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Foto de JGMOREIRA

CARGA

CARGA

Os autos resfolegam no asfalto
uma paquidermidez mecânica.
Acelerações desesperadas causam-me sobressaltos.
Eixos, rodas, balancins, marchas
entram pela janela da casa para dentro de mim,
o lar.
Nao durmo o sono dos justos que há
foram alcançados: gritos, notícias: jornal:
circula O DIA pelas gares da Central.

Minha casa é uma fresta às máquinas
e às bestas. Sou todo pegajosidades
nessa cidade de 38 graus.
O ventilador excita uma onda quente
de ar empoeirado, repleto de ferro
e asco que entram pelos poros, narinas
ficando depositados em minha saliva.

Assim me construo: com ferro e nojo,
honra e desprezo,
trabalho e desejo.

Urros e sussurros, gritos e maquinarias
entram dentro de mim, o lar,
erigindo outro homem em outra casa.
Um ser sem rupturas e desemocionado
que, monolito, contempla o absurdo
permanecendo inatingível e calado.

Meu sono é repleto de engrenagens
e aceleradores pisados ao fundo.
Quando durmo, o outro se levanta
para ver as hordas que se agigantam.

Pela fresta penetram os berros
de quem marreta as rochas da solidão
daqueles que, em outros lugares,
respiram ares do mais puro algodão.
Os condenados ao trabalho forçado
de viver quebrando montanhas de granito
buscando passagens para o existo,
reúnem-se, às vezes, as vozes aos gritos.

O coro de ódio impotente da matilha
rompe meus cristais, rasga as cortinas
penetra, impiedoso, em meus tímpanos.
Levanto-me, sabendo acabado
o tempo das filosofias.
Uma consciência histórica de invalidez
abate-se sobre meus ombros
que arqueiam sob o chuveiro:

O peso do desamparo de uma raça aturdida
pela ilusão incontida e homérica
de descobrir dentro da pobre prôa de suas quilhas
um rumo certo pelo qual atinja-se Américas
ricas e prósperas, fecundas e fantásticas,
de um chão que desnecessite empenho
para forrar estômagos chupados.

E é com imaginaçãoo e engenho
que a turba inventa embarcaçoes,
benze-as, invoca bons augúrios,
lança-se ao infortúnio
de um mar sem contemplações
habitado por titãs e deídades malígnas
que lhes rasgam as velas com garras latinas.
Náufragos, homens mulheres e crianças
são atirados por ondas precisas
às praias que a isso circundam.
Por cá ficam, desesperados,
a rondar bares esféricos
com o corpo na miséria
a esperança em Américas
que seus olhos avistam longe,
esperando, esperando, esperando...

(Proliferam seus pesadelos.
Juntam-se, às vezes, para relembrar
um tempo em que ousavam navegar.
Filhos, olhos de América e de choro,
engrossam as fileiras do côro
que urra suas misérias
para dentro da janela
onde um angustia-se
outro observa
e com mãos de estivador nesta página os encerra)

Foto de Junior A.

Homenagem a um poeta... (Carlos Magno)

Caro Carlos Magno

Sua última carta era dessas que ou se responde imediatamente, na paixão da leitura, ou não se respondem nunca. Creio que optei pela segunda decisão, ou antes, que fui levado a ela. O certo é que li sua carta com um interesse danado, que a vivi intensamente, que tornei a lê-la muitas vezes, e que, apesar da distância em tempo e espaço, me senti acompanhando você na terrível e dolorosa descoberta do poema "Um dia Eterno". Não sei se você meditou bem no que escreveu sobre isto, mas considero sua carta muito mais importante do que qualquer poética ou tentativa de explicação e interpretação de poesia, dessas que os eruditos escrevem, escrevem... friamente. Impressionou-me ver você tateando no escuro, apalpando, procurando, monologando, sofrendo e ao mesmo se observando tão lúcido, desdobrado e ao mesmo tempo uno, que poder! Me perdoe se achei sua confissão admirável, certamente você não quis se dar para mim como espetáculo, nem eu senti isso, mas não posso deixar de manifestar a espécie de susto iluminado, de terror feroz, não sei bem, todas estas palavras parecem bestas, diante do itinerário do poema que você traçou. E você me pede opinião! Como posso dar opinião sobre aquilo que resultou de uma experiência tão pessoal e tão direta de você, cada palavra tendo surgido de uma necessidade ou uma circunstância específica de você, o poema todo sendo tão propriedade sua que.. A verdade é que acabo não podendo escolher entre as variantes, aceito todas as variantes, e você me ensina que é possível fazer um poema com diversas redações, todas rigorosamente legítimas, coisa em que eu não acreditava. Já vê você que abandono toda atitude crítica e só lhe confesso a emoção grande que me provocou esse episódio poético do "Um dia Eterno". E não considero esta carta resposta da sua, porque o gênero de coisas que ela acordou em mim não encontra expressão idônea nestas palavras que estou escrevendo.
Devolvo esta folha de caderno, embora quisesse ficar com ela; mas deve voltar ao caderno. Agora fico desejando que você me mande sempre coisas novas... Pelo menos quando puder mandar, e isso não o chatear muito. Obrigado pelas boas palavras sobre minha situação pessoal. Mas não há nada de escuro no céu, e vai-se vivendo, às vezes com gosto, às vezes enfezado. E tudo dá certo, enquanto há força no braço, vontade e sentimento cá dentro... Me sinto capaz de viver. Não uma grande vida, nem uma vida cheia, mas o meu pouco de vida tímida e inconformada, com desejo de fazer alguma coisa que não sei o que seja, mas que seja bom para os outros, isso eu vivo. E é bom saber, no momento indeciso, que a amizade de alguns poucos como você está vigiando e solidária. Adeus, Carlos.Dê notícias suas. O abraço forte do seu velho

Junior

PS:Esta carta Carlos Drummond de Andrade escreveu ao seu grande amigo Mário de Andrade quanto ao poema Reis dos Reis,mas faço minhas as palavras aqui descritas em homenagem ao grande poeta que a pouco tempo conheço... Mas me encanto a cada dia com suas expressões. Carlos Magno

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