas lágrimas,
que apagará o pó, e aliviará a alma sofrida!
Você será isso, e muito mais...!
Você será a própria existência...!

Direitos reservados*
Cecília-Poema feito p/minha filha Fernanda em 10/04/07*

Agradeço à Fernanda Queiroz, que me presentou coma a elaboração
desse vídeo poema, no qual muito me emocionou.
Beijos a você querida amiga, te amo!
Cecília

Foto de Elias Dall Agnol

Ausência

Pressuponho que a ausência seja a não existência e não o afastamento...
Ausência se confunde, muitas vezes, com melancolia...
A não existência provoca vazio, atormenta a alma...
Por maior que seja a distância, se existe um alguém, jamais haverá ausência...
Pois a saudade acontece, mas quando fecha-se os olhos, lembra-se que existe alguém...
O calor desta presença percorre o corpo acalentando a alma...
A tormenta da ausência se dissipa, a saudade acalma-se e o amor floresce transformando qualquer resquício de ausência em presença de espírito...
Se não houver a lembrança, a saudade, aí sim haverá ausência, vazio frio da solidão...
Não há vitalidade teimosa que resista a falta de saudade...
Apenas persiste, uma esperança triste e distante de, quem sabe um dia, sentir a saudade de alguém...
Pobre do ser, que mesmo sem querer, não sabe amar...

Foto de Marta Peres

Coração de Mulher

Coração de Mulher

Não penetrarás o coração de uma mulher
Quando teu desejo for apenas o de possuí-la.
Um mar de segredos envolve seu coração
Tornando-se impossível persuadí-lo desta forma.
Se queres conquistar uma mulher busque sua alma,
Seu espírito, sua essência...
Terás então os mais íntimos segredos desvendados
E ela te levará ao paraíso do prazer,
Deixa-te seduzir por ela,
Não queiras viver o abismo de sua alma
Bebendo o vinho da paixão
É ilusão e passa como teus pensamentos...

Marta Peres

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